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Contratados de universidade relatam rachadinha com boleto e Pix

Do UOL, no Rio

27/04/2023 04h00

Um esquema de "rachadinha" na véspera da campanha eleitoral foi relatado ao UOL por contratados de um projeto de pesquisa da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) sob investigação.

O que se sabe do esquema

  • Folhas secretas. Investigação do UOL mostra agora que contratados em folhas de pagamento secretas da Uerj repassaram grande parte das remunerações em um esquema de rachadinha com boletos e Pix. Eles ganhavam a maior bolsa paga pela universidade (R$ 34 mil brutos por mês) com dinheiro do governo Cláudio Castro (PL).
  • Dinheiro vivo. Bolsistas relataram que repassaram a maior parte do dinheiro para operadores que os indicaram para as vagas. Sob condição de anonimato, quatro pessoas falaram que foram envolvidas no esquema entre junho e agosto de 2022 em um projeto de educação profissional. Quase metade dos 92 contratados com as maiores bolsas fez saques em dinheiro que somaram R$ 2,2 milhões nos dois meses que antecederam a campanha.
  • Rachadinha com boleto e Pix. Os relatos convergem quanto aos valores e à forma de contratação (leia abaixo). Três bolsistas disseram que repassaram as remunerações por meio do pagamento de boletos de empresas (os nomes das firmas não foram revelados). Já um outro contratado afirmou ter transferido dois pagamentos da Uerj (quase R$ 50 mil) por Pix para contas bancárias indicadas por um conhecido. Ele não revelou de quem eram as contas.
  • O que ganhavam no esquema. Ao menos dois desses bolsistas contaram que ficaram com a mesma quantia (R$ 2.000 por mês) e que o restante do dinheiro (cerca de R$ 23 mil) foi usado para pagar os boletos. Somente essa dupla irrigou o esquema com quase R$ 92 mil em três meses.
  • Recrutados por candidatos. Esses dois bolsistas relataram ainda outro modus operandi semelhante: ambos foram indicados para o projeto por pessoas ligadas a candidatos a deputado no RJ. Temendo represálias, eles não quiseram dizer quem são os agentes políticos. O UOL já revelou que esse mesmo projeto pagou cabos eleitorais de dois deputados bolsonaristas.
  • Quebra de sigilo. As revelações têm potencial para embasar pedidos de quebra de sigilo bancário de contratados do projeto. Os responsáveis pelo esquema de rachadinha podem responder pelos crimes de peculato (desvio de verba pública) e organização criminosa. Reportagens do UOL sobre as folhas de pagamento secretas da Uerj já deflagraram investigações do Ministério Público do RJ e da Procuradoria Regional Eleitoral.
  • Fantasmas. O UOL entrou em contato com 75 dos bolsistas com as maiores remunerações do projeto nos últimos dois meses. O levantamento mostra fortes indícios de que os serviços não foram prestados --um advogado que ganhou mais de R$ 100 mil brutos admitiu que não trabalhou; 54 bolsistas não explicaram se trabalharam e 12 não sabem como seus dados foram parar nas folhas de pagamento.
  • O que diz a Uerj. Procurada, a universidade disse que o projeto foi encerrado em dezembro e que vai apurar as novas denúncias do UOL por meio de uma "comissão permanente de apuração".

Após as investigações, serão adotadas as providências legais cabíveis, seja no âmbito interno, seja por meio dos órgãos de controle, que têm recebido permanentemente os resultados dos procedimentos internos da universidade.
Uerj em nota sobre as novas denúncias do UOL

Os relatos de rachadinha

Um amigo próximo a um político aqui da região me chamou para dar aulas nesse projeto. Cheguei a preparar um material, mas, no dia do primeiro pagamento, ele disse que não seria necessário realizar o trabalho. Fomos ao banco e saquei todo o dinheiro. Fiquei com R$ 2.000 e, com o restante [cerca de R$ 23 mil], ele pediu para que eu pagasse um boleto em nome de uma empresa de terraplanagem. Não gostei daquilo, achei que estava errado e pedi para me tirarem do projeto no mês seguinte. O dinheiro que eu tinha pego dei para a caridade.
Bolsista que recebeu R$ 24.954 da Uerj em um mês

Estava desempregada e tenho uma filha para criar. Um conhecido ligado a um político me ofereceu essa oportunidade e aceitei. Eu ficava com R$ 2.000 por mês e repassava o restante [cerca de R$ 23 mil] pagando um boleto para uma empresa. Inicialmente, falaram que ia durar uns oito meses, mas no fim das contas foram só três.
Bolsista que recebeu ao todo R$ 74.862 da Uerj em três meses

