De miss a peça-chave da rachadinha: a vida da 2ª mulher de Bolsonaro
Fazia frio quando a advogada Ana Cristina Siqueira Valle, 53, chegou a Brasília em 17 de julho de 2020, uma sexta-feira, para visitar o filho mais novo, Jair Renan Valle Bolsonaro, 22. Os dois não se encontravam havia algum tempo por causa da pandemia do coronavírus.
Naquele fim de semana, a programação de mãe e filho incluiu churrascos com amigos do rapaz - um deles, com a presença de Allan dos Santos, fundador do site de extrema-direita Terça Livre - e uma visita ao estádio Mané Garrincha, onde Jair Renan inauguraria, algum tempo depois, o Camarote 311, seu primeiro negócio, no último mês de outubro.
Eram os primeiros passos de um plano que seria concretizado no começo de 2021. No dia 28 de janeiro, entre um telefonema e outro, a segunda ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) atendeu o UOL enquanto arrumava as malas e colocava para alugar, por cerca de R$ 6 mil mensais, sua ampla casa no bairro Morada da Colina, em Resende, cidade localizada no sul do Rio de Janeiro.
"O filho pede 'help' e a mãe atende", explicou Ana Cristina sobre a mudança.
Dez dias depois dessa conversa, ela desembarcou novamente na capital do país. Voltava a morar em Brasília, após 20 anos, uma peça-chave para se entender os meandros do escândalo que acossa a família presidencial desde fins de 2018: o caso das rachadinhas, nome pelo qual é conhecido o esquema de devolução ilegal de salários de assessores.
Ana Cristina também pavimenta uma candidatura a deputada distrital no Distrito Federal em 2022. Sua primeira tentativa de alcançar um mandato parlamentar ocorreu em 2018. Naquele ano, apesar de nunca ter adotado o sobrenome do ex-marido, Ana Cristina passou a usá-lo para concorrer a deputada federal pelo Rio de Janeiro. Filiada ao Podemos, obteve 4.555 votos e não conquistou uma cadeira.
"Vou advogar em Brasília. Não vou montar um escritório, mas o que aparecer eu vou pegar. E vou ajudar no Camarote 311. Vou administrar, empresariar, o que for necessário. Sou pau para toda obra", contou, em tom de anúncio. A empresa do filho fornece "serviços de organização de feiras, congressos, exposições e festas".
Articulada, porém "administrada"
Quem conhece a família Bolsonaro garante: Renan não seria capaz de pensar sozinho em articulações de negócios. "Ele é ainda um adolescente que gosta de baladas, de beber e de pegação", afirma um interlocutor da advogada.
Desde a viagem, em julho do ano passado, até a mudança, Ana Cristina fez conexões em Brasília, e aproveitou eventos como o casamento de Anna Carolina Noronha, filha do ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) João Otávio de Noronha, em setembro de 2020, para estabelecer relações.
A mãe de Jair Renan assumiu a administração da empresa quando o filho do presidente passou a ser alvo do MPF (Ministério Público Federal) e da PF (Polícia Federal). As investigações apuram tráfico de influência no negócio, que envolveu fornecedores com interesses no governo federal.
Esse percalço jurídico é mais um a rondar a relação entre Ana Cristina e Jair Bolsonaro desde que os dois se uniram no final dos anos 1990. O mais característico problema com a Justiça que liga o ex-casal são as investigações abertas pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) sobre as rachadinhas nos gabinetes dos filhos de Bolsonaro.
Ana Cristina é alvo de uma apuração sobre um suposto esquema de nomeação de funcionários fantasmas e repartição ilegal de salários no gabinete do vereador da cidade do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, de quem a ex-mulher do presidente foi chefe de gabinete por sete anos, entre 2001 e 2008. Dez parentes dela são investigados junto com o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o policial militar Fabrício Queiroz, em outro processo.
Nas palavras de alguém que convive com o clã, Ana Cristina sabe muito e precisa ser administrada. A vida e o patrimônio de Jair Bolsonaro antes dela tinham um contorno e se transformaram definitivamente após a união. E, quem a conhece, conta que ela não deixa o presidente esquecer disso. Uma das pessoas que se aproximaram para cumprir este papel gerenciador foi o advogado Frederick Wassef, recém-contratado por Jair Renan.
