Como melhorar a transparência e o controle de gastos do fundo partidário?
Imagine uma empresa pública com orçamento anual de R$ 867 milhões comandada por 35 departamentos com ramificações por todo o país e cujos gastos são controlados com base em regras “vagas” e cujas irregularidades sofrem punições muito “brandas”, na avaliação de especialistas ouvidos pela reportagem do UOL.
É assim que poderia ser definido o sistema partidário brasileiro. Em 2015, 35 partidos políticos receberam R$ 867 milhões (entre fundo partidário e multas arrecadadas pela Justiça Eleitoral). Foi o maior valor já destinado pela União aos partidos desde que o fundo foi regulamentado, em 1995.
O fundo partidário, cujo nome oficial é Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, é um montante repassado todos os anos pelo poder público para os partidos formalmente registrados junto ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral). O fundo é formado por meio de destinação de dinheiro do Orçamento, portanto, de impostos, e de multas pagas à Justiça Eleitoral.
Nesta semana, o UOL publicou uma série de reportagens mostrando como os três partidos que mais recebem dinheiro do fundo -- PT, PSDB e PMDB -- gastam esses recursos. Em 2015, o PT foi o partido que mais recebeu recursos do fundo partidário. Foram R$ 116,2 milhões. Em segundo lugar, ficou o PSDB, com R$ 95 milhões. Em terceiro, o PMDB, com R$ 92 milhões.
Especialistas apontam que o uso do fundo precisa de mais transparência na divulgação dos gastos, regras mais claras sobre sua utilização e penas mais duras quando são cometidas irregularidades com o dinheiro.
Veja abaixo como são as regras atuais e como elas poderiam ser melhoradas, segundo especialistas.
Quais as regras de uso do fundo partidário hoje?
A Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995) traz as principais regras para o uso do dinheiro do fundo partidário. Ela diz que as legendas podem gastar na manutenção das sedes e funcionamento dos partidos, incluindo o pagamento de funcionários e gastos com alimentação, e também em propaganda política e campanhas eleitorais.
Além disso, ao menos 20% do total recebido por cada partido deve ser usado para manter uma fundação voltada à pesquisa e educação política, como a Fundação Perseu Abramo, no caso do PT, a Ulysses Guimarães, do PMDB, e o Instituto Teotônio Vilela, do PSDB.
Outros 5% devem ser empregados em programas de incentivo à participação das mulheres na política ou em campanhas eleitorais de candidatas do partido.
Como as regras deveriam ser?
Segundo especialistas ouvidos pelo UOL, a lei é muito vaga, o que deixa espaço para possíveis abusos. "Ela diz, por exemplo, que os recursos devem ser usados na manutenção das atividades partidárias, mas não delimita o que é isso. Fica aberta a diversas interpretações. Qualquer coisa pode ser defendida como manutenção de atividade partidária. A lei precisa ser aperfeiçoada para que ela traga essas respostas", diz Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral e presidente do Idipea (Instituto de Direito Político-Eleitoral e Administrativo).
Quem tem acesso ao fundo partidário hoje?
Todos os partidos registrados oficialmente no TSE. Hoje são 35. Para receber o dinheiro, o único requisito é que os partidos estejam com suas prestações de conta em dia. A Lei dos Partidos Políticos estabelece que 5% do fundo é dividido entre todos os partidos, e 95% proporcionalmente ao número de votos de cada partido na última eleição para a Câmara dos Deputados.
Quem deveria ter acesso?
A coordenadora de pesquisa da ONG Transparência Brasil, Juliana Sakai, e o secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, defendem a implementação de uma cláusula de barreira para limitar o acesso dos partidos ao fundo partidário. Em 2006, o STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou a limitação estipulada pela Lei dos Partidos Políticos de 1995 e que determinava que, para receber recursos do fundo, os partidos precisariam receber ao menos 5% dos votos durante as eleições para deputado federal.
Com a derrubada da cláusula de barreira, porém, basta que um partido esteja formalmente registrado junto ao TSE para que ele comece a receber recursos do fundo partidário. Em 2016, por exemplo, 35 partidos estão recebendo dinheiro do fundo.
Para Castello Branco, a falta de uma cláusula de barreira permite a proliferação das chamadas “legendas de aluguel”: partidos sem caráter ideológico que só existem formalmente, mas que servem para drenar recursos públicos e para “alugar” o tempo de rádio e TV a que têm direito a legendas maiores.
Como é a punição para quem descumpre a lei hoje?
A Lei dos Partidos Políticos diz que em caso de reprovação das contas, o partido fica obrigado a devolver o valor gasto de forma irregular, acrescido de multa de até 20%.
A devolução dos valores é feita por meio da suspensão dos repasses mensais das cotas do fundo partidário a que a legenda teria direito.
Como deveria ser a punição?
Especialistas afirmam que as punições previstas são brandas. Para Gil Castello Branco, as punições impostas aos partidos são "ridículas". "Na maior parte das vezes em que um partido é pego usando dinheiro do fundo de forma irregular, a punição é o ressarcimento desse recurso para a União. Isso é ridículo. É o mesmo que pedir a uma assaltante que é descoberto roubando um banco que sua punição será devolver o dinheiro para o banco. Não chega nem a ser punição", avalia.
