É possível ter 23 personalidades? Entenda transtorno do filme "Fragmentado"
Imagina estar em uma reunião de trabalho e de repente apagar. Quando você recupera a consciência, nota que está no mesmo lugar, mas todos olham assustados e contam que você, sem mais nem menos, começou a falar com voz de criança, mudou trejeitos e trocou de personalidade.
A cena pode parecer improvável, mas mostra a experiência de um paciente com TDI (Transtorno Dissociativo de Identidade). O diagnóstico é dado para pessoas que têm duas ou mais personalidades e episódios de amnésia. Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o quadro também conta com perda de controle das próprias ações e mudanças de consciência e de comportamento.
Os casos seriam parecidos com o do filme "Fragmentado", que conta a história de um homem com 23 personalidades diferentes. O transtorno, no entanto, não é como o retratado nos cinemas.
O que é o TDI?
O TDI é um transtorno raro que, em geral, acontece com quem sofreu traumas muito fortes na infância relacionados a abuso sexual, abandono, agressão ou bullying.
O quadro costuma se desenvolver na infância ou adolescência, momento em que o indivíduo constrói sua personalidade e está descobrindo como reagir a diferentes situações.
“É uma defesa emocional para sobreviver ao trauma. São pacientes que sofreram muito e ficaram com estruturas psicológicas fracas para encarar a vida, então criam alternativas nas outras personalidades”, diz Mirian Pezzini, psiquiatra em Passo Fundo (RS).
Como é viver com várias personalidades?
Pezzini atendeu um paciente com 13 personalidades diferentes, experiência que ela acredita que não deve se repetir em sua carreira devido à raridade do transtorno.
“No início você até acha que é atuação, mas normalmente uma pessoa só atua quando vai ganhar algo com aquilo, e um paciente com TDI só ganha sofrimento”, explica a médica.
O paciente é homem, tinha 24 anos e dizia conviver há 10 anos com “13 amigos e demônios” que eventualmente assumiam seus atos e deixavam lacunas em sua memória. De acordo com Pezzini, as pessoas com TDI têm em média dez personalidades, mas não há um limite determinado.
“Ele se pune por passar por isso, não conseguia manter um emprego, seus familiares achavam que era louco. Ele simplesmente desligava e acordava sem saber como chegou ao lugar que estava, com roupas estranhas ou pessoas que não lembrava conhecer”, conta a psiquiatra.
As personalidades têm relação direta com os traumas do passado. Uma delas era uma criança que não recebia apoio dos pais, e se relacionava aos traumas de abuso sexual que o paciente sofreu de um familiar. Outra personalidade era agressiva e expunha o ódio do abusado. Ainda há uma persona muito sexualizada, que se referia ao fato da mãe ser prostituta.
As personalidades são completas. Têm diferentes princípios, vozes, idades, força física e podem ter opções sexuais distintas. Uma delas dizia ter uma doença que as outras não tinham, asma.”
Mirian Pezzini, psiquiatra em Passo Fundo
“O corpo é sempre o mesmo, então é difícil ter alterações físicas. O que pode acontecer é que você não muda a estrutura biológica, mas muda o condicionamento da mente e assume que tem a doença”, explica Ricardo Riyoiti Uchida, coordenador de psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
No caso, a asma não foi diagnosticada no paciente, mas o personagem tinha a percepção de estar doente e sofria os sintomas, como a falta de ar.
O paciente conhece seus 'personagens'?
Por ser um transtorno muito diferente, o TDI gera diversas dúvidas, mas nem todas têm respostas precisas. “A doença tem poucos registros e sem muitos pacientes é difícil estudá-la por completo”, afirma Uchida.
Com sua experiência, Pezzini relata o que compreendeu: “O eu principal tem uma percepção que outro personagem está entrando em cena, sabe que eles existem, mas ‘se ausenta’ no momento da troca. Então, não sabe o que acontece ou quem está no controle”.
No caso do paciente da psiquiatra, o principal não conhecia os personagens e, além disso, as personalidades não tinha acesso às memórias do eu principal.
De acordo com André Monteiro, psicólogo de Brasília que estudou o TDI, a pessoa é majoritariamente seu eu principal, mas ao ser exposta a situações específicas de estresse, desconforto e incômodo, assume outra personalidade.
Eu vi trocas. Quando abordava assuntos difíceis para ele, que despertavam dor emocional, ele não tolerava, começava a falar estranho, piscar com força e mudava de personalidade"
Mirian Pezzini, psiquiatra em Passo Fundo
Pelo alto nível de complexidade do transtorno, os pacientes diagnosticados tendem a ser introvertidos para evitar a exposição da condição e tem a sensação de que são plateia da própria vida, por não ter controle das ações, explica o psicólogo.
Tem tratamento?
Com ajuda de terapia, quem sofre do transtorno pode entender de onde suas dores vêm e consiga voltar a ser um só ‘eu’.
“Temos que levar a sério as mensagens das personalidades para fazer com que o paciente tenha contato com os sentimentos expressados por elas. É um trabalho de longo prazo até que aconteça a união e o eu principal consiga ficar sob controle”, diz Monteiro.
O que atrasa o tratamento é a dificuldade de diagnóstico. No contexto psiquiátrico brasileiro, por exemplo, não existem instrumentos específicos para a detecção e quantificação de sintomas dissociativos. Diretrizes internacionais, como entrevistas diagnósticas, são usadas por alguns especialistas para caracterizar o TDI.
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