Conep: 'Estudo que omitiu mortes no AM faz parte do desprezo à ciência'
O coordenador do Conep (Comissão Nacional de Ética e Pesquisa, do Conselho Nacional de Saúde), Jorge Venâncio, classificou como gravíssimo o estudo conduzido pelo médico Flávio Cadegiani, que omitiu mais de 40 mortes de pacientes no Amazonas, e apontou que isso faz parte do "desprezo à ciência". A finalidade da pesquisa era avaliar o uso da proxalutamida no combate ao coronavírus e foi alvo de elogios públicos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
"O estudo faz parte do desprezo à ciência que o governo professa, porque chegar a conclusões apressadas, sem fazer estudo com o cuidado necessário, só leva a fazer tratamentos que não funcionam", disse Venâncio em entrevista ao UOL News.
Jorge Venâncio esclareceu que, quando apresentou o estudo para aprovação, o médico responsável havia informado que ele seria restrito à Brasília e não havia dito nada referente a expandir para outras cidades. Ele afirma que Cadegiani levou a pesquisa para o Amazonas por "iniciativa própria" e reitera que o profissional de saúde agiu de forma "irregular".
Para o coordenador do Conep um estudo ter duzentas mortes é algo "inédito, inteiramente fora da curva e do padrão". Segundo contou no UOL News, o médico responsável alegou que "90% dos óbitos foram no braço placebo e 10% no que tomou medicamento". Porém, ressalta, não há como confirmar a veracidade dessa informação, uma vez que o endocrinologista se recusou a fornecer os dados do estudo. Mediante a recusa, o Conep acionou o MPF (Ministério Público Federal) para avaliar o caso e cobrar todos os dados necessários, haja vista a necessidade de "uma apuração cuidadosa".
Venâncio destaca que o estudo para o uso da proxalutamida "possivelmente faz parte da estratégia da imunidade de rebanho", mas salienta que utilizar remédios sem comprovação científica, em vez de controlar a situação, só piora por favorecer a disseminação da doença.
Por fim, ele diz não saber qual o "papel" do pesquisador nesse cenário e que caberá ao MPF apurar para "ver qual a participação dele". "[Agora] realmente é estranho antes de ter conclusões o presidente sair falando sobre remédios que não tem comprovação e não tem registro na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]", completou.
Dezenas de mortes foram omitidas
Reportagem do UOL mostrou que a apresentação oficial de um estudo para uso da proxalutamida contra covid-19 no Amazonas omitiu 23 mortes de pacientes entre os que tomaram o medicamento e 21 entre os que tomaram placebo. No total, 645 pacientes participaram da pesquisa, que teve o apoio e patrocínio do Grupo Samel, rede de hospitais e planos de saúde. O estudo foi aprovado em janeiro pela Conep e realizado entre fevereiro e março.
Na apresentação dos resultados, em 11 de março, em um hospital da Samel em Manaus, os pesquisadores afirmaram que houve 12 mortes, entre os 317 pacientes que tomaram a proxalutamida. Entre os 328 que tomaram placebo, foram 141 mortes. Já em uma publicação no site Clinical Trials, em junho, os mesmos pesquisadores apontaram 35 óbitos entre pessoas que usaram a droga e 162 entre as que usaram placebo.
A proxalutamida foi inicialmente testada para câncer de próstata e só depois para covid. Mas a importação e o uso de produtos contendo esta substância estão suspensos em pesquisas científicas no Brasil desde 2 de setembro, por decisão unânime dos técnicos da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Ao UOL, o endocrinologista Flávio Cadegiani, responsável pelo estudo, negou as divergências e disse que os números são diferentes pois houve mudança nos critérios usados como referência. O Grupo Samel informou que não é responsável pela pesquisa e que apenas "participou na condição de campo de estudo na cidade de Manaus, após análise feita por seu corpo técnico-científico".
Todas as publicações do estudo, ressalta-se, não têm nenhum valor científico. Para isso, seria necessária uma publicação de artigo com detalhes em revista especializada, validando os dados —o que não ocorreu. Não há nenhuma prova científica do efeito da proxalutamida para tratamento de covid-19.
Nas redes sociais, elogios da família Bolsonaro
No dia da apresentação em Manaus, os apresentadores afirmavam que o estudo era histórico e iria mudar o curso da pandemia de coronavírus. O evento pode ser visto no Youtube do Canal do Grupo Samel.
A droga chegou a ser elogiada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e chamada de "nova cloroquina". O estudo repercutiu no país, com direito a postagem do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, comemorando os bons resultados.
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