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'Assustador': Aluna da UFRJ relata fuga de ônibus cercado por bolsonaristas

31.out.2022 - Estudantes da UFRJ seguem viagem com cortinas fechadas para não serem filmados por bolsonaristas em bloqueio de rodovia - Arquivo pessoal
31.out.2022 - Estudantes da UFRJ seguem viagem com cortinas fechadas para não serem filmados por bolsonaristas em bloqueio de rodovia Imagem: Arquivo pessoal

Do UOL, no Rio

02/11/2022 04h00

A estudante de geologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Késia Oliveira relata que passou por momentos de constrangimento, assédio e impotência na segunda-feira (31), quando um ônibus e uma van da universidade foram impedidos de seguir viagem por bolsonaristas que bloquearam a rodovia Presidente Dutra na altura de Barra Mansa (RJ).

Os alunos contam que os veículos foram barrados assim que os bolsonaristas identificaram os símbolos da UFRJ e alguns alunos de roupa vermelha. Em nota, a reitoria da universidade afirmou que "não permitirá que seus estudantes, professores e funcionários sejam ultrajados e hostilizados".

O grupo saiu do Rio às 8h de segunda-feira (31) em direção a Uberaba (MG) para um trabalho de campo, mas ontem (1º) desistiu e voltou à capital fluminense.

A UFRJ condenou também a atitude da PRF (Polícia Rodoviária Federal) diante do impedimento. "Para não criar conflito com os caminhoneiros manifestantes, [a PRF] não se esmerou inicialmente para que a comunidade acadêmica da UFRJ ali representada pudesse ter o direito a estudar e prosseguisse com sua viagem de trabalho de campo", diz a universidade em nota.

Leia o relato da aluna Késia Oliveira sobre a hostilização contra os alunos.

"Nós tínhamos um trabalho de campo marcado para a segunda-feira (31), e ficaríamos em Uberaba (MG) até o domingo (6). Na segunda-feira, por volta das 8h, saímos da Ilha do Fundão, [zona norte carioca]. Às 10h, percebemos que o ônibus havia parado na estrada e ficamos um tanto sem entender o que estava acontecendo até que fomos informados que havia um bloqueio.

De vez em quando, o ônibus conseguia andar um pouquinho, mas era coisa de 5 m, até que conseguimos chegar a uma lanchonete para nos abastecer de comida, que eu acho que foi o que garantiu que ninguém ficasse com fome durante a noite.

Depois tentamos seguir, mas continuava bloqueado. Até que o motorista conseguiu fazer um atalho até a barreira, já perto das 16h. Vimos que começaram a liberar ônibus, e essa informação foi até divulgada. Os ônibus estavam passando e carros menores também. Mas, quando eles viram que o ônibus era da Universidade Federal do Rio de Janeiro, impediram a nossa ida.

Tinha gente com blusa vermelha que começou a ficar com medo porque eles começaram a cercar o ônibus. Nós não estávamos fazendo símbolo nenhum, não estávamos fazendo provocação, mas começamos a ficar com medo porque eles cercaram o ônibus e olhavam o tempo todo pela janela, começaram a filmar. A Polícia Rodoviária Federal estava lá, os professores desceram para negociar a nossa ida, falar que estávamos em saída para trabalho de campo, mas ninguém concedeu nossa passagem pela barreira.

E a coisa foi ficando mais assustadora pra gente. Um cara começou a passar com a bandeira da monarquia, nós ficamos assustados porque estava anoitecendo, não nos sentimos seguros lá. Aí os professores decidiram que nós iríamos para uma churrascaria próxima, divididos em grupos de quatro pessoas.

Fizemos isso sem levar malas, para não chamar atenção, porque estava todo mundo com muito medo. Saímos com mochila, celular, documento e fomos em direção à churrascaria. O caminho foi tenso porque estava cheio de manifestantes bolsonaristas e era como se nós fôssemos as atrações.

Eu me senti intimidada enquanto mulher preta, porque eu não consigo passar despercebida no meio de uma multidão de manifestantes do candidato não reeleito.

O que a gente sentia eram olhares intimidadores e constrangimento até dentro da churrascaria. Chegamos à conclusão que também não era seguro ali e fomos em grupos de cinco ou mais pessoas até conseguir achar um hotel na cidade próxima, que seria Barra Mansa.

Ao sair da churrascaria, tinha gente perguntando se tínhamos votado no Lula. Eu e uma amiga estávamos um pouco mais atrás, distantes das outras pessoas no caminho, e sentimos olhares de homens que estavam na manifestação. E o tempo todo era provocação: passavam por nós gritando 'Bolsonaro'.

Teve um grupo que foi mais ameaçado e ficou com medo porque [os que ameaçavam] estavam com óleo diesel, pelo que eu ouvi.

Andamos por mais de duas horas, foi bem cansativo. Parecia que toda a cidade estava também em manifestação e nós éramos realmente a atração. As pessoas comentavam, olhavam, provocavam.

Até que conseguimos chegar no hotel, por volta das 19h. Eu também senti olhares, mas conseguimos passar a noite. Pela manhã, na hora do café, não me senti segura em momento algum.

Eu não acho que é drama ou exagero falar isso porque estamos lidando com pessoas que querem de toda forma ter posse e porte de armas.

Nesta terça, a principal questão era se iríamos para campo ou não. E foi decidido que não, porque não tínhamos ônibus descaracterizado e não era seguro ficar no ônibus da UFRJ.

O ônibus conseguiu sair do bloqueio por volta das 2h e nos esperou próximo ao hotel. Quando decidimos que voltaríamos para casa, vimos que filmavam a gente dentro do ônibus. Nós tivemos que vir com os vidros fechados e as cortinas fechadas também. Fizemos um caminho diferente, inclusive, para não chamar tanta atenção.

A nossa sensação foi de impotência. Estamos cientes que isso é um momento singular de repressão e não vamos nos calar, porque vários outros estudantes de universidades federais estão sofrendo repressão nesse momento e sendo impedidos de estudar.

A UFRJ está atenta inclusive a isso e nós também vamos continuar atentos."

Outro lado

O UOL questionou a PRF sobre a crítica da UFRJ. A corporação —que disse ter trabalhado com todo seu efetivo para liberar rodovias— respondeu que não houve omissão.

"Não havia como priorizar um grupo em detrimento de todos os outros que se encontravam no mesmo local. Com o número de policiais disponíveis, temos trabalhado incansavelmente pela manutenção do direito de ir e vir do povo brasileiro", disse a PRF, em nota.

Diretores da PRF disseram ontem ter identificado em vídeos três casos em que agentes da corporação aparecem supostamente ajudando manifestantes nos bloqueios das estradas. Segundo o corregedor-geral da PRF, Wendel Benevides Matos, todas as ocorrências serão apuradas.

"Nenhuma ordem foi dada para que servidores deixassem de cumprir seu papel, e eles responderão a procedimentos para explicar o que aconteceu", disse Matos em entrevista à imprensa na sede da PRF em Brasília.