Uma miss se casa com um militar
Ana Cristina Siqueira Valle é a segunda de cinco irmãos. Filha do casal Henriqueta e José Procópio Valle, nasceu em Resende, onde fica a Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), no dia 13 de maio de 1967. Aquele era o segundo mês do governo do marechal Arthur da Costa e Silva, segundo presidente da ditadura militar do Brasil. O período foi marcado por uma escalada de violência que culminaria em mais de 400 perseguidos políticos mortos ao fim do regime.
Como muitas famílias brasileiras, os Siqueira Valle estavam alheios à ditadura. Passaram boa parte daqueles anos em apuros financeiros. Dona Henriqueta vendia produtos de beleza e arrumava diversos biscates para complementar a renda, enquanto o marido, José Procópio, atuava como representante comercial. Embora fossem de Resende, algum tempo depois do nascimento de Ana Cristina, eles se mudaram para São Paulo.
Mais tarde, seguiram para o estado de Minas Gerais e se estabeleceram em Juiz de Fora, outra cidade marcada na história da ditadura. De lá, em março de 1964, partiram as tropas do general Olímpio Mourão Filho para deflagrar o golpe militar. E foi nessas terras mineiras em que Ana Cristina cresceu. Ainda menina, era a Tina. Quando adulta, Bolsonaro a apelidou de Cricri, em alusão às constantes brigas do casal.
Por cerca de vinte anos, os Siqueira Valle viveram no alto da rua Ribeiro de Abreu, número 635, no bairro Bairu, em Juiz de Fora. Lá, alugaram o apartamento 102 do edifício Sereno. "Fomos vizinhos de porta, criados juntos", relata Ricardo Martins, amigo de infância de Ana Cristina. "Logo que asfaltou o morro, eu ganhei uns patins. Ela também tinha, e a gente descia o morro de patins. Ninguém nunca caiu." A vizinha com quem brincava na rua, diz Ricardo, foi uma de suas paqueras.
Desde pequena, a beleza de Ana Cristina chamava a atenção. A combinação do cabelo castanho claro — comprido e sem qualquer tintura — com os olhos cor de mel, somados a um corpo esguio, levaram-na a se destacar em concursos de beleza.
Aos 15 anos, em setembro de 1982, ela foi escolhida Miss Primavera no concurso organizado pelo colégio onde estudava, a Escola da Comunidade Monteiro Lobato. Meses depois, em maio de 1983, o jornal Tribuna de Minas registrou que ela ganhou o título de "Garota Cenecista de 1983". Com o linguajar de época, em claro subtexto machista, a nota descreveu a vitória dizendo que "indiscutivelmente, venceu a mais bonita e elegante, o broto Ana Cristina Siqueira Valle, representando a Escola da Comunidade Monteiro Lobato". Ela tinha apenas 16 anos.
Os antigos vizinhos lembram que, envolvida pelos concursos e comentários sobre sua aparência, ela costumava dizer que tinha nascido para ser rainha. Ana Cristina não se conformava com as dificuldades financeiras enfrentadas pela família. "Era uma vida no limite", relatou um outro amigo. Os pais, porém, viviam endividados e José Procópio chegou a perder móveis de casa para quitar contas.
Na memória de amigos da família Siqueira Valle ouvidos pelo UOL, ficou marcado como as mães, em um raciocínio da sociedade da época, educavam as filhas incentivando-as a se casar com militares. De geração em geração, as mulheres repetiam que militares eram bons maridos porque tinham carreiras estáveis e poderiam sustentar a família. "Ela sempre dizia que ia casar com militar e casou mesmo", contou Ricardo Martins, o vizinho de Juiz de Fora.
Ana Cristina cumpriu, em parte, o papel pensado para ela. Em um fim de ano, quando a família voltou a Resende para o Natal, ela conheceu um cadete, Ivan Mendes, em uma formatura da Aman e engatou um namoro sério com o rapaz.
