Emendas triplicam desde 2015: como centrão reduziu o poder do presidente

A aprovação de um valor recorde de emendas parlamentares para o ano que vem consolida um fenômeno iniciado em 2015: desde então, o bloco do centrão se apodera cada vez mais do dinheiro do orçamento diretamente, a ponto de criar um calendário para 2024 estabelecendo quando o presidente deve liberar os recursos. Enquanto a Presidência perdeu poder de barganha, os deputados passaram a dispor do triplo do valor das emendas em comparação com o montante de 2015.

O que aconteceu

As emendas parlamentares são a parte do orçamento que o governo federal repassa a deputados e senadores. Com o dinheiro, eles bancam obras em seus redutos eleitorais. Existem três tipos de emendas: individuais (todo parlamentar recebe), a de bancadas estaduais e, ainda, as de comissões permanentes do Congresso, onde se discutem os projetos antes de serem votados em plenário.

Até 2015, o governo não tinha a obrigação de liberar as emendas e, quando o fazia, pagava quando lhe fosse conveniente. Se o presidente da República não conseguisse maioria no Congresso mesmo distribuindo ministérios ao centrão, garantia a aprovação de seus projetos distribuindo emendas às vésperas de votações de seu interesse.

A partir daquele ano, porém, as coisas começaram a mudar. Sob o comando do então todo poderoso deputado Eduardo Cunha, o Congresso votou uma emenda constitucional (PEC do orçamento impositivo) que tornou obrigatório o pagamento das emendas individuais. Em 2019, outra proposta votada também obrigou o governo a pagar as emendas de bancada. Juntas, elas equivalem a 73% do dinheiro das emendas. O Executivo, no entanto, ainda podia escolher quando abrir o cofre.

O processo de mudança foi liderado pelo centrão. O bloco, formado atualmente pelos partidos PRD, Republicanos, PL, PP e PSD, soma 245 dos 513 deputados e 37 dos 81 senadores. Sem eles, é difícil formar maioria para qualquer votação.

Jair Bolsonaro (PL) deu mais poder ao centrão com o chamado "orçamento secreto". O ex-presidente permitiu a criação das emendas de relator, que distribuiu R$ 29 bilhões e "terceirizou para o centrão" a administração pública, segundo o professor de direito da USP José Eduardo Campos Faria. Em razão da pouca transparência sobre os negociadores, o Supremo proibiu as emendas de relator.

Parceria de Bolsonaro com o centrão ganhou força sob as gestões dos presidentes Rodrigo Pacheco (Senado) e Arthur Lira (Câmara), à direita
Parceria de Bolsonaro com o centrão ganhou força sob as gestões dos presidentes Rodrigo Pacheco (Senado) e Arthur Lira (Câmara), à direita Imagem: ALAN SANTOS

Lula também enfrentou dificuldades para atrair o centrão em 2023 e liberou verbas. Mesmo distribuindo ministérios, o governo petista desembolsou R$ 31,7 bilhões em emendas antes de votações importantes. Às vésperas da sabatina de Flávio Dino para a vaga de ministro do STF, por exemplo, o Executivo liberou R$ 9,9 bilhões.

O presidente perdeu poder de barganha: agora vai receber a emenda tanto o parlamentar que votar a favor como o que votar contra o governo.
Marcus André Melo, cientista político da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco)

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Centrão dobra a aposta

Em 2024, o governo deve liberar R$ 53 bilhões em emendas, segundo o Orçamento aprovado pelo Congresso na sexta (22). A cifra corresponde a um aumento de 42% sobre as emendas de 2023 em valores corrigidos pela inflação.

Do total, R$ 36,3 bilhões são emendas impositivas. Isso significa que, se faltar dinheiro no orçamento, Lula terá de retirar de obras públicas para repassar ao Congresso.

Centrão mina o que restava da autonomia da Presidência. A decisão mais polêmica aprovada na semana passada foi a criação de um calendário para pagar as emendas. Pela primeira vez, o presidente terá até 30 de junho de 2024 para distribuir a verba, tirando dele a opção de só liberar antes de votações importantes.

O calendário dará "autonomia parlamentar". A mudança porá "fim à cooptação política exercida pelo governo de plantão em votações de interesse", disse ao UOL o deputado Danilo Forte (União-CE), relator da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), documento que orientou a aprovação do orçamento. "O parlamentar terá tranquilidade de votar conforme suas convicções, fundamental para acabar com o 'toma lá, dá cá'", afirmou.

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Antes das emendas individuais impositivas, a compra de votos pelo Executivo era muito maior do que é hoje.
Danilo Forte, relator da LDO

Semipresidencialismo?

O Parlamento "esvazia as atribuições do Poder Executivo", rebate o vice-líder do governo Lula no Congresso. Após a votação da LDO, o deputado federal Lindbergh Farias (PT) afirmou que "há intenção de mudar o sistema de governo sem plebiscito: um semipresidencialismo de fato".

Forte defende mais poder a deputados e senadores. "Há uma tendência de que o Legislativo ganhe cada vez mais protagonismo na elaboração de políticas públicas a partir do orçamento", diz ele ao citar políticas inédidas criadas pelo Parlamento, como o Programa Antes que Aconteça, de combate à violência contra as mulheres.

Líder do centrão, presidente da Câmara, Arthur Lira, passou de crítico a aliado de Lula em 2023
Líder do centrão, presidente da Câmara, Arthur Lira, passou de crítico a aliado de Lula em 2023 Imagem: Ueslei Marcelino - 14.set.23/Reuters

Corrupção e ineficiência

O dinheiro das emendas sai dos ministérios. Longe dos programas de governo, o dinheiro nem sempre é alocado com eficiência por deputados e senadores. "As emendas não são a forma mais eficiente de gastar dinheiro público", diz Melo, da UFPE.

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Em alguns casos, as emendas terminam em corrupção. Em novembro, o ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil-MA), virou notícia porque —enquanto deputado— teria indicado emendas para pagar obras realizadas por uma empresa da qual ele seria o verdadeiro dono, o que ele nega.

O potencial de corrupção aumenta porque muitas emendas vão para os rincões do Brasil. A imprensa descobre casos de pessoas conhecidas, como o ministro, mas e no inteior do país, onde ela é menos ativa?
Marcus André Melo

Esse cabo de guerra raramente ocorre no parlamentarismo. "O primeiro-ministro é o líder do partido que ganhou as eleições, logo tem maioria automática no Congresso", diz Melo. "O partido é responsável pela política fiscal do governo, enquanto no presidencialimo multipartidário a sobrevida do deputado não está ligada à sobrevivência do governo."

Na Alemanha não tem emenda. Por lá, a coalizão que venceu a eleição de 2021 assinou um acordo antes da posse informando as diretrizes do governo, seus gastos e os ministérios entregues a cada partido da base.

Ninguém faz emenda individual. A partilha do orçamento existe, mas está detalhada em documentos públicos, não em arranjos costurados nos restaurantes de Brasília.
Marcus André Melo

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