Políticas rígidas, mas aplicação frouxa podem disseminar ebola
A casa deveria estar sob rígida quarentena. As refeições seriam entregues pelo Ministério da Saúde. Ninguém deveria entrar ou sair.
Mas a aplicação das duras novas medidas do governo para conter o ebola deixava a desejar. Dois policiais estavam conversando, fora de vista. Visitantes chegavam e partiam, incluindo familiares e amigos que não deveriam estar lá. Na varanda da frente estavam sentados os pais da vítima do ebola. A mulher jovem morreu nos braços da mãe.
Eles tocaram o corpo da jovem, o que os deixa sob sério risco de contágio. Mas dias após a morte de Saudatu Koroma, sua mãe, Anna Conté, saiu para encher de água seu bule de plástico na torneira comunal usada por dezenas de outras pessoas. Os guardas do governo não pareceram notar.
Alarmados pelo maior surto de ebola do mundo, os líderes da África Ocidental declararam medidas extraordinárias para combater a doença, incluindo o fechamento de escolas, a autorização de buscas de casa em casa por pessoas infectadas e, ao menos no papel, a promessa de ir além dos padrões de controle internacionais para deter o vírus.
Aqui em Serra Leoa, o país com o maior número de casos da doença, o governo decretou estado de emergência –dizendo às famílias para permanecerem em casa na segunda-feira (4) para "reflexão, educação e orações"– e ordenou novas medidas rígidas, como proibições de reuniões públicas e o édito de quarentena.
"A própria essência de nossa nação está em risco", disse o presidente Ernest Bai Koroma, em um discurso televisionado, na manhã de segunda-feira.
Mas essa posição está sendo acompanhada por uma fiscalização frouxa, que está preocupando profundamente os médicos e agentes de saúde que tentam conter a rápida disseminação do vírus.
"O ebola não permite um engajamento pela metade", disse Walter Lorenzi, o chefe da missão Médicos Sem Fronteiras em Serra Leoa. Seu grupo, que está combatendo a doença na linha de frente, declarou que a epidemia de ebola estava fora de controle em Serra Leoa e em países vizinhos na África Ocidental.
"Não é espantoso que esteja se disseminando", acrescentou Lorenzi, criticando o esforço local para combater a epidemia. "É preciso cuidar dos menores detalhes."
O surto foi identificado inicialmente em março em uma região remota da Guiné. De lá para cá, ele se espalhou com rapidez mortal, se disseminando pelas fronteiras porosas em uma das partes mais pobres da África.
A epidemia também viajou pelo ar, depois que um americano trabalhando na Libéria voou para a Nigéria, o país mais populoso da África, e morreu lá na semana passada. Na segunda-feira, a imprensa nigeriana noticiou que um médico que o tratou também contraiu a doença.
Até sexta-feira, 887 pessoas na região haviam morrido, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), facilmente o maior número de mortes por ebola já registrado. Na esperança de deter o avanço, a Libéria pediu às pessoas que evitem "diversões públicas e centros de entretenimento", as autoridades nigerianas estão verificando os passageiros que chegam de avião e Serra Leoa está exigindo que qualquer morte no país seja informada antes que o corpo possa ser enterrado.
Mas a capacidade dos países na parte inferior dos rankings globais de desenvolvimento, com alguns dos piores sistemas de saúde do mundo, de aplicar amplas políticas para conter uma doença tão virulenta é uma grande preocupação.
Dias após a presidente da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, ter recomendado a cremação dos corpos das vítimas do ebola, que são altamente contagiosos, as autoridades tentaram enterrar dezenas de corpos em uma vala comum perto de onde viviam pessoas, provocando protestos e queixas posteriores de que alguns dos corpos não estavam devidamente cobertos com terra.
Na segunda-feira, o Banco Mundial disse que forneceria até US$ 200 milhões para ajudar Guiné, Libéria e Serra Leoa a combater a doença e lidar com o impacto econômico. O anúncio ocorreu após um alerta da OMS, no final da semana passada, de que o vírus estava se espalhando mais rapidamente do que os esforços para contê-lo, uma preocupação repetida por alguns dos agentes de saúde locais encarregados de conter a epidemia.
As ruas de Freetown estavam vazias e assustadoramente silenciosas na segunda-feira, o "dia de ficar em casa" decretado pelo governo. Grande parte do comércio e escritórios estava fechado e a polícia parava os motoristas ocasionais em postos de controle.