Um conhecido me ligou e perguntou: 'Caiu um negócio na sua conta aí?'. Eu disse: 'Caiu'. Então, ele falou: 'Devolve para esse Pix aqui'. Perguntei o que era aquilo e ele me respondeu que tinham mandado errado pra mim. No mês seguinte, também aconteceu. Perguntei: 'De novo, cara! O que o meu CPF está fazendo lá [na Uerj]?' Fiz um outro Pix, mas não sei mais de nada. Não posso dizer para quem foi o dinheiro porque não quero comprometer essa pessoa, não sei exatamente o que aconteceu.
Bolsista que recebeu ao todo R$ 49.908 da Uerj em dois meses

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Imagem: Arte/UOL

R$ 900 mil em nome de quem nega vínculo

Ao menos 12 pessoas que constam nas listas de pagamento relataram ao UOL que não sabem como seus dados foram parar nas planilhas da Uerj. Elas dizem que nunca prestaram qualquer serviço à universidade e que desconhecem o destino do dinheiro.

A esse grupo, foram destinados quase R$ 900 mil brutos —quase 40% desse valor foi sacado em dinheiro vivo. Se comprovado que esses bolsistas tiveram os dados usados de forma indevida, os responsáveis podem responder por falsidade ideológica e estelionato.

Trabalho há mais de dez anos em uma empresa com carteira assinada, nem tinha como eu fazer qualquer serviço para a Uerj. É assustador que meus dados tenham parado lá. Vou entrar em contato com meu advogado para saber o que posso fazer.
Mulher cujos dados constam na folha da Uerj com pagamento de R$ 68 mil

Estou desempregada, mal temos o básico. Meu marido só está fazendo bicos atualmente. Nem imagino o que seria ter esse dinheiro. Não sei absolutamente nada de Uerj e tenho medo de mexer nisso porque não sei que tipo de gente pode ter usado os dados.
Mulher cujos dados e os do marido estão na folha da Uerj com pagamento de R$ 99,8 mil

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Imagem: Arte/UOL

R$ 102 mil para advogado que não trabalhou

Um advogado que recebeu ao todo R$ 102 mil brutos durante quatro meses admitiu que não entregou nenhum serviço à Uerj. João Custódio Gomes de Carvalho contou que foi indicado por um amigo.

Eu tinha ajudado ele em algumas situações. Inicialmente, não vi problema naquilo. Cheguei inclusive a preparar pesquisa, mas, quando vi que não havia demanda, que não havia trabalho, resolvi sair. Vi que aquilo estava errado.
João Custódio Gomes de Carvalho, advogado

Ele negou ter repassado os recursos e tampouco disse tê-los devolvido à universidade.

Pastor, esposa e vizinhos em folha secreta

Das 75 pessoas contatadas pelo UOL, 12 adotaram uma mesma resposta —"fale com a reitoria da Uerj"— ao serem questionadas sobre os serviços prestados à universidade.

A esses bolsistas, foi pago um total de R$ 1,3 milhão.

O pastor Evangivaldo Alves e a esposa receberam R$ 298 mil da Uerj entre abril e agosto de 2022 - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
O pastor Evangivaldo Alves e a esposa receberam R$ 298 mil da Uerj entre abril e agosto de 2022
Imagem: Reprodução/Facebook

Um dos que adotaram a resposta padrão foi o pastor evangélico e advogado Evangivaldo Alves. Ex-assessor na Alerj (Assembleia Legislativa do RJ) e diversas vezes candidato a cargos eletivos, ele recebeu R$ 149 mil brutos entre abril e agosto, dos quais sacou R$ 74,5 mil na boca do caixa.

A esposa dele, Marcia Sandra Barbosa da Silva, recebeu e sacou os mesmos valores.

Procurado em seu apartamento no Recreio, zona oeste do Rio, ele se recusou a dar explicações sobre a contratação e os saques.

A ordem da reitoria --parece que eles já falaram o que tinham que falar-- e qualquer reportagem que o senhor quiser, qualquer novidade, é só se reportar à reitoria.
Evangivaldo Alves, pastor

Um casal que mora em frente ao prédio dele também consta na lista de pagamentos. Eduardo Luiz da Rocha Silva e Loriani Raspa Kourniatis receberam R$ 102 mil cada um —ambos sacaram R$ 49.908 em duas idas ao banco. Procurados, não retornaram os contatos.

Sócios de clube de tiro e mais

Outro caso em que o 'fale com a Uerj' foi evocado envolve quatro sócios de um clube de tiro.

Ao todo, a Uerj pagou R$ 421 mil durante três meses a Allann Castilho, André Luiz Rezende do Prado, Renato de Almeida Pereira, Marco Antônio Marinho dos Santos e a Gabriel Alves Marinho, filho de Santos. Gabriel, Renato e Allann sacaram, cada um, quase R$ 50 mil.

