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OPINIÃO

Opinião: Se puder escolher, não veja o vídeo do espancamento de Moïse

Moïse Kabagambe em seus últimos minutos de vida, antes de ser assassinado no Quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca - Reprodução
Moïse Kabagambe em seus últimos minutos de vida, antes de ser assassinado no Quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca
Imagem: Reprodução

Repórter do UOL, no Rio

05/02/2022 04h00

Lola Ferreira

Há poucos dias eu estive com meu irmão, um daqueles raros encontros durante a pandemia. Na casa dos 20 anos, ele é um rapaz bonito, inteligente e bom aluno na faculdade. Mas sua principal característica, a que mais domina meus pensamentos, é a cor de sua pele. Meu irmão caçula é um homem preto, como Moïse Kabagambe.

Por volta das 16h de 1º de fevereiro, a imprensa do Rio de Janeiro começou a receber uma série de vídeos curtos que flagraram o assassinato do congolês. Com imagem amarelada e sem áudio, menos de 10 minutos exibiam o fim de uma vida.

Jornalisticamente, a imagem era muito aguardada pelos colegas. Havia uma expectativa sobre a divulgação, quem daria o furo de um crime tão comentado. No jargão jornalístico, furo é aquela publicação em primeira mão. Jornalista gosta disso. Mas dessa vez eu, silenciosamente, não queria.

Se eu pudesse escolher, jamais veria aquele vídeo.

Mas como repórter e à frente da cobertura do Caso Moïse pelo UOL, eu vi. No primeiro momento, meu estômago embrulhou. Por muitos minutos, eu me senti agoniada. Era como se um choque passasse do meu pé e fosse até o último fio de cabelo.

Eu estava trabalhando, claro, na porta da 16ª DP, na Barra da Tijuca. Tudo que eu pude fazer foi balançar as mãos e estalar os dedos, como se pudesse fazer aquela sensação sumir. "Que agonia", eu repetia. A sensação não sumiu, ficou um gosto azedo na boca e uma dor de cabeça incessante.

Naquela hora, graças a todos os orixás, meu irmão estava em sua casa, seguro. Mas mesmo assim, por volta das 16h de 1º de fevereiro, eu vi meu irmão tomar ao menos 30 pauladas —metade delas sem oferecer resistência— até morrer. É que meu irmão caçula é um homem preto, não pude deixar de lembrar dele.

Avisei aos meus amigos, publiquei no Twitter, quis gritar para que ninguém mais visse aquele vídeo. Pensei no meu irmão, no meu pai, em todos os homens pretos assassinados diariamente no Rio e no Brasil. Pensei na mãe de Moïse, em seus irmãos. Não queria que outras pessoas tivessem aquela sensação.

Ainda que você não tenha irmão, ainda que você não consiga se imaginar vivendo aquela dor. Ver um homem ser assassinado a pauladas não é recomendável.

A profissão que escolhi me obriga a assistir, então por várias vezes eu tive de assistir e ir contra a minha própria recomendação. Preciso tirar um bom frame, vou rever para descrever a roupa, me dá um minutinho para eu achar a testemunha na imagem, será que conseguimos uma imagem mais nítida da chave de perna? E da paulada que o homem de vermelho dá? E de novo. E de novo. E de novo. Esse frame está ótimo, vou incluir. Ótimo?

Chorei antes de dormir. Por que o Brasil permite esse tipo de coisa?, eu pensava. Ele tinha a idade do meu irmão. A mãe dele estava esperando em casa. Ele fugiu da guerra e morreu aqui!

No dia seguinte, outra etapa dessa sensação esquisita: tive acesso à íntegra das imagens do quiosque Tropicália entregues à Polícia Civil. Três horas de gravação, das 22h de 24 de janeiro até 1h do dia 25.

E começou tudo de novo. Um vídeo de três horas cravadas, que exibe os últimos momentos de Moïse de pé, os 15 minutos que ele passou amarrado, morto e abandonado em uma praia. Pessoas comprando cerveja, um funcionário recarregando o freezer, até curiosos chegaram mais perto.

As novas imagens mostram um bebê de colo vendo Moïse morto e pessoas de roupa de banho desviando do seu corpo preto. Mostram também os profissionais da saúde tentando reanimá-lo e confirmam uma inércia geral: quem não matou, assistiu. Quem assistiu, nada fez.

Moïse morreu tantas vezes naquela noite. E eu vi, revi, anotei, decupei, roteirizei. Dei zoom, tirei, acelerei, pensei em formatos. Três horas. Assisti ao menos duas vezes cada um daqueles minutos.

Por fim, publiquei, claro, é minha função. Mas me sinto fisicamente fraca, emocionalmente cansada e espiritualmente esgotada.

Eu não quero mais ver esse vídeo. Nem esse, nem os próximos. Eu queria que não houvesse próximos. O pior é que eu preciso ver, porque provavelmente haverá. E é papel da imprensa ver, traduzir e cobrar por resolução de crimes tão bárbaros. Confio na sensibilidade que tenho —que não é natural só porque sou preta— para fazer isso de forma respeitosa. Afinal, a dor de ver as imagens é incomparável à dor que Moïse ou sua mãe sentiram.

Mas se você puder escolher, não veja.