Se, por um lado, a mãe tentava fazer a cabeça da filha para se casar com um militar, por outro, Ana Cristina enfrentava o pai para ir a festas na adolescência e namorar Mendes. "Ninguém a intimida. Ela aprendeu a brigar com homens enfrentando o pai. Se eu fosse psicólogo, apostaria que os conflitos com o Jair também eram por causa disso", palpita outra pessoa daqueles tempos.
Ivan Mendes e Ana Cristina se casaram em 1986. Ela tinha apenas 19 anos. O controle do pai ficou para trás, mas o novo marido também fez com que ela abandonasse os concursos de beleza. O casal teve um filho, que recebeu o nome de Ivan, em homenagem ao pai.
Bolsonaro entra em cena
A revista masculina Sexy registrou, em uma reportagem de 1997, que a vida sexual no Congresso Nacional era repleta de bastidores picantes. Um dos episódios narrados envolvia o já capitão Ivan Mendes. Segundo a publicação, o militar esperou Jair Bolsonaro no estacionamento da Câmara e deu um soco no olho direito do então deputado federal. Bolsonaro nem reagiu. Um "climão" estava consumado.
Aquele foi o desfecho da relação entre Ivan e Ana Cristina, que já viviam em Brasília desde o começo dos anos 1990. Ele ainda servia como militar da ativa. Ela tinha se tornado assessora do deputado federal Jonival Lucas, do Partido Progressista Brasileiro (PPB) da Bahia. O casal tinha qualidade de vida, mas ainda distante do conforto que Ana Cristina sonhava quando passou a frequentar manifestações em defesa de aumento salarial para militares.
Em um desses atos, na Quadra 103 da Asa Norte, Ana Cristina discursou e chamou a atenção do deputado Jair Bolsonaro, então colega de partido de Jonival Lucas. Os dois foram apresentados e acabaram se envolvendo, mesmo que ainda estivessem casados com outras pessoas. Bolsonaro era marido de Rogéria Nantes Nunes Braga, mãe de seus três filhos mais velhos (Flávio, Carlos e Eduardo).
A separação de Ivan se concretizou quando Ana Cristina engravidou, em 1997. O casamento de Bolsonaro e Rogéria, já em crise, finalmente terminou —não sem que as rusgas também se tornassem públicas, já que ela era vereadora do Rio à época. Algum tempo depois, a primeira mulher chegou a acusá-lo de tentar manchar seu nome para prejudicá-la na eleição municipal de 2000.
Depois da briga no estacionamento da Câmara, Ivan Mendes aceitou a separação e Ana Cristina continuou vivendo com o ex-marido por alguns meses, já grávida do quarto filho de Bolsonaro.
A gestação foi um período complicado. O novo casal demorou a se entender, inclusive, porque os pais de Ana Cristina não aceitaram bem a separação. O próprio Bolsonaro expôs um pouco do clima difícil para a revista IstoÉ Gente, em 2000.
Em mais uma entrevista polêmica, Bolsonaro foi questionado sobre a legalização do aborto. Respondeu: "Tem que ser uma decisão do casal". A repórter emendou: "O senhor já viveu tal situação?". De bate-pronto, ele disse: "Já. Passei para a companheira. E a decisão dela foi manter. Está ali, ó", disse, apontando para um retrato de Jair Renan, que à época tinha cerca de 1 ano e meio.
Foi só no fim da gestação que as coisas começaram a acalmar. Bolsonaro foi se apresentar para a família da segunda esposa em uma casa no bairro Santa Catarina, em Juiz de Fora, para onde os Siqueira Valle tinham se mudado. Com a mania de apelidar todo mundo, saiu chamando o pai da nova companheira de "Procópo", pois seu José Procópio gosta de uma cervejinha, e foi amaciando o novo sogro.
O bebê nasceu em 10 de abril de 1998, na Casa de Saúde São José, no Rio de Janeiro. Apesar de já estarem juntos, foi Ana Cristina quem registrou o filho no cartório: "Renan Valle". E, como cerca de outros 5,5 milhões de crianças no Brasil , segundo dados de 2019 do Conselho Nacional de Justiça, o menino foi mais um brasileiro que teve pai "desconhecido" ou "não declarado" no primeiro documento de identificação.
