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O que estes três cientistas aprenderam com dengue, zika e influenza que pode virar arma contra covid-19

Diego Comerci, Susana López e Mauricio Terrones contam como suas pesquisas com vírus na América Latina ajudam no combate à covid-19 - Diego Comerci/Gaceta Unam/Nate Follmer-PSU
Diego Comerci, Susana López e Mauricio Terrones contam como suas pesquisas com vírus na América Latina ajudam no combate à covid-19 Imagem: Diego Comerci/Gaceta Unam/Nate Follmer-PSU

Margarita Rodríguez

Da BBC News Mundo

13/04/2020 08h00

Propagação de infecções virais nos últimos anos deixou importantes e dolorosas lições para a América Latina; BBC ouviu três especialistas que tiveram papel de peso no combate a essas doenças nessa região.

"Já não ficamos mais surpresos. Sabemos cada vez mais de surtos e doenças emergentes (no mundo)", me diz a cientista mexicana Susana López.

"Nos últimos anos, passamos por várias: ebola, chicungunha, zika. Quando descobrimos o surto do novo coronavírus, a reação foi: 'outra'", lembra.

A América Latina já foi abalada pela disseminação de várias infecções virais neste início de século.

  • Desde o ano passado, a região está vivendo um dos maiores surtos de dengue nos últimos 20 anos. Em 2019, 1.538 pessoas morreram e mais de três milhões de casos da doença foram registrados na região.
  • Em 2016, o vírus Zika levou boa parte da América Latina a uma crise na saúde, fazendo a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar uma emergência global devido ao seu avanço.
  • Em 2009, o México se tornou um dos primeiros países a relatar casos de influenza A-H1N1. Depois, a OMS classificou a situação como uma pandemia.

Esses vírus deixaram lições importantes e dolorosas para a região, que agora enfrenta, como o mundo, uma pandemia de coronavírus.

A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) perguntou a três cientistas da América Latina engajados no combate ao coronavírus Sars-Cov-2, que causa a covid-19, como suas experiências acadêmicas com os vírus influenza, zika e dengue os estão ajudando nesse novo desafio.

Susana López e o vírus da zika

Susana López é pesquisadora da Universidade Nacional Autônoma do México - Alejandra Arias López/Divulgação - Alejandra Arias López/Divulgação
Susana López é pesquisadora da Universidade Nacional Autônoma do México
Imagem: Alejandra Arias López/Divulgação

Susana López é pesquisadora do Instituto de Biotecnologia da Universidade Nacional Autônoma do México.

Em 2012, ela ganhou um prêmio que a Unesco e a Fundação L'Oréal concedem a cientistas de destaque em todo o mundo.

Foi por liderar a "batalha científica contra um problema universal, os rotavírus que atacam quase todas as crianças com menos de cinco anos em todo o mundo e causam doenças intestinais graves".

No surto do vírus da zika na região, em 2016, um dos aspectos que logo chamou sua atenção foi que "havia transmissão vertical entre mãe e filho e que a infecção nos fetos resultava em malformações como microcefalia". Isto não era visto com outros vírus transmitidos por mosquitos.

Diante disso, "percebemos que uma das coisas que tínhamos a fazer era aprender a diagnosticá-lo. Obtivemos fundos para trazer pesquisadores do Instituto Pasteur do Senegal, para que recebêssemos um curso de treinamento em diagnóstico", conta à BBC News Mundo.

Atualmente, e sem deixar de lado suas pesquisas com os rotavírus, López e sua equipe estão trabalhando no desenvolvimento de testes sorológicos para detectar anticorpos no sangue e, assim, estabelecer quem tem zika, mesmo que não haja sintomas.

Agora, a equipe também recebeu treinamentos para processar testes para o novo coronavírus e deve começar a aplicá-los em membros da comunidade universitária, começando com pessoas de alto risco.

'O que aprendemos'

López diz que sua experiência com o zika mostrou que "a coisa mais útil que podemos fazer como acadêmicos é apoiar instituições de saúde pública dedicadas à epidemiologia".

"Embora sejamos especialistas em biologia molecular e possuamos muitas ferramentas, temos que respeitar as regras da epidemiologia. (Os especialistas nesse campo) São aqueles que validam os testes para que ninguém tenha um falso positivo ou falso negativo".

"Hoje entendo muito bem a rigidez das autoridades de saúde e do departamento de epidemiologia do país para que os testes sejam realizados da maneira correta".

"O que aprendemos é que somos mais úteis quando podemos disseminar tecnologia para instituições que também podem implementá-la, potencializando o trabalho."

O esquecimento

Quando a virologista me disse que a emergência de um novo surto ou doença não mais a surpreendia, ela expôs suas reflexões sobre grandes populações e a interferência humana na natureza.