O Centro de Treinamento Veteranos foi aberto na região central do Rio em agosto após os sócios receberem os valores da Uerj. O UOL esteve no local e perguntou a André Luiz sobre a participação dele e dos sócios no projeto. Também foi à casa de Santos, na zona norte do Rio.

A resposta de ambos foi a mesma: 'Procure a reitoria'. A réplica também foi adotada por:

  • Jorge Antônio Pereira Barbosa, empresário: ele e o filho, Lucas Carvalho Barbosa, receberam R$ 68 mil brutos cada um
  • Daniel de Souza Dias, servidor do Instituto Nacional da Propriedade Industrial: recebeu R$ 170 mil
  • Fábio Oliveira de Souza, sócio de empresa de gestão: recebeu R$ 102 mil
  • Guilherme Teixeira de Queiroz Bastos, dentista: recebeu R$ 102 mil
  • Alexandre Mendes de Moura: recebeu R$ 102 mil e sacou R$ 49.908

A reportagem encaminhou todos esses nomes à reitoria da Uerj para que fosse explicada a atuação desses bolsistas no projeto, mas a universidade não respondeu.

'Vaquinha' para filhos x dinheiro da Uerj

Das 75 pessoas com as quais o UOL entrou em contato, 42 não quiseram se manifestar sobre o dinheiro recebido da universidade. Entre eles, está o casal Joyce Ramos Germano e Julio Cesar Soares, moradores de uma comunidade da zona sul carioca.

Logo após terem ganhado R$ 138 mil brutos, o casal fez uma vaquinha na internet para arrecadar fundos para os filhos participarem de um campeonato de jiu-jítsu nos Emirados Árabes. A meta era de R$ 12 mil, mas eles conseguiram apenas R$ 2.700.

O UOL mapeou no projeto 19 pessoas com parentescos entre si —ao todo, elas receberam R$ 1,7 milhão da Uerj. Servidores públicos aparecem nessa lista.

É o caso do presidente da Companhia de Trânsito de Petrópolis, Jorge Fernando Vidart Badia. Ele e a esposa, Andrea Cristina da Cruz, receberam R$ 204 mil brutos. O UOL o procurou por meio do telefone de seu gabinete, mas não houve retorno.

Sem parente na folha da Uerj, mas com um cargo importante na estrutura do governo do estadual, o presidente do DER-RJ (Departamento de Estradas de Rodagem do RJ), Pedro Henrique de Oliveira Ramos, ganhou R$ 34 mil brutos em julho, enquanto era subsecretário de Obras.

Por meio da assessoria de imprensa do órgão, ele disse que foi selecionado por currículo, que "inclui experiência de mais de cinco anos em gestão pública". Sobre o serviço, Ramos alegou que foi feito fora do horário de expediente e que apresentou relatório à coordenação do projeto.

Uerj pagou ao menos R$ 641 mil à responsável pelas contratações

O projeto foi criado em abril para fazer núcleos de qualificação profissional em cidades do RJ. Até agosto, custou R$ 23,7 milhões financiados pela Faetec (Fundação de Apoio à Escola Técnica), órgão vinculado à Secretaria de Ciência e Tecnologia do RJ. Segundo a universidade, o programa foi encerrado em dezembro.

Movimentação na entrada do campus principal da Uerj no Maracanã, zona norte do Rio - Igor Mello/UOL - Igor Mello/UOL
Movimentação na entrada do campus principal da Uerj no Maracanã, zona norte do Rio
Imagem: Igor Mello/UOL

A Uerj tem afirmado que a responsabilidade pelas contratações é dos coordenadores-gerais dos projetos.

A coordenadora-geral desse projeto é Eloíza da Silva Gomes de Oliveira, diretora do IFHT (Instituto Multidisciplinar de Formação Humana com Tecnologias) da universidade. Ela é formada em pedagogia, com mestrado em psicologia escolar e doutorado em educação.

Eloíza foi quem mais recebeu dinheiro dos programas da Uerj com folhas secretas —ao menos R$ 641 mil de quatro projetos entre janeiro de 2021 e agosto de 2022.

A reportagem encaminhou questionamentos a Eloíza por meio da assessoria de imprensa da Uerj, mas a universidade não se manifestou. O espaço segue aberto.

"A Uerj reitera o seu compromisso com a ampla apuração de todos os fatos, de acordo com o devido processo legal, preservando a imagem da Universidade e o patrimônio público", afirmou a instituição em nota.

Reveladas pelo UOL em agosto, as folhas secretas da Uerj mostram pagamentos de até R$ 359 milhões em programas bancados com dinheiro de secretarias e órgãos do governo Castro. O governo do Rio tem negado a existência de irregularidades na ocupação desses cargos.