OPINIÃO
Diretas Já: Há 40 anos SP dava largada na campanha que enterrou a ditadura
Ricardo Kotscho
Especial para o UOL
27/11/2023 16h15Atualizada em 27/11/2023 17h32
27 de novembro de 1983.
Num dia como hoje, há exatos 40 anos, um show-comício em frente ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo, marcou a largada da campanha das "Diretas Já", em que milhões de brasileiros saíram às ruas nos quatro cantos do país para reconquistar a democracia, depois de 20 anos de ditadura militar.
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O enterro oficial só aconteceria um ano depois, com a eleição ainda indireta, no Colégio Eleitoral, de Tancredo Neves — o primeiro presidente civil depois do golpe militar de 1964. Tancredo morreu antes de tomar posse, mas a democracia sobreviveu com o vice José Sarney em seu lugar.
O ano de 1984 foi um divisor de águas na História do Brasil contemporâneo, que uniu o país na defesa da eleição direta para presidente da República.
Eu estava lá, desde o primeiro comício no Pacaembu, até o último, no Vale do Anhangabaú, também em São Paulo, cinco meses depois. Vimos as maiores manifestações cívicas no país depois da "Marcha da Família, com Deus pela Liberdade", onde eu também estava, em março de 1964, ano em que comecei a trabalhar como jornalista.
O golpe e eu somos, portanto, contemporâneos.
Por ironia do destino, aquela marcha foi o estopim para a derrubada do governo João Goulart, deflagrado pelos militares, aliados a políticos conservadores, grandes empresários e quase toda a grande mídia, com o apoio ostensivo dos Estados Unidos.
No dia do primeiro comício, a ditadura já estrebuchava e quase não tinha mais apoio na população civil. Os militares estavam divididos, poucos ainda defendiam a ditadura, como o inenarrável general Newton Cruz, montado em seu cavalo branco, desfilando pela Esplanada dos Ministérios, de chicote na mão, no dia da votação da Emenda Dante de Oliveira — que restabelecia as eleições diretas.
Faltaram apenas 22 votos para a sua aprovação por dois terços na Câmara, pois muitos parlamentares se esconderam em seus gabinetes na hora de votar. A vergonha que sentimos naquela noite logo foi trocada pela vontade de levar a campanha adiante.
Só em 1989 minha geração votaria pela primeira vez para presidente da República — mas tudo começou naquele comício do dia 27 de novembro de 1984. No dia seguinte, a Folha publicou minha reportagem sob o título: "Um domingo de bandeiras no Pacaembu sem futebol", do qual reproduzo um trecho:
Teve música, discurso e muitas bandeiras, teve um momento de emoção quando foi anunciada a morte de Teotônio Vilela, teve muito diz-que-diz nos bastidores, teve o suspense do vai-não-vai do governador Franco Montoro, mas faltou o principal: a grande confraternização suprapartidária, que se esperava da festa-comício, capaz de unir todos os que são a favor das eleições diretas para a Presidência da República e, com isso, lotar a praça Charles Miller.
(...) Desde o começo da tarde, ficou evidente que, apesar da presença de alguns notáveis do PMDB, o maior partido de oposição não havia mobilizado os seus militantes (apenas 15 mil pessoas estavam na praça). O clima francamente petista do comício aumentou a indecisão entre os assessores do governador Montoro, que acabou sendo aconselhado a não ir porque outros membros do PMDB já havia sido vaiados.
(...) Além de ter servido como um marco na campanha pública da campanha pelas eleições diretas, o primeiro comício revelou também todas as dificuldades que ainda terão de ser superadas.
Seria também a largada para a grande cobertura da Folha, que abraçou a causa desde o primeiro momento, por determinação do seu publisher, Octavio Frias de Oliveira, ainda em novembro. A maior parte da grande imprensa só foi entrando aos poucos na cobertura - à medida em que não dava mais para a televisão esconder a grandeza das manifestações.
Aos trancos e barrancos, com seguidas crises políticas, eleições no dia marcado e dois presidentes cassados, a redemocratização avançou.
Se, no início, foi difícil reunir todos no mesmo palanque, a partir do grande comício do dia 25 de janeiro do ano seguinte, com mais de 300 mil pessoas na praça da Sé, organizado pelo governador Franco Montoro, a campanha deslanchou e ganhou o país.
A democracia só seria novamente atacada em 2019, com a posse do ex-capitão Jair Bolsonaro, que passou quatro anos desafiando as instituições e tentando levar o país de volta ao controle dos militares, mas fracassou na tentativa de dar um golpe no dia 8 de janeiro deste ano.
Se hoje vivemos em plena democracia, devemos isso aos milhões que foram às ruas, sob a liderança de homens como Ulysses Guimarães, o "Sr. Diretas", Leonel Brizola e Luiz Inácio Lula da Silva, que animaram a campanha nos palanques da vida, ao lado dos maiores artistas do país e representantes da sociedade civil.
Foi bonita a festa, pá, assim como foi a Revolução dos Cravos em Portugal, um momento de afirmação do povo brasileiro que precisamos lembrar para sempre.
Ditadura nunca mais!
Vida que segue.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL