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Covid-19: na marca dos 310 mil mortos, vale mudar a prioridade das vacinas?

Grupos prioritários são definidos conforme sua vulnerabilidade à doença e necessidade de conter a transmissão - PA Media
Grupos prioritários são definidos conforme sua vulnerabilidade à doença e necessidade de conter a transmissão Imagem: PA Media

Paula Adamo Idoeta - Da BBC News Brasil em São Paulo

29/03/2021 07h04

Em seguida ao governo de São Paulo anunciar, na última quarta-feira (24/3), que começará a vacinar agentes de segurança pública contra a covid-19 a partir de 5 de abril e um contingente de 350 mil professores com mais de 47 anos a partir de 12 de abril, outros Estados afirmaram que esses grupos começarão a ser contemplados em seus planos de vacinação.

É o caso, por exemplo, do Espírito Santo, que prometeu começar a imunizar as duas categorias profissionais em 15 de abril, e Goiás, onde forças policiais e de salvamento terão direito a partir de agora a 5% do estoque de vacinas encaminhado ao Estado pelo Ministério da Saúde. No Distrito Federal, não foi estabelecida data, mas o governador Ibaneis Rocha (MDB) afirmou que professores serão incluídos na próxima etapa de vacinação. No Paraná, a expectativa é vacinar educadores até maio.

Esses Estados pretendem começar a vacinar esses grupos específicos provavelmente antes de conseguir concluir a vacinação de idosos, considerados a faixa etária sob maior risco de desenvolver quadros graves e fatais da covid-19.

No caso específico de São Paulo, muitos professores e demais trabalhadores de escolas se queixam de o setor ter sido incluído na lista de atividades essenciais — podendo, portanto, funcionar até na fase vermelha — sem que esses profissionais fossem antes vacinados.

'Todo mundo é prioritário no momento'

Ao mesmo tempo, a atual situação pandêmica do Brasil — com mais de 310 mil mortos, um enorme número diário de novos casos da doença, colapso dos sistemas de saúde e médicos relatando quadros cada vez mais graves também entre não idosos — tornou-se um fator a mais nas discussões do estabelecimento de prioridades, em um momento em que o país não tem vacinas o bastante para todos.

"É muito difícil a situação atual do país. Todo mundo é prioritário no momento. Vemos uma taxa altíssima de casos entre policiais, e professores precisando da vacinação para voltar à escola. Sem dúvida professores e policiais precisam ser priorizados, mas no ponto em que chegamos é uma 'escolha de Sofia' entre quem tem que ser vacinado antes", diz à BBC News Brasil Carla Domingues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI).

"Vamos ter que ir achando um ponto de equilíbrio, porque o aumento de jovens em UTIs coloca a gente em uma situação dessas. Se a epidemia estivesse controlada, com certeza não seria o momento (de ampliar para outros grupos que não idosos)."

'Injustiça e imprevisibilidade'

No entanto, para Jorge Pinto Andrade, imunologista e professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), colocar outros grupos no topo das prioridades não só é problemático, como também tira a previsibilidade e a justiça do programa de vacinação.

"Abrir para novos grupos prioritários, cedendo a pressões locais, torna a coisa toda mais injusta. Um dos aspectos da priorização é justamente reduzir as desigualdades sociais", opina, apontando que o país ainda está longe de ter alcançado níveis de imunidade coletiva adequados entre os grupos mais vulneráveis que já começaram a ser vacinados.

"Em qualquer epidemia você prioriza grupos bem estabelecidos, definindo a necessidade de proteção direta (prevenção de mortes) e redução de transmissão. As prioridades (de vacinar primeiro esses grupos) continuam as mesmas. O problema é que estamos lidando com a escassez de vacinas, e o país não tem um plano nacional consistente e previsível, então, fica um processo de cada um por si nos Estados e municípios."

No momento, o Brasil é o país do mundo que tem contabilizado o maior número de casos diários confirmados do coronavírus, tendo superado os Estados Unidos. Só na quinta-feira (25/3), segundo o Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), foram registrados 100.736 novos casos da doença, um recorde. Neste sábado (27/3), foram mais quase 86 mil novos casos.

