Ex-secretário diz que suspensão de edital da Ancine foi ilegal
Em depoimento prestado no último dia 26 de setembro ao Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, José Henrique Medeiros Pires, ex-secretário especial de Cultura do Ministério da Cidadania, disse que a decisão do governo federal de suspender um edital da Ancine "não se encontra motivada", ou seja, não está baseada em critérios legais.
Pires pediu demissão do cargo em 21 de agosto, mesmo dia em que o governo Jair Bolsonaro (PSL) publicou a portaria cancelando um edital da Ancine, de R$ 70 milhões, para produções de audiovisual para emissoras de TV públicas.
O ex-secretário apresentou ao MPF cópia de documentos do processo administrativo, e relatou que recebeu um pedido por parte do chefe de gabinete do ministro Osmar Terra (Cidadania), para que analisasse e se manifestasse "com urgência" sobre a minuta da portaria para suspender o edital. Hoje o MPF moveu ação de improbidade administrativa contra Terra.
Segundo a testemunha, a minuta não se encontrava devidamente justificada e tratava-se, em seu entender, de "mais uma tentativa de chancelar o que o presidente havia dito, isto é, não veicular conteúdos que não lhe agradem".
Em resposta, Pires enviou um ofício que foi ignorado por Terra, no qual afirmou que os critérios do concurso só poderiam ser revisados com base na Constituição.
Além desse documento, o setor de controle interno da secretaria havia emitido parecer, dois dias antes do cancelamento do edital, alertando que o ministério deveria apresentar uma justificativa técnica e a motivação para a suspensão do concurso, o que não foi feito pela pasta.
No depoimento, Pires afirmou ter dúvidas sobre a competência do ministro da Cidadania ou do secretário especial de Cultura para suspender projetos e concursos em andamento, justamente porque esses projetos já estavam aprovados previamente e o edital é o resultado de um conjunto de deliberações feitas pelo Conselho Nacional de Cinema e pelo comitê gestor do Fundo Setorial do Audiovisual.
O ex-secretário afirmou ainda que o ministro não tem ingerência sobre a Ancine, uma agência reguladora com independência e autonomia e por isso não poderia desrespeitar os procedimentos e trâmites da agência.
Para o ex-secretário, um concurso só poderia ser cancelado em virtude de grave ilegalidade ou suspeita de fraude. O edital já estava na fase final para a qual haviam sido selecionadas 289 das 801 propostas inscritas.
O concurso não previa somente recursos para produções com temática LGBT. O concurso previa recursos para produções de TV de 14 temas: "Livre", "Ficção Profissão", "Ficção Histórica", "Sociedade e Meio Ambiente", "Raça e Religião", "Diversidade de Gênero", "Sexualidade", "Biográfico", "Manifestações Culturais", "Qualidade de Vida", "Jovem", "Documentário Infantil", "Animação Infantil" e "Animação Infanto-Juvenil". Os produtos aprovados seriam disponibilizados para emissoras de televisão públicas de todo o Brasil.
No depoimento, Pires afirmou ter achado estranho que Bolsonaro, em transmissão de 15 de agosto em suas redes sociais, tenha mostrado conhecimento sobre projetos que ainda estavam disputando o edital, pois o concurso transcorria sem que as autoridades de Brasília tivessem acesso aos resultados parciais.
O ex-secretário de Cultura do Ministério da Cidadania afirmou no depoimento que nem ele sabia, até aquele momento, quais eram os classificados para a próxima fase e suspeita de que houve vazamento das informações do concurso para a equipe do presidente.
O UOL ainda não conseguiu contato com a defesa de Terra. À Folha de S. Paulo, o Ministério da Cidadania, questionado sobre a investigação do MPF que resultou na ação proposta hoje, respondeu que o governo resolveu suspender o edital "com a intenção de analisar os critérios de sua formulação".
Segundo a pasta, o concurso previa a possibilidade de suspensão ou anulação. Segundo a nota, "o edital suspenso não havia sido discutido por esse governo".
Não aceitou censura
Pires contou no depoimento como foi sua saída do Ministério. Ele conta ter sido chamado por Terra ao gabinete do ministro que lhe teria dito não estar satisfeito com a forma conciliadora como ele lidava com a secretaria e que precisava de alguém "mais veemente no trato".
Pires afirmou ao MPF que então colocou o cargo à disposição. O ministro chegou a lhe oferecer outros cargos na pasta, mas o ex-secretário não aceitou em virtude do episódio: "se é para ficar batendo palmas para a censura, prefiro me retirar", contou.
Outra questão que contrariou o ex-secretário foi o fato de o ministro ter levado ao presidente, em julho, uma pauta com compromissos na área de cultura, entre as quais a transferência da Ancine do Rio para Brasília e "juízos de valor com relação ao que deveria ser aprovado com recursos públicos", dois pontos com o qual Pires discordava e sobre os quais não foi consultado.
Filtros
Segundo Pires, o ministro pretende que a secretaria de Cultura do ministério da Cidadania tenha filtros contra coisas que vão contra a família e que os recursos da União devem ser direcionados para o que o governo acha que deva ser estimulado.
O ex-secretário afirma que a Constituição garante a liberdade de expressão e que aos governantes não está autorizado fazer juízos de valor sobre uma obra de arte.
"Os administradores públicos devem ter como bíblia a Constituição. Na vida privada, podem seguir qualquer outro livro", disse Pires ao MPF, lembrando que alertou Terra sobre os riscos que a censura poderia causar ao governo.
Pires afirmou no depoimento se preocupar com a aura moralista que vem preponderando no Brasil e que isso se propague. Segundo contou, ele já testemunhou episódios de autocensura por parte de produtores culturais e contou ao MPF que o cartaz da exposição sobre a obra do artista Man Ray, no Centro Cultural Banco do Brasil, foi mudado pela produtora do evento para evitar problemas com o patrocinador estatal.
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