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Isolamento: lei embasa governadores, e embate com Bolsonaro pode ir ao STF

Os governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) - Reprodução/Twitter
Os governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) Imagem: Reprodução/Twitter

Rodrigo Mattos

Do UOL, no Rio

01/04/2020 04h00

A legislação permite que governadores e prefeitos imponham medidas de isolamento social para combater o novo coronavírus, e uma possível disputa entre eles e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre a questão deve ir ao STF (Supremo Tribunal Federal), segundo especialistas em direito constitucional e administrativo consultados pelo UOL.

Para eles, em meio à pandemia da covid-19, eventuais ações contra o confinamento podem ser consideradas inconstitucionais.

Irritado com medidas de restrição adotadas pela maioria dos estados, Bolsonaro atacou governadores e disse, no domingo (29), cogitar um decreto para acabar com o confinamento. Do outro lado, governadores dizem que reagirão com ações na Justiça.

A pedido do UOL, os especialistas analisaram as seguintes questões:

1) Quem tem o poder para determinar o isolamento social?
2) Se houver conflito entre o presidente e governadores, ou o governador e o prefeito, qual ordem prevalece?
3) Bolsonaro tem o poder de acabar com todo o isolamento social imposto por outras autoridades como defendeu no domingo?

"Lei do coronavírus" x ação de governadores

Pela Constituição, em seu artigo 23, cuidar da saúde da população é uma competência da União, dos estados e dos municípios. Em fevereiro, foi aprovada uma lei federal (nº 13.979) para regulamentar o combate ao coronavírus. Essa legislação permite que as autoridades tomem medidas como quarentenas e isolamento desde que com autorização do Ministério da Saúde.

Para Rodrigo Brandão, professor de Direito Constitucional da Uerj, não há conflito entre a "lei do coronavírus" e as ações de governadores como João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ).

A lei de fevereiro já prevê a quarentena, a realização compulsória de isolamento. Os estados foram além. Sobretudo Rio e São Paulo perceberam a necessidade de adotar medidas mais radicais, como fechar comércio. Não descumpriram a norma, estão indo além por ter tido a pandemia
Rodrigo Brandão, professor de Direito Constitucional da Uerj

Ele pondera, contudo que, se Bolsonaro editar um decreto para acabar com qualquer isolamento — conforme o presidente afirmou no domingo) —, a medida será considerada inconstitucional.

"Do jeito que a pandemia já se expande, é menos uma questão de quem é competente. Qual norma protege mais a população? A OMS continua a orientar medidas de isolamento social. Medidas de isolamento são necessárias pelo consenso. Decreto para reabrir tudo, como era antes da pandemia, será inconstitucional na sua origem porque não protege a população", analisou.

Posição similar é manifestada pela advogada Flávia Bahia, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional na PUC-RJ e professora da FGV-RJ.

Presidente não pode anular decretos dos governos. Não há hierarquia entre decretos federais e estaduais. Nós cairíamos em uma inconstitucionalidade [se ele editasse um decreto para liberar]. A lei estabelece a todos os entes federativos a gestão em crise pública. Ele estaria interferindo em prerrogativas de municípios e estados
Flávia Bahia, professora da FGV-RJ

A Justiça Federal do Rio, ainda em primeira instância, já suspendeu trechos de outro decreto editado por Bolsonaro para transformar lotéricas e igrejas em serviços essenciais e, com isso, reabri-las. A alegação do juiz Marcio Rocha, da Vara de Duque de Caxias, foi de que haveria o risco de aglomerações e que afetaria as medidas de isolamento.

"No exemplo das igrejas, o que o juiz disse: qualificar a igreja para fins de serviço público está atrapalhando uma política mundial de combate à pandemia. Se não gera prejuízo para toda população, e não gera, esse tipo de atividade não é caracterizada pela essencialidade. Então não tem a natureza do serviço público. Se forem interrompidos os cultos, é diferente de uma interrupção do metrô", afirma Rafael Veras, doutorando e mestre em Direito da Regulação pela FGV.

Restrição a comércio e transporte

Outra questão é que a abertura do comércio, no entendimento dos especialistas consultados, é uma prerrogativa dos municípios por princípio. Mas isso pode mudar em questões de saúde pública.

"A realidade de grandes municípios é bem diferente dos rurais. Se entendermos que é assunto local, é competência do município. Em outro lado, em matéria de saúde pública, espera-se que a União trace orientações gerais entre o que é correto e o que não é correto. Que ele edite as normais gerais", diz Patrícia Sampaio, doutora em Direito pela USP.

O setor de transportes tem normas mais claras. Linhas municipais são reguladas pelas prefeituras; as intermunicipais, pelo Estado; no caso de viagens para fora dos estados, como por aeroportos, é regido pelo governo federal. Assim, Witzel não poderia fechar acessos dos aeroportos do Rio como chegou a cogitar entre suas medidas.

Em caso de disputa, palavra final é do STF

Se há pontos em que não há certeza de quem é a autoridade responsável, os especialistas em direito constitucional entendem que, diante do conflito, só uma decisão do STF poderá determinar com clareza qual esfera terá o poder sobre cada medida.

E aí há a possibilidade de o Tribunal levar apenas em conta a lei para tentar determinar a prerrogativa de cada governo ou os ministros podem analisar também o mérito do caso, isto é, o bem-estar da população.

"A judicialização e politização são fenômenos conjuntos. A Constituição é muito densa e dá margem para inúmeras interpretações. Não acho que tenha uma decisão tão cartesiana sobre isso no STF. A Constituição não determina claramente quem faz o que na pandemia", analisou a professora Flávia Bahia.

Até agora a única decisão do STF sobre o assunto foi uma liminar negada pelo ministro do STF Marco Aurélio ao PDT em que pedia a anulação da medida provisória do governo federal que flexibilizava a legislação trabalhista por conta da epidemia do coronavírus. Em sua decisão, ele disse que a União tinha competência em questões de saúde, mas as determinações de governo e município deveriam ser mantidas. Ou seja, não definiu se uma posição se sobrepunha a outra.