Como é o acesso aos dados do fundo partidário hoje?
Outro ponto destacado pelos especialistas é a falta de transparência na prestação anual de contas dos partidos brasileiros. Todos os anos, essa contabilidade é entregue ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em enormes volumes de papel que, somados, podem chegar a ter mais de 10 mil páginas.
Como os documentos não são digitalizados, a única forma de um cidadão verificar como esses recursos foram usados é indo, pessoalmente, ao tribunal. Foi o que fez a reportagem do UOL durante várias semanas nos últimos três meses.
Como deveria ser o acesso?
"As contas dos partidos brasileiros são absolutamente opacas. Se eles usam dinheiro público, deveriam disponibilizar para o público, com muito mais agilidade, todos os seus gastos. Hoje, há tecnologia suficiente para fazer isso. Não precisa nem esperar regulamentação. Basta colocar na internet", diz Castello Branco, do Contas Abertas.
Para o diretor para as Américas da ONG Transparência Internacional, Alejandro Salas, essa forma de prestar contas é “absurda”. “É realmente muito ruim e um absurdo fazer as coisas dessa forma nos tempos atuais. Isso vai contra os princípios do acesso à informação e de um governo aberto”, diz Salas.
Como é a análise de contas dos partidos hoje?
Outro problema identificado pela reportagem no sistema de prestação de contas dos partidos é a demora do TSE em realizar o julgamento das contas anuais. Hoje, o tribunal ainda analisa as contas de 2011 das legendas.
O atraso se deve a uma combinação entre uma equipe reduzida e um sistema de prestação de contas partidárias considerado por técnicos da área como “pré-histórico”, segundo afirmam funcionários da Asepa (Assessoria de Contas Eleitorais e Partidárias), departamento do TSE responsável por uma primeira análise das contas.
São os pareceres da Asepa que vão subsidiar os ministros do TSE informando se há indícios de irregularidades na forma como os partidos usaram os recursos do fundo partidário.
Até 2014, trabalhavam na Asepa seis contadores. Desde o ano passado a equipe que analisa as contas anuais dos partidos é formada por dez servidores. E, nestas eleições, para a análise das contas de campanha, o setor recebeu o reforço de cinco servidores de outros órgãos públicos.
Como a análise de contas deveria ser?
Integrantes da Asepa ouvidos pela reportagem do UOL sob a condição de não terem suas identidades reveladas disseram que o número insuficiente de técnicos e o uso de papel são fatores que atrasam a análise das contas.
Os técnicos também afirmam que o volume de trabalho e o fato de as contas ainda serem entregues em papel impedem que a checagem das contas detecte com facilidade casos de contratação suspeitas. “Não dá pra gente ficar checando todos os sócios de todos os fornecedores, sobretudo porque toda essa documentação vem em papel. É muito complicado”, disse um dos técnicos do TSE.
O presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, afirma que mais técnicos foram contratados para a análise das contas e que foram firmados convênios com outros órgãos de controle, como Receita Federal e Banco Central. “Acho que nós estamos aprimorando o sistema”, disse.
O que o Congresso propõe?
Castello Branco, Rollo e Salas dizem ser difícil de acreditar que um Congresso formado por políticos interessados nos recursos do fundo possa aprovar leis que diminuam suas fatias desse bolo. “É complicado imaginar que eles possam mudar as leis para aumentar a fiscalização. Em geral, eles não legislam contra os próprios interesses. Mas a sociedade está aí para cobrar que isso aconteça”, afirmou Alberto Rollo.
Para Gil Castello Branco, a lógica dos partidos quando se trata do fundo partidário atende aos interesses “dos seus próprios umbigos”. “Embora todos concordem que temos 30 e poucos partidos e que isso é demais, na hora em que se discute uma mudança, a análise é baseada nos próprios umbigos. A análise não está ligada ao interesse público [...] os pequenos partidos se beneficiam desse cenário e os grandes se beneficiam dos pequenos. Infelizmente”, explicou.
Há atualmente no Congresso ao menos 64 projetos que propõem alterações nas regras do fundo partidário. Apenas dois deles, de autoria de deputados do PSOL e do PPS, propõem que os gastos dos partidos sejam publicados na internet a cada um ou dois meses. Os textos, no entanto, estão parados desde junho do ano passado.
A maior parte dos projetos propõe alterações pontuais na forma de distribuir os recursos entre os partidos. Sete deles querem limitar o acesso dos partidos por meio de uma cláusula de barreira, em que teriam direito ao dinheiro apenas partidos com determinado número de votos ou de deputados federais.
Outros dois projetos proíbem que o fundo seja abastecido com dinheiro público e um terceiro limita o valor anualmente repassado aos partidos à variação do PIB (Produto Interno Bruto), principal indicador do desempenho econômico do país.
Alejandro Salas diz acreditar que o cenário no Brasil só mudará quando “ser corrupto se tornar socialmente inaceitável”. “As políticas e reformas que conseguem ter impacto nesse tipo de coisas são aquelas que farão diferença de verdade. É por que isso, por exemplo, é tão difícil para o Congresso brasileiro aprovar as dez medidas contra a corrupção propostas por procuradores do Ministério Público Federal que tiveram a assinatura de três milhões de pessoas”, disse.
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