'Perdeu, mané', fake news de orgia: Barroso assume STF com relações tensas
"Acordo todos os dias pensando: 'O que será que estão dizendo de mim hoje?'"
O questionamento é feito pelo próprio ministro Luís Roberto Barroso no livro "Sem Data Vênia: Um Olhar sobre o Brasil e o Mundo". Nesta quinta-feira (28), certamente, são muitas as expectativas em torno dele.
Barroso, 65, assumiu a presidência do STF (Supremo Tribunal Federal) com o desafio de pacificar a relação da Corte com o Congresso Nacional, de tentar equilibrar temas espinhosos em discussão e de manter pontes com o governo federal, destruídas ao longo da gestão de Jair Bolsonaro (PL).
A relação com Lula será ainda mais desafiadora: Barroso foi um dos principais apoiadores da Lava Jato no Supremo. Foi dele um dos votos que rejeitaram o pedido de habeas corpus do petista em 2018, abrindo caminho para a prisão do então ex-presidente. No ano seguinte, o ministro manteve a posição favorável à prisão em segunda instância.
Defensor da tese de que o STF deve ter um papel iluminista e impulsionar a história, Barroso esteve à frente das decisões mais progressistas da Corte, antes mesmo de ser ministro.
Em 2011, subiu à tribuna do Supremo para defender a legitimidade das uniões homoafetivas. Em 2012, foi o advogado defensor do aborto em gestações de fetos com anencefalia. Ganhou as duas causas. Caiu nas graças de Dilma Rousseff e, no ano seguinte, foi nomeado ministro do STF.
Indiretas e diretas: a comunicação de Barroso
Preocupado com a forma como traduz seus votos, Barroso tem entre suas ambições como presidente criar um resumo das decisões do STF em linguagem mais simples, como tenta fazer em seus próprios votos. Ele acredita que, dessa forma, o tribunal ficaria mais acessível ao público e menos vulnerável a ataques. O perfil de comunicador é marcante dentro e fora do tribunal.
No X (antigo Twitter), Barroso acumula mais de 418 mil seguidores e publica, todas as sextas-feiras, suas "dicas da semana". O tom pretensiosamente informal não escondeu indiretas a Jair Bolsonaro (PL), que elegeu tanto ele como o colega Alexandre de Moraes como alvos de ataques durante as eleições.
Após ser chamado de "idiota" por Bolsonaro, Barroso divulgou em suas dicas um pensamento: "Quando um homem de bem responde um insulto com outro insulto, ele permite que o mal vença. Não é preciso responder. O mal consome a si mesmo". De quebra, ainda sugeriu uma música: "Cálice", de Chico Buarque, censurada pela ditadura.
Em agosto de 2021, o ministro mandou nova indireta ao sugerir a música "Fixação", do Kid Abelha, em meio aos ataques constantes do presidente a ele e ao sistema eleitoral.
A ironia fina do ministro, por vezes, falha. E foi na comunicação que Barroso também deu algumas derrapadas nos últimos meses.
Em novembro do ano passado, o ministro caminhava numa rua em Nova York quando um homem perguntou se ele responderia aos questionamentos feitos pelas Forças Armadas sobre eventuais vulnerabilidades das urnas eletrônicas. Diante da insistência e do tom jocoso do interlocutor, Barroso não resistiu e rebateu: "Perdeu, mané, não amola".
O ministro depois lamentou, mas disse que não se arrependeu de ter reagido. No 8 de janeiro deste ano, a frase foi pichada no vidro da fachada do STF e na estátua da Justiça que fica na praça dos Três Poderes. Barroso ironizou o erro gramatical do pichador, que escreveu 'perdel' (sic). "Eu me arrependo muito porque tem um 'perdeu, mané' com um L ali. Isso sim é de lascar, viu?"
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Quero receberEm julho, ao ser hostilizado durante um evento da UNE (União Nacional dos Estudantes), em Brasília, Barroso se irritou e soltou a frase que viria a causar uma saia-justa dentro e fora do Supremo: "Nós derrotamos o bolsonarismo".
Imediatamente depois de dar a declaração, o ministro percebeu que tinha falado demais. Procurou a sua assessoria no Supremo e torceu para que o barulho no local não tivesse permitido a captação da fala, mas já era tarde demais.
O STF soltou nota oficial na tentativa de amenizar a situação, mas não colou. Nas redes sociais, bolsonaristas usaram a frase para tentar comprovar a tese de que Bolsonaro foi perseguido pelo Judiciário e, por isso, perdeu as eleições de 2022.
O ministro se diz zen, pratica meditação e costuma fazer um retiro espiritual uma vez por ano. Mas admite que, como todo mundo, tem momentos em que perde a paciência.
O problema é que, nas raras vezes em que eu perco a paciência, sai em rede nacional.