Interlocutores de Bolsonaro relataram ao UOL que ele exigiu um exame de DNA. O reconhecimento da paternidade só ocorreu depois do teste, e uma nova certidão foi expedida pela 5ª Circunscrição do Registro Civil das Pessoas Naturais (Freguesias Lagoa e Gávea), no Rio de Janeiro, em 1º de fevereiro de 2001.
Nesse novo documento, a identidade do "filho 04" foi alterada para Jair Renan Valle Bolsonaro. Em 2018, Ana Cristina deu sua versão à revista Época sobre a mudança do nome. "Eu queria só Renan", contou. "Ele disse: 'Não, não vai ser Renan, vai ser Jair Renan. Não consegui botar nem um nome de filho meu de Jair, esse vai ter'."
Armas distribuídas pela casa
Ana Cristina foi viver em um apartamento que Bolsonaro tinha comprado na rua Visconde de Itamarati, nos arredores do estádio do Maracanã, na Zona Norte do Rio.
Era o único imóvel em nome de Bolsonaro, a primeira casa que ele comprou para si depois de quase dez anos atuando como parlamentar e após mais de uma década no Exército. Ou seja, mais de 20 anos de trabalho. O local também fica a poucas quadras de onde o então deputado vivia com Rogéria e os filhos do primeiro casamento.
A aquisição, em 3 de abril de 1997, se deu ao longo do processo de separação de Rogéria - o divórcio só saiu em 1999. Com um cheque de R$ 90 mil da agência bancária da Câmara dos Deputados, Bolsonaro quitou o apartamento no momento da compra. A planta tinha cerca de 190 metros quadrados e varanda, mas não ficava em um edifício com grande infraestrutura, nem era luxuoso.
Três meses depois, em julho de 1997, Jair Bolsonaro comprou outro imóvel, uma casa simples na vila histórica de Mambucaba, perto da praia, em Angra dos Reis. Ele disse que pagou R$ 20 mil; na época, o imóvel valia R$ 70,4 mil. A casa, que se tornou um "xodó", com o tempo reuniu histórias que ilustram a personalidade do presidente da República, desde o gosto por armas até sua relação com Ana Cristina.
Uma pessoa que passou um fim de semana com o casal em Angra contou um inusitado episódio sobre a intimidade da família. Quando os convidados chegaram, Ana Cristina os recebeu e mostrou a casa. Pouco depois, chegou Bolsonaro. Bem a seu estilo informal, vestia apenas uma sunga e tinha uma pistola pendurada nela. "A Cristina apresentou a casa e agora eu vou apresentar as armas", disse Bolsonaro.
Em seguida, o anfitrião foi em direção à sala e mostrou outra pistola, que guardava em cima do móvel onde estava a televisão. Depois, guiou os visitantes até a cozinha e mostrou mais uma arma, sobre a geladeira.
Ao finalizar o tour, explicou-se: recordou que tinha ameaçado o presidente Fernando Henrique Cardoso no programa "Câmera Aberta", na TV Bandeirantes, algum tempo antes. No vídeo, entre um absurdo e outro, bradou: "Através do voto, você não vai mudar nada neste país. Nada, absolutamente nada. Você só vai mudar, infelizmente, quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando 30 mil, e começando por FHC".
Por fim, orientou os visitantes dizendo que, como estava recebendo ameaças, precisava se prevenir. "Se acontecer algo, vocês já sabem o que fazer", disse. Também eram costumeiros os passeios de barco em que Bolsonaro levava os convidados para vê-los ficarem nauseados pelo movimento das ondas. "Que mocinhas", dizia aos homens.
Ana Cristina, que há muito sonhava com uma vida mais confortável, não gostava de passar férias na casa em Angra. Certa vez, tentando convencer o marido a ir a Cancún, no México, se irritou: "Jair, você é muito jacu. Só quer ficar em Mambucaba", disparou. O casal acabou, depois, viajando.
Os dois viveram mais um atrito quando ela exigiu a construção de uma suíte, mais próxima à praia, no terreno em Angra. Queria privacidade, Bolsonaro cedeu. Tempos depois, outra briga se deu quando ela cismou em comprar um iate. Ele estava satisfeito com um barco que tinha para pescar. Ela, não. "Tem dinheiro para isso", dizia Ana Cristina. O impasse não foi resolvido. Nem o casamento.
