Uma das grandes decisões que líderes políticos precisam tomar e, principalmente, executar diante de uma epidemia é qual o ritmo de espalhamento de infecção que se busca. Essa discussão parece, à primeira vista, absurda, pois o ideal é acabar com o vírus. Mas, com os recursos que a humanidade possui contra o novo coronavírus, é o melhor que se pode fazer.
Relembrando: a covid-19 é uma doença diagnosticada no final de dezembro na cidade de Wuhan, na China, e houve um surto na província de Hubei e em todo país asiático. Aos poucos, foi diminuindo lá, ao mesmo tempo em que aumentou em alguns países, especialmente Coreia do Sul, Irã e Itália.
A Coreia controlou o surto, mas na Itália isso explodiu. Casos surgiram na Espanha, França e Alemanha, e um pouco menos no Reino Unido e Estados Unidos. O Brasil vem na mesma curva apresentada na Itália, só que 18 dias atrás. Essa é a situação de hoje. Amanhã pode ser diferente.
Sem saber como combater a infecção — ainda não foi desenvolvida uma vacina —, a humanidade tenta controlar a epidemia. É aí que voltamos à questão inicial desse texto: qual ritmo de espalhamento do vírus se busca?
Como o vírus se propaga?
O motivo de ter de escolher a estratégia é o modo como o vírus se espalha. Um dos complicadores é que não se sabe exatamente como se dividem os infectados. Uma maioria tem poucos (ou nenhum) sintomas e se cura sozinha; uma minoria vai precisar de hospitalização; uma parte desses vai para a UTI, e uma fração morre.
Um estudo publicado no New York Times indica que, a cada 200 casos do novo coronavírus, 20 pacientes são hospitalizados, quatro vão para a UTI e um morre. Essa é uma taxa de letalidade de 0,5%. Mas esse é apenas um estudo. Há países, como a Itália, em que essa taxa é de 5% — de cada 200 caos, 10 morrem.
Isso acontece porque, além da ação do vírus, outros fatores interferem nessa taxa: a infraestrutura hospitalar, o saneamento básico, os níveis médios de saúde e educação da população e até a disciplina das pessoas em obedecer às diretrizes fixadas pelo governo.
Sabendo isso, é preciso escolher um caminho:
1) Bloquear ao máximo o espalhamento, o que vai fazer com que a epidemia dure mais, mas seja menos severa a cada momento (o que se chama de "supressão");
2) Liberar o vírus para circular, situação em que a imunização coletiva é mais rápida, porém com um pico muito mais alto de contaminação e mortes;
3) Uma solução intermediária, que consiste num delicado jogo de controle, baseado no fato de que é impossível controlar o espalhamento. É a chamada "mitigação".
Embora um fator crucial nessa tomada de decisão seja o número de mortes, é preciso levar em conta também outras questões, como o impacto econômico - uma recessão aguda e prolongada pode provocar mortes no período seguinte.
A China não teve muito tempo para decidir e optou pelo trancamento total. A estratégia foi muito criticada no início, mas gradualmente os países a estão adotando.
Como o Brasil tem agido?
O Brasil tem prestado atenção nas estratégias usadas fora do país, o que é correto, mas parece esquecer que muitas delas não se aplicam à maior parte da população daqui. O caso mais evidente é a questão do isolamento. Como disse de forma enfática o líder da comunidade de Paraisópolis, é impossível fazer isolamento.
Na China, em que grande parte da população vive em condições de aglomeração semelhantes às de uma favela (mas com melhor saneamento e infraestrutura em comparação ao Brasil), o governo decidiu em primeiro lugar internar todos os doentes. Quando não havia mais leitos, mandou-os para casa.
Foi quase um desastre. Surgiram problemas de todos os tipos. Os infectados espalhavam a doença em casa. Muitos doentes não procuravam o hospital porque não confiavam no atendimento ou temiam o isolamento.
Por causa disso, o governo criou enormes espaços de isolamento coletivo, para casos moderados da doença. E ainda mantém espaços do mesmo tamanho para pessoas que estão em quarentena, depois de receber alta médica - para evitar a progressão dos casos de pessoas que têm um resultado negativo sem estar curadas por causa das limitações de coleta do material analisado.
Problemas na estratégia brasileira
No Brasil ainda há muitos pontos sem definição. Na semana passada, ainda havia uma forte -embora minoritária — corrente no governo federal que defendia a livre propagação do vírus. No domingo, o próprio presidente discursava contra a gravidade da situação. Ontem, parte do governo ainda mostrava não saber que faltam máscaras até para médicos e enfermeiros que combatem a epidemia.
Além disso, há uma série de indícios que mostram deficiência na condução da crise.
O primeiro ponto é a dificuldade para conseguir informações confiáveis e oficiais em relação ao avanço da epidemia. Gestores oficiais de saúde dizem que não é possível obter informações simples, como quantos casos graves há no país.
O governo, mesmo vendo a epidemia crescer na China, não estocou uma quantidade suficiente de máscaras e outros equipamentos de proteção, nem aumentou leitos de UTI na quantidade necessária, nem construiu hospitais (na China foram construídos em dez dias) ou adaptou locais para servir como pontos de isolamento. Também não comprou nem aprovou suficientes kits de testes — até dias atrás, não havia capacidade de processar esses exames, fazendo com que um resultado pudesse levar mais de uma semana para sair (prazo muito maior do que os dois dias necessários para sequenciar o vírus inteiro, aqui mesmo no Brasil).
Também houve demora para aprovação pela Anvisa de novos tipos de testes, e isso provocou um gargalo que se resolveu de maneira abrupta quando sete testes foram aprovados ao mesmo tempo.
Números que assustam
Existe no Brasil uma situação de enorme heterogeneidade tanto na realização de testes, como nas medidas restritivas, passando até pelos procedimentos hospitalares. O presidente do Hospital Albert Einstein estima que haja 15 casos de covid-19 no país para cada um que foi diagnosticado. Em vez dos 540 oficiais, seriam 8 mil.
Na segunda-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que o governo projeta até 170 milhões de infectados. Ou ele está equivocado ou podem acontecer 850 mil mortes por aqui (usando a taxa conservadora de 0,5% de letalidade). Para ter uma ideia de comparação, na China houve 3 mil mortos.
Esse número é absurdo? De jeito nenhum. Um estudo feito pelo Imperial College, de Londres, concluiu que se os Estados Unidos e o Reino Unido não mudassem drasticamente sua condução do caso, o número de mortos poderia chegar a 2,2 milhões e 550 mil pessoas respectivamente. O Reino Unido mudou de estratégia imediatamente. Os EUA, ainda não.
E estudos mostram que apenas um dia de demora na adoção de medidas pode gerar dezenas de milhares a mais de infecções — é bom lembrar que apenas um evento religioso na Coreia do Sul gerou 3 mil testes positivos.
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