Como não há dados nacionais com a idade dos infectados, é difícil saber se as infecções têm crescido mais em um ou outro grupo populacional, por exemplo.

O que se sabe a partir da experiência de outros países, diz Pinto Andrade, é que, quando se chega ao pico de casos, ainda são necessárias mais cerca de quatro semanas para o número de novos casos cair pela metade. "E não tem nenhum sinal de que o Brasil já tenha chegado no pico: nossa curva está ascendente."

Plano nacional

A situação é dificultada pela falta de uma política federal clara, dizem os especialistas.

Em fevereiro, o Supremo Tribunal Federal pediu esclarecimentos ao Ministério da Saúde, a respeito dos critérios para definir grupos de prioridade das vacinas, diante de diversas denúncias de que, na ausência de diretrizes concretas a Estados e municípios, estava ocorrendo a vacinação de pessoas que não eram de grupo de risco nem estavam sob perigo elevado de contrair o novo coronavírus.

Em nota técnica de resposta, o ministério listou as categorias prioritárias e afirmou que, "considerando que alguns grupos prioritários possuem grande volume populacional, faz-se necessário prever prioridades dentro desses estratos populacionais ('prioridade dentro da prioridade')".

O Plano Nacional de Operacionalização de Vacinação contra a covid-19, feito pelo governo federal, elencou os seguintes grupos, nesta ordem, como prioritários à vacina:

  • pessoas com 60 anos ou mais e pessoas com deficiência institucionalizadas;
  • povos indígenas vivendo em terras indígenas;
  • trabalhadores de saúde;
  • pessoas de 75 anos ou mais;
  • povos e comunidades tradicionais ribeirinhas e quilombolas;
  • pessoas de 60 a 74 anos;
  • pessoas com comorbidades;
  • pessoas com deficiência permanente grave;
  • pessoas em situação de rua;
  • população privada de liberdade e funcionários do sistema carcerário;
  • trabalhadores da educação do ensino básico (creche, pré-escolas, ensino fundamental, ensino médio, profissionalizantes e EJA);
  • trabalhadores do ensino superior;
  • forças de segurança e salvamento;
  • Forças Armadas;
  • trabalhadores de transporte coletivo rodoviário de passageiros, metroviário e ferroviário, aéreo e aquaviário;
  • caminhoneiros;
  • trabalhadores portuários e industriais.

Estados e municípios, porém, têm tido flexibilidade para ajustar a vacinação conforme a disponibilidade de doses e as necessidades locais.

No início de março, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, chegou a comemorar como uma "vitória da educação brasileira" o pedido ao Ministério da Saúde pela inclusão de professores entre os grupos prioritários, mas até agora a medida não teve efeitos práticos - como mostra a lista acima do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação, não constam mudanças no status de educadores na ordem dos grupos prioritários.

Na Câmara, ao menos dois projetos de lei em tramitação pedem a inclusão de professores entre os prioritários.

Em linhas gerais, a lista do Ministério da Saúde segue as recomendações da Organização Mundial da Saúde, que orienta que "quando os suprimentos de vacina estão severamente reduzidos, (...) justifica-se um foco na redução direta da morbidade e mortalidade e na manutenção dos serviços mais essenciais, ao mesmo tempo em que considerando-se reciprocidade a grupos colocados sob riscos desproporcionais (como trabalhadores da saúde)."

À medida que mais doses chegarem, "a estratégia se expande para reduzir a transmissão para conter as perturbações às atividades socioeconômicas."

Mas a OMS faz a ressalva de que deve-se priorizar, também, locais "com alta transmissão ou onde se antecipa que haverá alta transmissão".

O problema é que esse é o caso da maior parte do Brasil neste momento. É o sinal de que "já passou a chance de ter feito qualquer bloqueio de transmissão" comunitária, diz Pinto Andrade, "mostrando a completa ausência de análise epidemiológica" por parte do governo federal.