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ANÁLISE

Sucateamento, descaso e escândalos na Educação cobrarão a conta de jovens

Desmonte na Educação passa pela proposta de repetir questões do Enem - Letícia Mutchnik/UOL
Desmonte na Educação passa pela proposta de repetir questões do Enem Imagem: Letícia Mutchnik/UOL

Especial para o UOL

06/04/2022 04h00

A possibilidade de repetição das questões para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) em 2022 é mais um capítulo do desmonte do Ministério da Educação sob o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). O problema havia sido relatado em fevereiro ao INEP e ao MEC e reforçado em novembro, mês de aplicação do último exame. O descaso cobrará um preço caro dos jovens brasileiros, pretos e pobres, que veem no exame a oportunidade de ingressar nas universidades públicas, também sucateadas pelo atual governo.

O BNI (Banco Nacional de Itens), que alimenta a prova, não recebe atualização desde 2018. A desatualização do banco de questões já se refletiu na prova de 2021, quando o exame deixou de fora a pandemia de Covid-19, assunto de maior importância no cenário internacional e que àquela altura já tinha ceifado a vida de mais de 600 mil brasileiros. Lembrando que foi esse mesmo banco de questões que impediu que a prova do último ano tivesse "a cara do governo", como disse Bolsonaro após a demissão de mais de 30 servidores do Ministério da Educação às vésperas do exame.

O MEC no governo Bolsonaro

O Ministério da Educação vem penando desde a posse de Jair Bolsonaro. Foram quatro ministros desde então. Ricardo Vélez, que ficou um ano no ministério, propôs um revisionismo em como o golpe de 1964 e a ditadura militar eram ensinados nos livros didáticos. Vélez fazia parte da ala militar do governo, que na semana passada soltou uma nota em que celebrava os 58 anos da instalação da ditadura no Brasil — período apresentado como de "fortalecimento da democracia", segundo o documento —, através do Ministério da Defesa, comandado por Braga Netto. Vélez terminou demitido após divergências com a ala ideológica, que tinha no astrólogo Olavo de Carvalho o seu mentor intelectual.

Com a queda de Vélez assumiu a pasta Abraham Weintraub, do bloco ideológico do governo. Como uma de suas ações, Weintraub pôs em curso o plano de contingenciamento de quase 25% do dinheiro destinado à educação, cerca de R$ 5,8 bilhões. A gestão de Abraham Weintraub também entrou em rota de colisão com as universidades públicas. As instituições de Ensino Superior foram alvos prioritários desse contingenciamento, sobretudo aquelas que, nas palavras do então ministro da Educação, promoviam "balbúrdia". A UFBA (Universidade Federal da Bahia), a UnB (Universidade de Brasília) e a UFF (Universidade Federal Fluminense) sofreram um corte de 30% nas despesas discricionárias, como água, luz, limpeza e bolsas de auxílio. Este último aspecto era especialmente importante, pois respondia pelas ações de permanência dos estudantes de baixa renda na universidade.

Weintraub foi demitido em junho de 2020, após proferir ofensas aos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), referidos como "vagabundos" em uma reunião ministerial em abril de 2020. Também participou de atos contra o STF promovidos por manifestantes bolsonaristas. Foi substituído por Carlos Decotelli, que ficou apenas cinco dias no cargo após irregularidades em seu currículo, que incluíam acusações de plágio e inconsistências em seus títulos acadêmicos. O quarto ministro do MEC e agora ex-ocupante do cargo foi Milton Ribeiro que, assim como seus antecessores, pouco fez à frente da pasta.

Milton Ribeiro era considerado de perfil mais discreto em comparação aos ministros anteriores. Mas no último mês vazou um áudio no qual Ribeiro afirmava que o governo federal favorecia prefeituras ligadas a dois pastores. Ribeiro, que é pastor presbiteriano, confirmou que Bolsonaro pediu que ele recebesse os pastores, mas negou qualquer favorecimento. O caso continua sob investigação da Polícia Federal e Milton Ribeiro foi exonerado do cargo. Quatro ministros em menos de quatro anos é prova de que algo anda muito mal no MEC.

O ENEM e o Novo Ensino Médio

Os problemas apontados pelos servidores do INEP afetam um dos mais importantes dispositivos para acesso à universidade pública. Vale lembrar que o Enem 2019 — o primeiro sob a gestão de Bolsonaro — foi marcado pelo erro em mais de 6.000 notas. Nos exames seguintes, a constante ameaça de intromissão criou um clima de insegurança entre os servidores do INEP.

Em 2020, primeiro ano da pandemia, houve uma diminuição no número dos que compareceram à prova. Em 2021, o governo negou gratuidade aos estudantes que faltaram ao exame do ano anterior. Além de seus efeitos na esfera sanitária, a pandemia aprofundou as desigualdades socioeconômicas no Brasil, que se refletiram também na prova. Se em 2020 pretos e pardos representavam mais de 60% dos inscritos, em 2021 esse número caiu para pouco mais de 50%. Entre os estudantes indígenas, a queda no número de inscritos atingiu quase 55%.

Além dos problemas no Enem, o Novo Ensino Médio é alvo de críticas de especialistas em educação. Especialmente polêmicos são os Itinerários Formativos, com 1200 horas divididas entre os três anos do ensino médio, nos quais os estudantes poderão escolher as áreas de conhecimento do interesse (Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Linguagens), incluindo a formação técnica. Há a preocupação, entre educadores e especialistas, de que essa reforma aprofunde as desigualdades no acesso à educação superior. Afinal, escolas privadas, com mais recursos, terão condições estruturais mais adequadas para implementar a nova agenda.

Além do aumento da carga horária, o Novo Ensino Médio também prevê um modelo educacional mais afinado com os ditames do mercado, com uma agenda mais conteudista e menos comprometida com a formação crítica dos estudantes. A reforma também permite que pessoas com "notório saber" assumam as aulas da parte técnica e profissionalizante do novo currículo. Ainda que o MEC diga que as disciplinas tradicionais continuarão a exigir diploma em licenciatura, o fato é que essa brecha causa incertezas entre os professores, com a possibilidade real de precarização do trabalho e de impacto no aprendizado dos estudantes.

Esse descompasso entre o que prevê o Novo Ensino Médio e a realidade das salas de aula nas escolas públicas do Brasil terá impacto direto sobre uma das mais bem sucedidas políticas educacionais implementadas no país, as ações afirmativas. As dificuldades relatadas pelos especialistas pode ter outro efeito: afastar estudantes negros e pobres do Enem, tornando a corrida pelo ingresso nas instituições públicas de ensino superior ainda mais árdua.

E não esqueçamos que a Lei de Cotas será reavaliada em 2022. A despeito do comprovado sucesso do programa, que permite a entrada de alunas negras e alunos negros nos cursos de graduação das universidades, não seria de duvidar que uma ofensiva nesse campo já esteja a caminho. A esperar as cenas dos próximos capítulos.

*Carlos da Silva Júnior é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros.