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'Religião, direito e neoliberalismo': Congresso glorifica Mendonça no STF

25/11/2021 - Diretores do IBDR fazem oração antes de jantar de gala no 2º Congresso Brasileiro de Direito e Religião, em Anápolis (GO) - Juliana Arreguy/UOL
25/11/2021 - Diretores do IBDR fazem oração antes de jantar de gala no 2º Congresso Brasileiro de Direito e Religião, em Anápolis (GO) Imagem: Juliana Arreguy/UOL

Juliana Arreguy

Do UOL, em Anápolis (GO)

05/12/2021 04h00Atualizada em 20/07/2022 16h59

"O doutor André Mendonça, se Deus assim permitir, futuro ministro do STF, me pediu que transmitisse desculpas." Foi assim que Tércio Tokano, número dois no Ministério da Justiça quando Mendonça era o titular da pasta, anunciou a ausência do convidado de honra do 2º Congresso Brasileiro de Direito Religioso promovido pelo IBDR (Instituto Brasileiro de Direito e Religião) na semana passada.

Mendonça seria um dos palestrantes, mas cancelou sua ida um dia antes do evento, realizado entre 25 e 26 de novembro na estratégica Anápolis (GO), conhecida como "capital evangélica" do país. Após espera recorde, o ex-AGU (Advogado-geral da União) finalmente teve marcada a sabatina no Senado para uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal); ele foi aprovado na tarde da última quarta-feira (1º).

Enquanto o ex-ministro alterou a agenda para tentar virar votos de senadores, coube a Tokano, hoje adjunto do advogado-geral da União, assumir seu lugar à mesa. No seu discurso, pediu orações para que Mendonça "seja um instrumento de Deus na mais alta corte".

A indicação do presidente Jair Bolsonaro (PL) foi publicamente apoiada pelo IBDR, que já teve a presença de Mendonça em outros eventos. Presidente do instituto, o advogado Thiago Vieira contou ao UOL que o ex-AGU aceitou participar do congresso três meses antes de Bolsonaro oficializar sua escolha.

"Quando conversamos com ele [Mendonça] em abril, até brinquei: 'O doutor Marco Aurélio [Mello, ex-ministro do STF] sai em julho, no final de novembro o senhor já é ministro", disse Vieira.

Programação com Mendonça como palestrante - Juliana Arreguy/UOL - Juliana Arreguy/UOL
Programação com Mendonça como palestrante
Imagem: Juliana Arreguy/UOL

Diferentemente do que já disse Bolsonaro, o termo "terrivelmente evangélico" não foi empregado no congresso. Mais de uma vez foi dito que o ex-ministro atuará "à luz da Constituição" como mediador da desgastada relação entre Executivo e Judiciário.

O papel mediador de Mendonça foi reforçado pelo governador Ronaldo Caiado, que deu uma esticada em Anápolis —cidade onde nasceu— para participar da abertura do evento.

"Goiás deve muito a ele porque ele foi peça fundamental da renegociação das dívidas do estado", declarou Caiado, que alegou ter alterado sua agenda na expectativa de encontrar Mendonça no congresso.

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Abertura teve a presença de Ronaldo Caiado (o quarto da esq. para a dir.)
Imagem: Juliana Arreguy/UOL

IBDR surge de associação fundada por Damares

Criado em novembro de 2018 na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, o IBDR é um think tank (instituição para promover ideias) fundado por antigos membros da Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos), entidade que tem a ministra Damares Alves, do MMFDH (Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos) entre os criadores.

O que difere o IBDR da Anajure é a abrangência: o instituto não é restrito apenas a juristas e evangélicos, mas agrega católicos, advogados, acadêmicos, pastores e interessados em discutir —como adianta o nome— direito e religião.

"Temos catolicismo, protestantismo histórico, pentecostais, e até um espírita kardecista, que entrou para o IBDR há um mês. Não é uma instituição evangélica", disse Thiago Vieira, também ex-diretor da Anajure.

Para João Luiz Moura, pesquisador do ISER (Instituto de Estudos da Religião) que estuda o IBDR desde a sua criação, o propósito do grupo é alcançar uma hegemonia dos evangélicos no Judiciário, historicamente dominado pelos católicos.

"Os evangélicos perceberam que, para conseguir lugar, era preciso uma certa aliança com o catolicismo, porque é quem tem a hegemonia religiosa do sistema de Justiça", afirmou ao UOL.

