'Ligam e começam a xingar': lista contra 'petistas' surpreende comerciantes
De uma hora para outra, a churrascaria de Bruno (nome fictício), em Santa Catarina, passou a receber "reservas fantasma" — supostos clientes marcavam horário e nunca apareciam —, ligações ofensivas e avaliações negativas nas redes sociais. Os xingamentos tinham cunho político, como "podia ser melhor se não fosse petista" ou "estou dando uma estrela por ser petista".
Os ataques ocorreram depois que o estabelecimento de Bruno foi incluído em uma "lista de lugares petistas" que passou a circular em grupos no WhatsApp, Telegram e em perfis no Twitter nas últimas semanas.
Criadas em meio à polarização política nas eleições presidenciais, essas listas incentivam o boicote a comércios que, segundo apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), derrotado nas urnas, têm posição política de esquerda e declaram apoio a Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Até um bot (robô) no Telegram foi criado para "facilitar os patriotas a identificar empresas e profissionais esquerdistas". O robô dá acesso à lista de estabelecimentos em várias cidades brasileiras: são incluídas tanto empresas de grande porte quanto estabelecimentos familiares. E o objetivo é "falir quem quer falir o Brasil", segundo o canal no Telegram.
Em parte dos casos, os estabelecimentos incluídos no rol de petistas se posicionaram abertamente a favor de Lula nas eleições. Em outros, nem os donos sabem como foram parar na lista — e agora relatam prejuízos, ameaças e temor.
"Ligam perguntando se vai estar aberto e começam a xingar de tudo. [Fazem] reserva e não aparecem", diz Bruno, que administra a churrascaria que leva o nome do pai, no interior catarinense. Ele preferiu não se identificar. O estado foi um dos que deram maior votação proporcional a Bolsonaro nas eleições.
Bruno também notou queda no movimento. "Qualquer publicação que a gente faça ainda tem gente falando sobre política."
Segundo ele, tudo teria começado com uma foto que o pai fez ao lado do ex-prefeito da cidade — que era do PT. A imagem nem foi publicada no perfil da empresa, diz Bruno, mas foi suficiente para que os ataques começassem. Agora, eles tentam correr atrás do prejuízo.
"As nossas redes sociais são fortes, temos um alcance muito alto e mais de 20 mil seguidores. Estamos recebendo comentários de 'faz o L', 'não merece mais o meu dinheiro'. Temos bastante cautela com as respostas para não piorar a situação."
Uma das estratégias adotadas pela família foi produzir um vídeo em frente ao local na expectativa de prospectar novos clientes, apresentando as diferentes opções do buffet e cortes de carne oferecidos — nada relacionado à política é citado.
Eles também divulgaram uma nota dizendo que, nos mais de 30 anos de atividade, nunca se posicionaram em favor de qualquer partido político, "sempre recebendo todos os visitantes e clientes independentemente de suas opções partidárias".
Não foi suficiente. Na página da churrascaria no Google, cresceram as avaliações negativas nas últimas semanas.
Os comentários destacam que a nota ruim tem relação com o suposto posicionamento político do restaurante. "Recomendado apenas para quem gosta de ser roubado e apoia a corrupção" foi uma das mensagens publicadas.
"Acredito, tenho fé e esperança de que as pessoas esqueçam rápido disso", diz Bruno. "A gente ainda não chegou a tomar nenhuma atitude legal, mas já conversamos com nosso advogado e ele está ciente dos comentários mais ofensivos."
Até ameaça de morte
No interior do Paraná, a cozinheira Joana (nome fictício), de 29 anos, também enfrentou problemas e precisou até trancar seu perfil nas redes sociais depois que seu nome foi incluído em uma dessas "listas de petistas".
No caso dela, primeiro houve a inclusão em um rol da cidade e depois a lista ganhou alcance nacional. "Precisei fechar o Instagram porque recebi até ameaça de morte pelo WhatsApp."
Não havia fotos em suas redes sociais que indicassem apoio a determinado político ou legenda.
Segundo ela, a inclusão na lista teve pouca influência nas vendas — mas o impacto maior foi emocional. "Moro em uma cidade pequena, então me senti extremamente coagida", diz ela, que preferiu não se identificar por medo.
"O tiro saiu pela culatra"
Também incluído em uma lista de petistas, Mario Rabelo, dono do Generoso Burger, uma hamburgueria na região central de São Paulo, viu o boicote com outros olhos.
"O tiro saiu pela culatra. Começaram a falar da gente, mas quem entende que é uma sacanagem começou a seguir com o discurso de 'se está irritando essa galera, alguma coisa de positivo tem'. Então, no fim das contas, não impactou em nada."
Ao contrário do restaurante de Bruno, a hamburgueria de Mario sempre se posicionou contra Bolsonaro.
"Sempre tivemos postagens [sobre política], mesmo muito antes das eleições já declaramos o nosso combate ao bolsonarismo. Então é até estranho. Se alguém viu alguma postagem nossa e acompanha a gente, já devia saber nossa posição."
O estabelecimento também recebeu avaliações negativas nas redes sociais. Até o momento, isso não preocupou Mario e a sócia Vitória, segundo afirmam.
"São avaliações insignificantes e mentirosas. Em uma, falaram que o cliente foi destratado por um garçom porque estava com uma camisa da seleção brasileira. Só que a gente não trabalha nem com garçom", afirma.
Ele faz questão de destacar que todos podem frequentar o espaço. "Se gosta da nossa comida ou quer tomar uma cerveja e comer batata frita, tudo certo." O empresário não tomou nenhuma atitude legal porque considera que tudo aconteceu "muito rápido".
É crime boicotar um comércio?
O advogado Pedro Romanelli, especialista em direito digital, explica que uma manifestação política por si só não constitui crime, mas as manifestações políticas abusivas, que prejudicam uma empresa ou pessoa, podem configurar dano moral.
E isso vale tanto para ataques que partem da direita quanto da esquerda.
"O direito não possui partido. Ele deve resguardar o equilíbrio entre a liberdade de expressão e não ofensa ao direito do outro. Logo, os ataques digitais não são vistos como liberdade de expressão, mas como abuso de direito e ofensa à pessoa ou empresa prejudicada — que pode e deve ser indenizada."
Essas ações, sejam individuais ou conjuntas, podem prejudicar a imagem e reconhecimento da empresa frente a potenciais clientes. Ele lembra que muitos consumidores fazem análise de compra ou consumo pelo meio digital.
"A avaliação final de uma empresa pode ser decisiva para o consumidor ser [convertido em] cliente ou não."
A orientação dele é para que os donos de estabelecimentos "boicotados" questionem as avaliações negativas e identifiquem os autores.
A pessoa que se sentiu lesada pode buscar a identificação de quem fez o comentário ou pedir ao Google o IP (endereço da máquina de onde partiu o ataque) e mais informações. "A internet não é uma terra sem lei", diz o advogado.
A orientação é procurar uma delegacia e registrar boletim de ocorrência. A depender das ofensas, elas podem ser enquadradas como injúria, difamação ou calúnia. Também podem configurar cyberbullying, incitação ao suicídio e perseguição digital.
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