"Estamos invadindo florestas (...) e isso nos aproxima de muitos animais e insetos com os quais a humanidade normalmente não tinha contato. Dessa forma, muitos vírus que estavam em seus hospedeiros naturais (mosquitos, morcegos e outros animais) infectam as pessoas".

"Nos casos de ebola, zika e coronavírus, o que aconteceu é que o vírus começa a se adaptar (ao corpo humano) e a transmissão da infecção viral entre as pessoas começa a ser desencadeada."

E, depois de ficar sabendo de um novo surto, a sociedade e as autoridades reagem: "Um alarme de saúde é gerado e mergulhamos no laboratório."

Mas, "depois de alguns meses, a novidade passa".

"As pessoas não visualizam o quão importante é a pesquisa científica até que (o surto) chegue em cima. O pior é que a memória é curta. As pessoas perguntam (tardiamente): 'Onde estão os cientistas? Por que não temos mais pessoas trabalhando nisso? Por que eles não projetam as coisas mais rapidamente?'"

"Os governos em geral não entendem que a pesquisa científica não surge do nada, que precisamos de muito mais virologistas em toda a América Latina".

López me fala com frustração do "pouco investimento que existe no campo científico".

No entanto, diante do coronavírus, que, inicialmente, não imaginou se tornar um problema global, ela ainda demonstra um otimismo: "É preciso encará-lo sem medo, pois 80% dos casos são leves", diz, enfatizando a necessidade de manter o isolamento social e seguir as recomendações dos especialistas.

A dengue e Diego Comerci

O pesquisador argentino Diego Comerci tem se dedicado ao desenvolvimento de testes rápidos para a dengue - Diego Comerci/Divulgação - Diego Comerci/Divulgação
O pesquisador argentino Diego Comerci tem se dedicado ao desenvolvimento de testes rápidos para a dengue
Imagem: Diego Comerci/Divulgação

Quando o microbiólogo argentino Diego Comerci se deu conta da velocidade com que o novo coronavírus estava se espalhando pelo mundo ficou estupefato.

"Nunca imaginei que passaria por uma situação dessas", diz ele à BBC News Mundo desde Buenos Aires.

"Embora eu tenha lido e estudado pandemias, surtos e epidemias, porque é um assunto pelo qual eu sempre fui apaixonado, (...) fiquei chocado ao ver o que um micro-organismo estava gerando no mundo inteiro".

"Quando começamos a perceber que se tratava aparentemente de uma nova recombinação, um novo vírus que surgiu do grupo dos coronavírus com propensão a saltar entre as espécies, comecei a me preocupar", diz o pesquisador, com doutorado em biologia molecular.

"Me toquei que teríamos um problema sério na Argentina de saturação do sistema hospitalar."

"E conhecendo o sistema nacional de diagnóstico, que é centralizado, logo pensei que isto rapidamente levaria a um gargalo", diz o professor da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM).

Um teste simples

Assim, com colegas do laboratório que fundou, o Chemtest, Comerci desenvolveu um plano de ação para reorientar parte da tecnologia que já desenvolviam para diagnóstico de outras doenças infecciosas.

E colocaram-se à disposição das autoridades sanitárias de seu país, que os encarregaram de gerar um teste para o coronavírus, se preparando para a demanda por diagnóstico na chegada do pico da epidemia.

Comerci diz que ele e sua equipe estão trabalhando em um teste molecular simples, confiável, barato e rápido, e que leve em consideração as realidades latino-americanas - "onde não há infraestrutura sofisticada para fazer os testes moleculares usados em outras partes do mundo".

Trata-se de um desafio semelhante ao que a Chemtest havia assumido quando buscava um teste rápido para a dengue.

E deu ceeto: o dispositivo com o qual a equipe trabalha é "muito semelhante aos testes de gravidez", com uma gota de sangue determinando em cinco minutos se uma pessoa tem dengue. O teste detecta especificamente a presença de um anticorpo que aparece cedo, a imunoglobina M (IgM).

Em 2014, o Ministério da Defesa argentino solicitou o teste rápido de dengue para seus soldados em missão da ONU no Haiti. Segundo Comerci, o dispositivo foi amplamente utilizado durante o surto epidêmico no país caribenho.

Uma estrela em ascensão: o diagnóstico

De acordo com Comerci, o teste tem a aprovação das autoridades sanitárias de seu país e já está sendo implementado em algumas províncias da Argentina.

"A lição mais importante que a nossa experiência com a dengue nos deixou é que as ferramentas que o sistema de saúde precisam estão além do que nós, acadêmicos, acreditamos ser o melhor".

"Às vezes, a pessoa fica muito trancada no conhecimento dos laboratórios, no mundo dos especialistas, dos acadêmicos, e perde a perspectiva do que o sistema de saúde realmente precisa como soluções", diz o professor.

Embora tanto o vírus da dengue e o coronavírus tenham como material genético o RNA, seus diagnósticos são "absolutamente diferentes", explica o microbiólogo.

