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Com julgamento longe do fim, indígenas seguem acampados em Brasília

Narubia Werreria e Tico Santa Cruz acompanham sessão do Supremo sobre o marco temporal - Ana d"Angelo/UOL
Narubia Werreria e Tico Santa Cruz acompanham sessão do Supremo sobre o marco temporal Imagem: Ana d'Angelo/UOL

Ana D'Angelo e Rafael Neves

Do UOL, em Brasília

02/09/2021 20h00Atualizada em 02/09/2021 21h38

Ainda está longe de terminar o julgamento do marco temporal das terras indígenas, que ocupou as últimas duas sessões plenárias do STF (Supremo Tribunal Federal). Até o momento, o tribunal ouviu 39 sustentações orais das partes interessadas no processo, mas os ministros ainda não começaram a votar. O relator do caso, ministro Edson Fachin, será o primeiro a apresentar seu voto, na próxima quarta-feira.

O adiamento do desfecho do caso mantém a expectativa nos representantes de povos indígenas que estão acampados em Brasília desde o início da semana. No último final de semana, voltou para casa a maioria dos 6 mil indígenas que participaram das manifestações. Na capital federal, restaram pouco mais de mil.

Jessica Kumaruara, de 29 anos, chegou a Brasília com mais 120 membros da Aldeia Vista Alegre do Baixo Tapajós, em Santarém, no Pará. Lá vivem 13 povos em dois territórios, que juntos reúnem 8 mil indígenas. Somente 31 deles permanecem em Brasília.

Ao lado do amigo Renato Borari, de 16 anos, Jéssica conta que eles têm "nome de branco" devido à forte colonização e ocupação da região e porque os cartórios de Santarém se recusam a registrar nomes indígenas das crianças nascidas. Há não muito tempo, segundo Jéssica, o Ministério Público teve que requerer ordem judicial para o cartório local registrar um menino com nome indígena.

Renato diz que dá para passar os dias relativamente bem no acampamento dos indígenas, mas que o tempo em Brasília oscila muito: "De dia, muito quente, de noite, frio e vento". Inicialmente ao lado do Teatro Nacional, o acampamento foi deslocado em cerca de 2 km, mais afastado Praça dos Três Poderes.

Indígenas acompanham sessão do STF sobre o marco temporal - Ana d'Angelo/UOL - Ana d'Angelo/UOL
Indígenas acompanham sessão do STF sobre o marco temporal
Imagem: Ana d'Angelo/UOL

Sokren Panará, 39 anos, pretende ficar em Brasília até o próximo dia 11. Ele, a mulher Nhakmeti Caiapó, de 28 anos, e o filho Ider, de 6 anos, vão se juntar à Marcha das Mulheres que chega à capital federal dia 7. Eles moram na terra indígena Panará, no norte de Mato Grosso, onde vivem 700 indígenas.

Sokren acredita que o julgamento do marco temporal ainda vai demorar até a decisão final. Mas está esperançoso: "Por enquanto, está indo tudo bem". A família permanece no acampamento organizado pela Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), onde recebe alimentação e tem acesso a banheiros químicos e chuveiros.

O vocalista da banda Detonautas, Tico Santa Cruz, também apareceu na vigília. Santa Cruz defendeu que os artistas ocupem esse espaço precioso que têm para defender a democracia e as causas sociais relevantes. "Para onde olhamos no país hoje, há um incêndio. Está difícil dar conta de tantos problemas", disse.

O julgamento

Nos últimos dois dias, o STF ouviu 39 sustentações orais das partes interessadas no processo. Entre elas estão mais de trinta entidades divididas entre a rejeição ou a defesa da tese do marco temporal, que nega o direito à demarcação de terras indígenas aos povos que não comprovem ocupação das áreas à época da promulgação da Constituição, em outubro de 1988.

Depois de um primeiro dia em que a maioria dos oradores era representante de entidades dos povos indígenas, com falas contrárias ao marco temporal, hoje o dia foi ocupado principalmente por sindicatos rurais e entidades do agronegócio, que defendem a tese.

Jessica Kumaruara e Renato Borari acompanharam de pé a sessão do STF - Ana d'Angelo/UOL - Ana d'Angelo/UOL
Jessica Kumaruara e Renato Borari acompanharam de pé a sessão do STF
Imagem: Ana d'Angelo/UOL

Uma das manifestações de hoje foi do PGR (Procurador-geral da República), Augusto Aras, que ofereceu um parecer intermediário: ele admite que a tese do marco temporal possa ser usada, exceto nos casos em que se comprove ter havido "renitente esbulho" das terras indígenas.

"Muitos índios não estavam na posse das suas terras exatamente porque haviam sido expulsos em disputas possessórias e conflitos agrários. Nestes casos, não haveria mesmo como exigir a ideia do marco temporal. Não seria justo exigir o contato físico com a terra daqueles que foram removidos por invasores e lutavam para reconquistá-la", explicou Aras em sua manifestação.

A decisão, segundo o PGR, deve ser tomada caso a caso. "Por razões de segurança jurídica, a identificação e delimitação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios há de ser feita no caso concreto, com a regra do tempus regit actum, aplicando-se a cada fato a norma constitucional vigente ao seu tempo", opinou Aras.

Os indígenas acampados em Brasília, que acompanhavam o julgamento em um telão, comemoraram a fala de Aras. Em suas manifestações, vários advogados de entidades indígenas atacaram o marco temporal com base no fato de que muitos povos foram expulsos de suas terras antes de 1988.

"É preciso perguntar: se determinada comunidade não estava em sua terra na data de 5 de outubro, onde elas estavam? Quem as despejou dali? Basta lembrar que estávamos saindo do período da ditadura, onde muitas comunidades foram despejadas de suas terras. Ora com apoio, ora com aval do próprio Estado e seus agentes. Portanto, adotar o marco temporal é ignorar todas as violações a que os indígenas foram e estão submetidos", afirmou o advogado Eloy Terena, da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), na sessão de ontem.

Os ruralistas insistiram, em suas falas, no argumento de que a rejeição do marco temporal vai prejudicar pequenos agricultores, que por vezes já estão há décadas em suas áreas. "Meus clientes não são grileiros, não são garimpeiros. São pequenos proprietários que ocupam a terra há mais de cinco gerações. Tão vulneráveis quanto os índios", afirmou Jaqueline Mielke Silva, do Movimento de Defesa da Propriedade.