Brigas levam o casamento ao fim
As brigas por dinheiro e pela gestão das finanças familiares foram se avolumando ao longo dos anos. Quando foi construir uma vida com Bolsonaro, Ana Cristina não levou bens. Sequer tinha ensino superior. Mas já agregava experiências em cargos federais —-além de assessora na Câmara dos Deputados, foi secretária no Ministério de Integração Nacional e trabalhou na presidência da República no governo FHC, antes das ameaças de Bolsonaro ao tucano. Procurado, o ex-presidente disse que não se recorda dela.
Com o tempo, o grande trabalho de Ana Cristina se tornaria o de gestora financeira de Jair Bolsonaro e sua família. Ela é descrita por muitos como engenhosa, alguém que sabe aonde quer chegar e faz o que for necessário para atingir seus objetivos. Quando Jair Renan ainda era bebê, em 1999, Ana Cristina voltou aos bancos escolares e foi cursar direito na Universidade Estácio de Sá.
Após a separação de Rogéria, Bolsonaro trabalhou para tirar a primeira mulher não apenas de sua vida pessoal, mas da política. Escalou o filho Carlos Bolsonaro, então com apenas 17 anos, para disputar uma vaga na Câmara Municipal do Rio. "Isso prova o desequilíbrio mental e psicológico do deputado", afirmou Rogéria à imprensa, ao apontar o ex-companheiro como o responsável por uma agressão a um de seus assessores durante a campanha eleitoral de 2000.
Bolsonaro teve sucesso na estratégia e designou a nova companheira, Ana Cristina, para tomar conta do mandato do filho vereador, em 2001, como chefe de gabinete. Bolsonaro seguiu com seu salário de deputado federal: R$ 12,7 mil, em valores de 1999.
Como chefe de gabinete, Ana Cristina ganhava, no início, R$ 6.094,69, com benefícios. Enquanto trabalhava na Câmara Municipal, ela continuou a faculdade e se formou em 2005. No ano seguinte, passou no exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). No entanto, sua principal função foi ajudar Bolsonaro a coordenar os gabinetes da família.
Depois da eleição de Carlos para vereador, Flávio Bolsonaro assumiu um mandato na Assembleia Legislativa do Rio em 2003. Para comandar o gabinete do segundo enteado, Ana Cristina escolheu uma de suas melhores amigas: Mariana Motta. Ela ficou no cargo quase ao mesmo tempo que a madrasta do deputado estadual. Ambos os filhos de Bolsonaro mal suportavam a madrasta. "No início, eles arrotavam e peidavam perto dela o tempo todo. Ela não parava de dizer: 'Jair, olha esses filhos aí me enchendo o saco'", revelou um amigo.
Ao mesmo tempo em que o pai comandava os filhos na política, a madrasta administrava as finanças da família. Juntos, os dois viraram um caso de sucesso no mercado. Como a revista Época mostrou no ano passado, eles compraram, ao longo de 10 anos, um total de 14 imóveis, cinco deles quitados em dinheiro vivo. Em uma década, o casal trocou o apartamento na Zona Norte por uma mansão na Barra da Tijuca, na Zona Oeste, com direito a piscina e na mesma vizinhança do ex-jogador de futebol Zico. Ana Cristina também comprou uma casa para os pais voltarem a viver em Resende e saírem do aluguel.
O patrimônio chegou a cerca de R$ 3 milhões em 2008, o que, atualizado pela inflação, ultrapassa R$ 5 milhões. Em 2013, Ana Cristina cumprimentou a socialite Mariana Mesquita, em uma rede social. "Oi Mare. Quanto tempo, te vi no programa Mulheres Ricas e fiquei muito feliz por você", escreveu ao recordar que foram vizinhas. Mariana não respondeu.
Dessa época ficou a amizade com pessoas que se tornaram personagens nacionais. Uma delas é Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio e amigo íntimo do presidente Jair Bolsonaro. Por anos, ele nunca esqueceu de cumprimentar Ana Cristina em seu aniversário. "Parabéns, atrasado mais (sic) sincero", escreveu ele, em 14 de maio de 2017, um dia depois da data correta.
Publicamente, Ana Cristina não admite qualquer erro ou mesmo influência na política da família Bolsonaro. Mas deixou passar um ato falho. Em seu próprio currículo na rede social LinkedIn, ela escreveu que trabalhou na Câmara de Vereadores e na Alerj, ao mesmo tempo, até 2008.
Porém, o que melhor evidencia sua influência são as nomeações de 18 de seus familiares como assessores em gabinetes dos Bolsonaro. Como revelou o UOL, ela guardava os cartões bancários dos parentes para que pudesse gerir os salários, e chegou a ficar com R$ 54 mil da conta de uma irmã que foi funcionária fantasma de Jair Bolsonaro. Ana Cristina diz que não tem conhecimento disso e nega qualquer irregularidade.
Marta Valle, cunhada de Ana Cristina, admitiu à revista Época que não trabalhava para Carlos, apesar de constar como assessora do vereador por quase dez anos, entre 2001 e 2009. Um amigo das duas diz que a parente foi usada.
"Quando saiu esse troço, ela [Marta] ficou nervosa porque ela nem sabia que o nome dela estava envolvido", afirmou o amigo de infância Ricardo Martins. "Ela está indignada até hoje. Usou o nome dela (sic), pegava o salário dela, nem sabia que estava registrada. Agora os outros irmãos, não. A Andrea, a mãe e o pai sabiam", completou.
Quando a separação de Ana Cristina e Jair Bolsonaro se consumou, em meados de 2007, mais dados de que o casal tinha receitas fora dos empregos vieram à tona. Como o casamento nunca foi oficializado, a separação de bens foi parar na 1ª Vara de Família do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Lá, ela contou que a "próspera condição financeira" do companheiro era de uma renda de R$ 100 mil mensais.
Ana Cristina, porém, nunca explicou a origem desse valor. Oficialmente, o salário bruto de Bolsonaro na Câmara na época era de R$ 26,7 mil, somado a outros R$ 8,6 mil como militar da reserva. O dela tinha aumentado para R$ 10 mil. O caso foi revelado pela revista Veja, quando Bolsonaro disputava a presidência em 2018.
Depois de muitas discussões, com direito a acusações de ameaça de morte e roubo, o casal entrou em acordo em 2011. A advogada ficou com nove imóveis, a maior parte dos bens. No acordo, porém, ela abriu mão da guarda de Jair Renan, que cresceu aos cuidados de Bolsonaro e de Michelle, a terceira mulher do presidente e atual primeira-dama, com quem o rapaz nunca se deu muito bem.
Com a venda de um apartamento e cinco terrenos, Ana Cristina obteve mais de R$ 2 milhões e passou alguns anos vivendo na Noruega, onde se casou novamente. Quando retornou ao Brasil, seguiu fazendo negócios com dinheiro em espécie. Em 11 de outubro de 2013, comprou um terreno de 420 metros quadrados e, conforme a escritura, pagou R$ 135 mil em dinheiro vivo. Nesse local, no bairro da Morada da Colina, em Resende, ergueu uma casa de dois pisos, quatro quartos e piscina - o mesmo imóvel que ela deixou para voltar a Brasília e que agora tenta alugar por R$ 6 mil.
Além desse imóvel, avaliado em mais de R$ 1 milhão, o patrimônio de Ana Cristina é composto pela casa dos pais, também em Resende, estimada em mais de R$ 260 mil; duas salas comerciais no centro do Rio, que valem cerca de R$ 1 milhão; e um apartamento na Barra da Tijuca, também avaliado em R$ 1,2 milhão. Um total de, pelo menos, R$ 3,5 milhões.
Retorno a Brasília
Sexta-feira, 18 de dezembro de 2020. Ana Cristina foi com o empresário Rafael Brito, seu primo, a um almoço do lobista Silvio de Assis, investigado pela PF por um esquema de venda ilegal de registros sindicais no Ministério do Trabalho. O encontro foi revelado pela revista Veja, em fevereiro.
Já no sábado, ela foi com o novo marido, o empreiteiro Jan Raymond Hansen, para um passeio de lancha no lago em Brasília. Lazer? Não, as duas ocasiões eram agendas para planos em 2022.
No barco, ela foi como a ocasião pedia: biquíni preto e saída de praia, em tecido transparente, também preta. Ele, bermuda e camisa azul. Ambos posaram sorridentes, como se o país não vivesse qualquer pandemia, aglomerados ao redor de mais de dez pessoas dentro da embarcação. Eram os mais novos amigos de Ana Cristina.
O principal deles, porém, é Marconny Faria, bacharel em Direito e dono de uma consultoria na capital federal. "Ela voltou desse passeio dizendo que vai ter a ajuda dele para a campanha em 2022", contou um interlocutor de Ana Cristina.
Segundo Faria, o passeio de lancha foi para comemorar seu aniversário. "Não sei que apoio [em campanha] eu poderia dar para ela, mas tudo bem", afirmou Faria. O UOL apurou que o consultor, vez ou outra, circula pelos ministérios pedindo reuniões com os titulares das pastas.
Os caminhos de Faria e de Ana Cristina se cruzaram alguns meses antes, em outra festa, também em plena escalada da covid-19 pelo Brasil. Foi em 14 de setembro, no casamento da advogada Anna Carolina Noronha, filha do ministro do STJ João Otávio de Noronha e amiga de Marconny Faria.
A ex-mulher de Bolsonaro esteve na cerimônia com o filho, Jair Renan, e posou para diversas fotos. Em uma delas, foi clicada com o ministro do STJ. Dois meses antes, em julho de 2020, Noronha tinha concedido um habeas corpus para Fabrício Queiroz, preso durante as investigações sobre a "rachadinha" no gabinete de Flávio Bolsonaro. Esse mesmo inquérito inclui 10 parentes de Ana Cristina, que foram alvo de busca e apreensão em dezembro de 2019.
Sobre a presença dela na festa, Noronha afirmou, em nota, que "não conhece e não teve contato pessoal ou profissional com Ana Cristina". O ministro do STJ acrescentou que a lista de convidados para o casamento de sua filha "foi feita pelo casal e a festa foi realizada na casa do noivo".
As amizades fortalecidas durante a festa de casamento permaneceram. Um mês depois, em outubro de 2020, lá estava novamente Marconny Faria na inauguração do Camarote 311, o negócio de Jair Renan no estádio Mané Garrincha. Outra festa realizada na pandemia, em que nenhum dos convidados usou máscara.
Nessa ocasião, a deputada federal Celina Leão (PP-DF) também marcou presença. Jair Renan apresentou a mãe à parlamentar e as duas trocaram telefones, se tornaram amigas e se falam desde então. A deputada revelou que, quando a amiga decidiu pela mudança, convidou-a para trabalhar em seu gabinete.
"Ela aceitou. Cristina vive modestamente. Ela precisa de salário para viver. Ficou honrada. É uma pessoa que precisa de oportunidade como qualquer outra", contou Celina, por telefone, em uma brecha nos debates sobre o projeto que autorizou compra de vacina por empresas privadas, que estava em sua relatoria. "Ela sofre muito por ser ex-mulher do presidente porque vira vitrine. É uma funcionária exemplar", emendou, ao dizer que as duas "se frequentam", mas separam o relacionamento profissional do pessoal.
Quem vê Marconny Faria e Celina Leão orbitando Ana Cristina e Jair Renan avalia que o objetivo é conseguir algum acesso ao presidente. Mas o que Bolsonaro determinou ao filho é que mantenha a mãe perto de si e discreta, longe do Palácio da Alvorada, onde uma receosa Michelle quer distância da segunda esposa do presidente.
Ana Cristina ignora a preocupação da primeira-dama. Ela deixou a família no Rio para ficar longe da romaria de pedidos de ajuda nos processos de "rachadinhas" de Flávio e de Carlos. Os parentes reclamam de ter de pagar R$ 500 por mês ao advogado do caso.
A ex-mulher de Bolsonaro faz também planos de comprar uma casa em Brasília. Alavancar os negócios do filho e chegar ao Congresso Nacional são mais duas etapas no plano de carreira de Ana Cristina em busca da plena ascensão social.
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