"O caso do coronavírus é totalmente novo. Na verdade, é um vírus com 90 dias de idade. Não está claro se os testes sorológicos ou imunológicos têm valor e, se tiverem, que valor é esse."

"É por isso que não estamos mirando necessariamente longe, mas no que a emergência pede hoje - que é detectar pessoas portadoras do vírus, sintomáticas ou assintomáticas."

"Não é de surpreender que a OMS, que historicamente não deu muita importância à questão do diagnóstico, esteja dizendo que o ponto central hoje é a identificação de positivos, sintomáticos ou assintomáticos".

"Estou convicto e há evidências científicas mostrando que, no caso do coronavírus, o que estamos vendo é a ponta do iceberg. Abaixo, há uma enorme massa de pessoas assintomáticas que transmitem o vírus".

Por esse motivo, reflete o especialista, a área de diagnóstico deve ser valorizada de uma vez por todas.

A influenza e Mauricio Terrones

Terrones é professor de química, física e ciência dos materiais - Nate Follmer/Penn State University - Nate Follmer/Penn State University
Terrones é professor de química, física e ciência dos materiais
Imagem: Nate Follmer/Penn State University

Imagine que você entra em uma floresta e, ao caminhar, encontra cada vez mais árvores. Você tenta avançar, mas já existem tantas árvores que é quase impossível dar um passo.

Mais cedo ou mais tarde, você ficará preso e não poderá escapar.

É isso que o premiado cientista mexicano Mauricio Terrones está tentando fazer com os vírus: capturá-los para ajudar a desenvolver vacinas e testes rápidos.

E para isso ele projetou, junto com sua equipe da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, uma espécie de "floresta" que é imperceptível ao olho humano.

"Construímos uma floresta de nanotubos alinhados muito próximos uns dos outros, com o objetivo de aprisionar o vírus", explicou à BBC News Mundo.

"Fizemos isso com vírus de aves e vírus que causam doenças respiratórias humanas, de influenza (gripe). Acreditamos que isso deve funcionar com o vírus da covid-19."

O benefício da captura

O primeiro passo para detectar um vírus é pegá-lo, diz o acadêmico. Identificá-lo primeiro é a chave para agir em um surto.

"Pegamos vírus semelhantes ao coronavírus, mas em animais. Em tamanho, (...) o vírus da gripe tem cerca de 100 nanômetros, o coronavírus de 125 a 150 nanômetros. Estamos na faixa e isto poderia ajudar com amostras do Sars-CoV-2", indica o acadêmico.

O pequeno dispositivo que os cientistas da universidade americana desenvolveram tem a vantagem de não depender da presença de anticorpos, o que é essencial para estudar vírus emergentes ou desconhecidos.

"O importante é que o vírus que capturamos seja viável e possa se replicar", explica o físico.

Aqueles que se apresentem como "viáveis", esclarece o professor, permitirão que sejam colocados em contato com "células para infectá-las e, portanto, para que se repliquem de forma mais eficiente, o que ajudará no desenvolvimento de vacinas".

A tecnologia desenvolvida por Terrones também utiliza a chamada espectroscopia Raman (técnica que estuda os modos de baixa frequência de moléculas e proteínas) para ajudar no diagnóstico.

Uma amostra (de saliva, por exemplo) é coletada de um paciente, dissolvida em líquidos especiais e passada através de uma seringa que contém o dispositivo. Em cinco minutos, é indicado se o sinal (o espectro) é positivo ou negativo.

A identificação é possível graças a um banco de dados de espectros que contém as "impressões digitais de diferentes vírus".

"Os testes que fizemos com os vírus da influenza respiratória e da parainfluenza (com amostras humanas) tiveram 90% de precisão", comemora o pesquisador.

Segundo o químico, essa tecnologia poderia ser usada nos aeroportos, por exemplo.

H1N1 à vista

Se o mexicano aprendeu alguma coisa estudando vírus como os que causam influenza aviária ou influenza A-H1N1, é que o maior desafio é prever a evolução dos vírus.

E esse ensinamento assume um papel especial à luz da pandemia de covid-19.

"Quando os vírus sofrem muita mutação, fazem com que nossos anticorpos e vacinas parem de funcionar", diz.

"Se identificarmos certos padrões antes que a mutação ocorra, podemos de alguma forma ir adiante e atacar o vírus."

E, nesse aspecto, o estudo que o professor e seus colaboradores estão realizando com o H1N1 pode ajudar.

"Estamos investigando o H1N1 para ver como ele está se transformando, porque, por exemplo, quatro cepas foram incluídas nas vacinas sazonais do ano passado."

Entender como acontecem as mutações do H1N1 "pode nos ajudar a prever mutações do coronavírus, que nos pegou de surpresa porque é novo."