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Nova TV Brasil é marcada por denúncias de censura e "overdose de governo"

O diretor-presidente da Empresa Brasil de Comunicação, Alexandre Graziani Júnior - José Cruz/Agência Brasil
O diretor-presidente da Empresa Brasil de Comunicação, Alexandre Graziani Júnior Imagem: José Cruz/Agência Brasil

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

25/04/2019 04h00Atualizada em 25/04/2019 12h13

Se você se informasse apenas pela TV Brasil, não teria ouvido nenhuma menção de que o último dia 31 de março marcou os 55 anos de um golpe militar nem que a ditadura no país durou 21 anos. Também não assistiria a reportagens usando o termo "fuzilamento" no caso dos 82 tiros de fuzil disparados pelo Exército contra o músico Evaldo Rosa dos Santos, 46, no Rio. Talvez nem sequer soubesse da renúncia do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ).

Alvo de críticas de Jair Bolsonaro (PSL) durante a campanha eleitoral, o canal público TV Brasil sofreu uma fusão em abril com a TV estatal NBR. A promessa do presidente, entretanto, era de que o canal seria extinto.

A mudança ocorre em meio a uma série de denúncias de censura e superexposição de ações do governo, segundo relatos de funcionários e entidades representativas e de defesa de comunicação pública. Hoje, nem os desenhos animados escapam de cortes para transmissões oficiais a qualquer horário.

Na terça-feira (24), o tema foi debatido na Comissão de Cultura da Câmara, em audiência convocada pelo deputado Chico D'Angelo (PDT-RJ), que contou com a participação de representantes de várias instituições e da direção da empresa.

No primeiro dia de governo, Bolsonaro mudou a gestão da EBC, vinculando a empresa à Secretaria de Governo, por meio da Secretaria Especial de Comunicação Social.

Em 10 de abril, o governo oficializou a fusão de duas TVs que dividiam espaço na EBC (Empresa Brasil de Comunicação]. A TV NBR, que era a emissora estatal que circulava ações governamentais, deixou de existir para se fundir com a TV Brasil, emissora pública que, pela lei, deveria ser independente para promover inclusão social e cultural da comunicação.

A fusão trouxe uma mudança na grade de programação e da linha editorial do veículo, com inserção de material institucional do governo, muitas vezes interrompendo a transmissão do conteúdo exibido. Cerimônias e discursos que antes passavam na NBR ocupam hoje a grade da TV Brasil.

Mas, antes mesmo da fusão, jornalistas ouvidos pelo UOL relataram que havia orientações e atos que classificam como censura a produções de conteúdo de todos os veículos da EBC. O governo afirma que não há censura, que a fusão economiza recursos públicos e que valoriza os trabalhadores.

A empresa hoje tem 1.973 funcionários (1.710 deles concursados), com folha orçada para este ano em R$ 461 milhões --o que representa 75% do total de R$ 617 milhões do custo operacional da EBC previsto para 2019. Isso considerando que Bolsonaro já assumiu a EBC numa versão mais enxuta. Em 2018, dois programas de demissão voluntária resultaram em 349 desligamentos.

Levantamento sobre censura

Apresentação do Repórter NBR - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação
A representante do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação, Renata Mielli, citou que um dos casos de censura mais marcantes foi a proibição de usar os termos "golpe" e "ditadura" nos textos alusivos aos 55 anos do golpe militar.

"A EBC censurou seus funcionários a se referirem ao golpe de 1964 como golpe. Voltamos a aprender que talvez o golpe de 1964 seja uma revolução", afirmou.

Na reportagem da Agência Brasil do dia 31 de março sobre os atos contra e a favor à comemoração dos 55 anos da retirada do poder de João Goulart, a única citação do termo "ditadura" está na fala de um jornalista que defende o golpe e cita que o movimento evitou de entregar "o país ao comunismo e à ditadura do proletariado". Não há citação ao termo "golpe".

O último texto que traz o termo ditadura militar é de 2 de março, ao citar o tema da escola de samba Acadêmicos do Tucuruí. Desde lá, não há mais uso da palavra.

O coordenador do Sindicato de Jornalistas do Distrito Federal, Gésio Passos, afirma que, no começo do ano, a renúncia do então deputado Jean Wyllys não foi divulgada pelos veículos da EBC. "Alegaram que não havia repórteres suficientes para noticiar o fato. Ora, a empresa tem 350 jornalistas só em Brasília", disse Passos.

Na Agência Brasil, a única reportagem que cita a renúncia é a que anuncia a convocação do suplente, David Miranda (PSOL-RJ).

Jornalistas da EBC, em condição de anonimato, confirmaram as proibições e revelaram outros casos, como o veto ao termo "fuzilamento" no caso do músico morto pelo Exército no Rio. "Um email oficial disse que esse não era o termo correto", contou um jornalista.

Já outro disse que houve censura também na cobertura após um ano do assassinato da vereadora Marielle Franco, como a proibição de citar que um dos suspeitos presos morava no mesmo condomínio do presidente. "Há restrições a todo tema que incomode o governo, como a reforma da Previdência", disse.

Passos afirma que as queixas de casos de censura já existiam durante as gestões petistas, mas se agravaram com o impeachment.

"Fizemos um levantamento e, de 2016 até agosto de 2018, foram mais de 60 casos comprovados de censura e de governismo. Casos de edição de matéria, de matérias que não são levadas ao ar, de restrição na própria pauta pela direção", diz.

Segundo dados apresentados por ele, a programação na última semana dedicou em média 18% do noticiário do Repórter Brasil Noite a conteúdo estatal. "No dia 10 de abril, tivemos 64% de noticiário governamental", afirma.

Outro problema são as constantes interrupções da programação para transmissões oficiais. No dia 18, relata Passos, a programação do Dia do Exército ocupou grande parte da manhã e interrompeu toda a programação. "Isso é feito a qualquer horário, quebrando a programação, para transmitir, por exemplo, cantata de Páscoa", afirma um profissional.

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Passos também fala em casos de perseguições a profissionais e assédio moral. "Uma pesquisa feita lá no ano passado mostrou que oito em cada dez jornalistas já sofreu assédio moral dentro da empresa, com ameaça de mudar função, de setor, de cidade. Esse número mostra bem o horizonte que vivemos."

Disse que há uma liminar da Justiça do Trabalho em vigor, a pedido do MPT (Ministério Público do Trabalho), que prevê multa de R$ 50 mil a cada novo caso de assédio moral.

Questionamentos à fusão das TVs

A fusão que resultou na nova TV Brasil é questionada por especialistas e apontada como ilegal. "Criou-se um 'Frankenstein', algo que viola a Constituição", disse, durante a audiência na Câmara, a jornalista Tereza Cruvinel, diretora responsável pela criação da EBC, em 2007.

"A portaria é flagrantemente inconstitucional, ilegal e fere também o regimento da própria EBC. O diretor-presidente não pode mudar [a estrutura] sem passar pelo conselho de administração --já que o conselho curador nem existe mais, foi extinto pelo [Michel] Temer. Essa fusão suprime toda aquela natureza da TV Brasil como TV pública", completa.

Segundo o artigo 223 da Constituição, "compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal".

Já a lei de criação da EBC prega a "autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão", "respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira".

A portaria que uniu as duas TVs é questionada na Câmara por meio de dois projetos de decretos legislativos --de Luiza Erundina (PSOL-SP) e de Rui Falcão (PT-SP)-- que pedem a suspensão da medida.

Direção nega censura e defende fusão

O diretor-presidente da Empresa Brasil de Comunicação, Alexandre Graziani Júnior, defende a nova TV Brasil e diz que a empresa está economizando recursos públicos e valorizando os trabalhadores da empresa.

"Estamos dentro da constitucionalidade. A unificação da TV estatal e TV pública para nós é coerente. Nós estamos publicizando os atos do governo federal e, portanto, está em consonância com a racionalidade e a otimização dos recursos públicos. Valorizamos os colaboradores da casa, estão todos sendo valorizados. A minha presença lá é fundamental para facilitar o trabalho dos colaboradores", disse na audiência.

Graziani negou todas as denúncias de restrição a conteúdo. "A censura em nenhum momento, na minha gestão, até quando era gerente de tecnologia e agora gestor principal, houve qualquer orientação formal ou informal a respeito de censura. Trabalhamos a neutralidade, sem ideologia, com imparcialidade, com a vida como ela é. A EBC não produz fake [news]", afirmou.

Durante o encontro, ele ainda pediu que os trabalhadores e entidades confiem na EBC. "Eu estou pedindo um voto de confiança, solicitando um voto de vocês sobre esse nosso trabalho. Estou em contato constante com os nossos colaboradores", disse.

Criada em MP por Lula

A EBC foi criada em outubro de 2007 por medida provisória do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e herdou herdou os canais de rádio e TV geridos pela estatal Radiobrás e pela Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto (Acerp). Também foi criada, em dezembro daquele ano, a TV Brasil --que diversas vezes foi chamada de "TV do Lula".

Com a EBC foi criado um fundo para financiar a comunicação pública: a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, que arrecada dinheiro junto às empresas de telecomunicação.

Na prática, entretanto, o governo não usa esse dinheiro para bancar a EBC. Atualmente, o fundo possui R$ 2,5 bilhões em caixa, dinheiro suficiente para pagar quatro anos de funcionamento da empresa. Somente no primeiro trimestre de 2019 foram R$ 180 milhões arrecadados, segundo dados da Anatel (Agência Brasileira de Telecomunicações).