Moura apontou que a principal vertente católica no instituto é ligada à Opus Dei, que tem o nome de Ives Gandra Martins, presidente de honra do IBDR, associado ao seu quadro. "É um recorte ideológico muito preciso, tanto no catolicismo quanto nos evangélicos."

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Venda de livros sobre Direito e religião ocorria ao lado do auditório
Imagem: Juliana Arreguy/UOL

Liberdade religiosa é a tônica de discussões políticas

O congresso não dispensou a liturgia de eventos do Judiciário —"doutor" e "professor" foram os cumprimentos mais usados. O traje social também predominou nas reuniões, centradas no auditório da UniEvangélica, com capacidade para 300 pessoas.

No primeiro dia, com a expectativa da fala de Mendonça, 200 pessoas compareceram e 500 acompanharam virtualmente —as inscrições eram gratuitas. À noite, um jantar de gala —este sim, pago— reuniu 120 pessoas, entre diretores, associados e convidados.

Na palestra inicial, falou-se sobre a importância do Estado laico, desde que o direito à crença e manifestação religiosa sejam tratados como garantia fundamental. A briga pelo funcionamento de templos e igrejas durante a pandemia de covid-19, algo que foi vetado por governadores e prefeitos por causa das restrições sanitárias, foi o principal exemplo.

"Não existe limitação da liberdade religiosa", alegou Vieira em defesa à reabertura dos templos. A palavra "liberdade" foi uma constante no evento, tratada por Vieira como defesa ideológica da direita —enquanto a igualdade seria a pauta pleiteada pela esquerda.

O STF precisa da diversidade [com Mendonça], que é uma consequência da liberdade. Não podemos impor a liberdade. Liberdade se estabelece."
Thiago Vieira, presidente do IBDR

Para João Luiz Moura, a liberdade do IBDR é restrita: "A liberdade que diz respeito a eles é a liberdade de respeito aos evangélicos. O que tentam construir é a liberdade no sentido neoliberal, onde o estado não tutela juridicamente nem politicamente nenhuma esfera da vida social".

O IBDR é fundamentado numa trinca: religião, direito e neoliberalismo."
João Luiz Moura, pesquisador do ISER

Moura citou como exemplo o desembargador Delintro Belo de Almeida Filho, do TJ-GO (Tribunal de Justiça de Goiás), associado efetivo do IBDR que assina peças jurídicas como "diácono", função que exerce na Paróquia São Francisco de Assis, na mesma Anápolis.

O magistrado foi relator do caso em que um casal teve de indenizar uma igreja após realizar o matrimônio por meio de liminar na Justiça —a mulher estava grávida e a instituição se negava a fazer a cerimônia.

O entendimento de Delintro é que o casal violou as normas de conduta da religião e que a decisão da igreja não foi discriminatória. Ele assinou o documento como "Diác (abreviação de diácono) Dr. Delintro Belo de Almeida Filho".

"Como alguém que sustenta a tese do estado laico e da não-interferência do estado na religião assina uma decisão jurídica assina como diácono?", questionou Moura.

Ainda segundo o pesquisador, a defesa da liberdade pelo IBDR —religiosa e de mercado— segue os moldes do protestantismo americano. No congresso, as citações a estudos e autores dos Estados Unidos foram recorrentes, assim como o uso de termos em inglês.

IBDR e o governo

Convidado a tocar na noite do jantar de gala, o pianista Álvaro Siviero —que tem no currículo inúmeras apresentações internacionais, sendo uma delas para o papa Bento XVI— defendeu a arte como alimento da alma.

Antes, explicou o conceito de arte como algo contemplativo: "A música de hoje, que é voltada a mexer o corpo, bate estaca, que te faz rebolar, suar e dançar, nada tem a ver com música".

Siviero abriu a apresentação com a "Sonata ao Luar", de Beethoven, mesma escolha musical do especial de Natal da produtora Brasil Paralelo, onde tocou como convidado em 2020. A Brasil Paralelo foi citada no relatório da CPI da Covid como disseminadora de fake news e recordista de gastos no Facebook com propagandas políticas.

Em nota, a empresa disse não contar com dinheiro público e afirmou ter se colocado "inteiramente à disposição da CPI em questão e que não foi encontrada nenhuma irregularidade em sua atuação, não tendo sido indiciada pelo relatório final da Comissão".

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O pianista Álvaro Siviero
Imagem: Juliana Arreguy/UOL

Na sequência, tocou Chopin e finalizou com "Libertango", de Astor Piazzolla. Embora tenha convidado o público a desligar o celular para apreciar melhor o momento, teve a sugestão ignorada pelos presentes, que fotografaram e filmaram o pianista em ação.