Mas o isolamento das vítimas e o monitoramento cuidadoso daqueles em sua órbita imediata, como ordenado pelo governo, não estava acontecendo no bairro pobre de Kissi. Na casinha de blocos de concreto sem pintura da família Koroma, sem parentesco com o presidente, cinco membros da família deveriam estar sob quarentena do governo. Entretanto, havia pelo menos oito pessoas na tarde de domingo na minúscula varanda, com vista para o declive lamacento que leva à Baía de Cline.
"Os vizinhos estavam lá. Essa é a preocupação. Eles não estão isolados", disse uma nutricionista do Ministério da Saúde, que veio entregar as refeições da família –colocando a comida, pratos descartáveis e utensílios de plástico na varanda. Ela se recusou a dizer seu nome, dizendo não estar autorizada a falar publicamente.
"A família, os vizinhos, eles vieram em solidariedade", ela acrescentou. "Eles não entendem."
Pelo menos três outras casas em Freetown deveriam estar sob quarentena, disse a nutricionista. Até o momento, a capital foi em grande parte poupada –a integrante da família Koroma, Saudatu, 32 anos, foi uma dentre o relativo punhado de mortes por ebola na cidade– mas a doença é devastadora no leste de Serra Leoa. Ao todo, 234 mortes foram confirmadas no país, o segundo maior total atrás da bem mais populosa Guiné, onde a epidemia teve início.
Serra Leoa agora tem mais casos do vírus do que qualquer outro país na região, 646 dentre um total de 1.603, segundo a mais recente contagem da OMS. Na cidade de Kenema, onde o governo tentou montar um centro de tratamento, 15 dos 20 funcionários de saúde, incluindo o principal médico do país, morreram. Os demais, enfermeiros mal remunerados, entraram em greve devido à resposta frouxa inicial do governo.
O problema não é apenas com o esforço do governo. Em alguns locais, a própria existência do ebola continua a ser questionada pela população que o vírus está afligindo.
Na rua do lar da família Koroma, um cartaz de alerta do governo sobre o ebola foi em grande parte arrancado da parede. A poucas quadras de distância, um caminhão do Ministério da Saúde, equipado com alto-falantes e exibindo imagens dos sintomas do ebola, alertava os moradores sobre os riscos. Ninguém na rua movimentada no domingo dava atenção.
Vários transeuntes disseram não estar cientes de que uma vítima do ebola morava na rua. Um homem jovem do bairro, ao ver os visitantes ocidentais em um carro, foi até a janela, bateu com seu punho em um deles e berrou, "Não tem ebola aqui!"
A mãe de Saudatu reconheceu "muitos toques" em sua filha moribunda –a forma comum de contágio– mas ela e outros parentes insistem que sua filha morreu de outra coisa.
"Não foi ebola que a matou", disse Sule Koroma, 24, o irmão de Saudatu, que estava furioso por estar confinado em casa. Ele disse que alguém "a amaldiçoou, foi assim que surgiu esse embaraço".
A forma como a família Koroma lidou com os últimos dias de Saudatu ganhou notoriedade na imprensa local, quando os parentes dela, desesperados com o agravamento de seu quadro, foram até o hospital em Freetown onde ela estava sendo tratada e simplesmente a levaram para casa.
"Nós dissemos ao médico, 'Nós vamos partir'", disse Sule, sentado na varanda. "Ele disse, 'Vão e façam o que quiserem'", contou.
Os médicos lhes disseram inicialmente que Saudatu estava sofrendo de malária ou febre tifoide, ele disse, apesar das autoridades de saúde terem dito que ele era de fato uma vítima de ebola e que o isolamento de sua família ajudaria a conter a doença.
"Nós removemos nossa irmã, para podermos ir ao lado nativo", disse Sule, referindo-se ao curandeiro tradicional. "Porque nós tentamos o modo inglês. E não funcionou", ele disse. "Então tentamos o modo nativo, para ver se ele poderia curá-la ou não."
À medida que a condição de Saudatu piorava, a família a colocou em uma ambulância para voltar ao hospital. "No caminho, a mulher morreu", disse Sule, segurando um cartão de aniversário que Saudatu –uma mulher jovem alta usando um top preto– tinha feito para sua mãe.
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