Luís Roberto Barroso, ministro do STF, em entrevista à GloboNews
Relação com Congresso
Um dos desafios mais imediatos para Barroso como presidente do Supremo será lidar com um Congresso conservador que, recentemente, tem se articulado contra o que considera uma invasão da Corte em assuntos legislativos.
A disputa não é nova e reaparece sempre que o tribunal toma decisões em casos espinhosos, mas ganha tração entre alas bolsonaristas e conservadoras do Congresso.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), apresentou uma PEC para criminalizar o posse e o porte de droga, em reação ao placar atualmente favorável à descriminalização da maconha no Supremo —um dos votos é do próprio Barroso.
Na Câmara, tramita uma proposta para barrar a união homoafetiva, reconhecida pelo Supremo desde 2011 em uma ação que Barroso defendeu como advogado.
Na sabatina a que foi submetido antes de ser nomeado, em 2013, Barroso defendeu a posição do Supremo neste caso e falou sobre o suposto "ativismo judicial" da Corte, já em pauta naquela época. Para o então advogado, o STF não invadiu nenhuma competência do Legislativo no caso das uniões homoafetivas.
"Eu acho que essas decisões são legítimas. Portanto, onde faltava uma norma, mas havia um direito fundamental a ser tutelado, eu acho que o Judiciário deve atuar", afirmou.
Quando o Congresso tenha atuado ou atue posteriormente, essa é a vontade que deve prevalecer.
Luís Roberto Barroso, ministro do STF
Apoio à Lava Jato e restrição ao foro privilegiado
Barroso nunca escondeu o apoio à Operação Lava Jato, embora hoje tente separar a operação em si dos seus condutores, como Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Em seu livro "Sem Data Vênia", o ministro classifica os casos de corrupção como um "desencontro ético do país".
Uma espantosa naturalização das coisas erradas que se materializavam em desvios de dinheiro público, propinas e achaques.
Luís Roberto Barroso, ministro do STF
A posição clara, agora, torna-se um desafio para manter uma relação institucional com Lula, principal alvo da Lava Jato. Preso, condenado e posteriormente solto com decisões anuladas, o petista ainda se ressente com o Supremo, o que tem pesado em suas escolhas para o tribunal.
Barroso foi um dos ministros que votaram contra Lula em 2018 no julgamento que abriu caminho para a prisão do então ex-presidente, retirando-o da disputa eleitoral. Na ocasião, disse que não estava em discussão o legado político de Lula, mas se o STF aplicaria a jurisprudência da prisão em segunda instância.
Quando o STF reviu a posição em 2019 e proibiu a medida, Barroso foi um dos votos que tentaram manter a prisão em segunda instância. Argumentou que a medida abriu caminho para evitar que pessoas ricas evitassem a prisão.
"Vejam o impacto positivo trazido pela mudança da jurisprudência, que impulsionou a solução de boa parte dos crimes de colarinho branco, porque o temor real da punição levou a uma grande quantidade de colaborações premiadas por réus e de acordos de leniência de empresas, apenas no âmbito da Operação Lava Jato", afirmou.
Ainda partiu de Barroso a ideia de restringir o foro privilegiado aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionado à função desempenhada. O plenário concordou e, em 2022, quatro anos após a decisão, o STF havia reduzido em 80% o acervo de inquéritos e ações penais. A conta se reverteu neste ano, com a enxurrada de processos decorrentes do 8 de janeiro.
"Pitadas de psicopatia": a relação com Gilmar
Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes passaram pelo menos dois anos sem se falar. A briga, considerada um dos momentos mais tensos do plenário do STF, inicialmente abriu uma crise interna na Corte. Depois, caiu no anedotário nacional: virou meme e camiseta.
Em março de 2018, Gilmar Mendes criticou "manobras" de ministros. Ouviu a resposta dura do colega: "Me deixa de fora desse seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia".
As pazes foram construídas em 2020, auge da pandemia. Barroso elogiou Gilmar em uma live e Mendes fez o mesmo em relação ao colega, em outra transmissão. A reconciliação foi cristalizada quando Gilmar convidou o colega para proferir uma aula magna no YouTube em evento organizado pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), do qual Gilmar é sócio.
Ele e Barroso concordaram com a trégua em meio aos ataques do então presidente Jair Bolsonaro à Corte. Em nome da instituição, os ministros passaram a se defender mutuamente para enfrentar o adversário externo. Era o ápice das manifestações bolsonaristas pedindo o fechamento do STF.
O único atrito neste período ocorreu, justamente, em uma ação sobre a suspeição de Moro. Barroso acusou o colega de "sentar em cima da vista durante dois anos e ficar tentando ditar regras". O decano então rebateu e afirmou que o "moralismo é a pátria da imoralidade" e encerrou com um "Vossa Excelência perdeu!".
Hoje, Barroso diz que sua briga com Gilmar são águas passadas e que ambos já fizeram as pazes. É citado como exemplo o voto conjunto - iniciativa até então inédita - no caso do piso da enfermagem. A quem pergunta, o próximo presidente do STF diz que está "vivendo em paz" com o hoje decano.
"Orgia com Dirceu": As fake news que Barroso já enfrentou
Barroso também tem como foco manter o trabalho de combater as fake news e as desinformações contra o tribunal —o próprio ministro sofreu com ataques durante a presidência do TSE, a maioria proferida por Bolsonaro e seus apoiadores.
Em 2021, o então presidente afirmou que Barroso "defenderia" a pedofilia por ser contra a redução da maioridade para estupro de vulnerável. O ministro, na verdade, já deu votos para condenar um rapaz de 18 anos acusado de manter relações com uma menina de 13 —a informação foi divulgada pelo próprio STF para desmentir Bolsonaro.
Apoiadores do então presidente também ressuscitaram fotos e vídeos de Barroso com o médium João de Deus para atacá-lo. O ministro procurou o médium após descobrir um câncer, em 2012, e fez visitas a ele em Abadiânia (GO). Quando estourou o escândalo dos crimes cometidos por João de Deus, o ministro não se calou.
"Acho, sinceramente, que as pessoas a quem ele fez bem devem ser agradecidas. Foram muitas, eu vi. E, naturalmente, as pessoas a quem ele possa ter feito mal, essas têm o direito à justiça", afirmou em diversas ocasiões, inclusive em seu livro "Sem Data Vênia".
Apesar dos ataques, o ministro também aprendeu a se descontrair com algumas inverdades espalhadas sobre ele. Um dos casos que gosta de citar é a fake news de que teria participado de uma orgia em Cuba com José Dirceu, ex-ministro-chefe da Casa Civil no primeiro mandato do governo Lula (PT).
"Eu não participei de uma orgia com o ex-ministro Zé Dirceu. Eu nunca fui a Cuba. Eu não sou dado a orgias. Eu não tenho nenhum tipo de contato com o ex-ministro", afirmou em tom descontraído no no 17º Congresso da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), realizado em São Paulo em 2022.
Eu ouço as maiores barbaridades. Já ouvi que sou gay. Eu não sou gay, mas não me sinto ofendido, não é uma coisa que me ofenda. É uma circunstância da vida.
Luís Roberto Barroso, ministro do STF
"Aquele garoto que ia mudar o mundo"
Nascido em Vassouras (RJ), Barroso define a cidade como "uma das mais bonitas do mundo". Para não parecer um sentimento apenas bairrista, o ministro justifica em seu livro que teria bases de comparação para a afirmação: "Olha que já rodei um bocado", diz.
O ministro conta que frequentou o jardim de infância de propriedade da vovó Maria, que era avó do cantor e compositor Cazuza. "Não era minha avó de verdade, mas, sim, do Cazuza, meu conterrâneo e contemporâneo."
As famílias eram amigas e os dois chegaram a brincar juntos um carnaval "aos 4 ou 5 anos", fantasiados de tirolês. "O que as mães não fazem com os filhos", resumiu.
Ao se mudar para o Rio, Barroso se destacou no vôlei. Foi bicampeão carioca juvenil e vice-campeão brasileiro pela seleção carioca. Além do direito, fez dois anos de Economia na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio), mas abandonou o curso.
Um homem de família e da música
Barroso é pai de Luna e Bernardo e foi casado com Tereza, que morreu em janeiro deste ano, aos 57 anos, em razão de um câncer no fêmur. O luto foi visível: por semanas, Barroso se emocionou ao mencionar ou citar a esposa. E até hoje cita a mulher em histórias importantes de sua trajetória.
O próprio ministro sofreu com a doença ao descobrir um câncer no esôfago, em 2012, antes de ingressar no Supremo. O prognóstico inicialmente lhe deu um ano de vida, mas a resposta foi positiva e Barroso nunca cansa de contar o que aprendeu do período: "Acostumei-me a não fazer planos mais do que três meses à frente".
Como presidente do STF, no entanto, o ministro terá dois anos de mandato para planejar. E se não decidir se aposentar após a presidência, possibilidade que circula nos bastidores de Brasília, ele terá até 2033 para permanecer na Corte.
Em "Sem Data Vênia", Barroso admite que, além do direito, escrevia sobre música e poesia em um blog na internet. Uma das postagens, conta, era uma música feita por um amigo a ele. Ao ser indicado ao Supremo, a canção foi criticada na imprensa por ser um "autoelogio".
"Extingui o blog e criei um, muito menos interessante, só sobre direito", afirmou. "Mesmo as conquistas vêm com perdas", completou.
Apesar de ter deixado a música de lado, os convidados do novo presidente do STF se preparam para uma celebração animada para esta quinta-feira à noite. Como de costume, é esperado que Barroso tenha seu momento cantor e puxe o coro ao som do clássico "Evidências", música já considerada um hino nas vozes de Chitãozinho e Xororó.
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