Após a apresentação, Thiago Vieira convidou a diretoria do IBDR para subir ao palco. Um dos nomes chamados foi o de Angela Gandra Martins, secretária nacional da Família no MMFDH, vice-presidente licenciada do instituto e, como indica o sobrenome, filha de Ives Gandra.

"A Angela está licenciada porque está na Secretaria da Família, mas tem que vir", chamou Vieira.

"Então é melhor não tirar foto", recomendou Davi Charles Gomes, presidente do conselho deliberativo do instituto e pastor presbiteriano. Ao lado de Gomes estava o pastor Franklin Ferreira, secretário do conselho e responsável por reger a oração de agradecimento antes do jantar.

O próprio Franklin já posou para fotos junto de Bolsonaro. O pastor, que possui bom trânsito no governo, impulsiona conteúdos políticos e religiosos no seu Facebook e está por trás de movimentos de educação política dos fiéis. Em vídeo no YouTube, diz que não é possível ser, simultaneamente, cristão e de esquerda.

Ao se dirigir ao salão onde foi servido o jantar, Franklin foi apresentado a um associado que o cumprimentou com a seguinte observação: "Estamos no mesmo grupo, o 'Evangélicos com Bolsonaro'".

Após a publicação desta reportagem, o IBDR alegou que Franklin só esteve com o presidente uma única vez, durante uma visita institucional feita no início do governo, e que o pastor não se recorda do episódio relatado acima.

Vieira afirmou que as preferências políticas de seus membros não têm influência sobre o IBDR e que o grupo, em si, não é ligado a partidos políticos ou espectros ideológicos.

A instituição, argumentou, se pauta pela "cosmovisão judaico-cristã" e por uma agenda de costumes que defende o "direito à liberdade religiosa, liberdade de expressão e liberdade de consciência", conforme o seu estatuto.

Mas críticas à esquerda foram constantes, especialmente no segundo dia de congresso, quando o público era mais enxuto —a reportagem contou 50 pessoas no auditório.

A liberdade do ensino domiciliar

"Uma das técnicas da esquerda é acusar você de fazer o que eles fazem", declarou Davi Charles Gomes ao comentar as críticas sobre suposta doutrinação por meio do homeschooling —na tradução livre, ensino domiciliar—, após uma palestra em defesa do modelo educacional.

A palestra foi ministrada por Angela Gandra, que trabalha pela regulamentação do homeschooling no país e defende que as famílias tenham o direito de assumir a educação dos jovens se assim desejarem.

gandra_ibdr - Reprodução - Reprodução
A secretária da Família, Angela Gandra, em evento internacional em setembro deste ano
Imagem: Reprodução

Gandra disse que educação não se resume a conteúdo, mas envolve também princípios morais —incluindo a moral religiosa. Ela negou que a defesa do homeschooling mire um ensino obscurantista e diz que as escolas também apresentam riscos: "Educar pode significar manipular, trazer outras ideologias".

Davi Gomes concordou: "O professor é o introdutor de uma ideia do conceito de Deus".

Da lista de argumentos pró-ensino domiciliar, o mais endossado foi a possibilidade de uma educação personalizada pelos pais.

"O acesso à educação melhora com o homeschooling, já que as escolas públicas são superlotadas e com ensino de pouca qualidade. Tendo em conta o ensino privado, que é caríssimo, uma família numerosa pode ter o acesso à educação pelo homeschooling", resumiu a secretária.

Uma dúvida da plateia foi sobre os riscos da educação em casa diante do aumento de agressões domésticas na pandemia. "Estatísticas ideológicas não podem pautar políticas públicas", rebateu Gandra.

Não tem um link entre homeschooling e violência doméstica. É uma realidade muito mais profunda em famílias disfuncionais. A família homeschooler não é disfuncional."
Angela Gandra, secretária da Família

Em nenhuma das mesas houve divergência de pensamento entre os palestrantes ou mesmo entre a plateia. O evento foi fechado com novos pedidos de oração por André Mendonça.

O pesquisador Moura indica que, com Mendonça no STF, "a gente tem um coroamento da tradição evangélica nos três poderes".

Sob aplausos, Davi Gomes se encarregou das despedidas com uma oração: "Que Deus nos abençoe. Considero encerrado o congresso."

Onde fica Anápolis (GO) - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL