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Domésticas defendem direito à quarentena remunerada e dividem patrões

A doméstica Rosângela Conceição dos Santos e a secretária geral da Fenatrad, Cruza Maria Oliveira - Aurélio Nunes/UOL
A doméstica Rosângela Conceição dos Santos e a secretária geral da Fenatrad, Cruza Maria Oliveira Imagem: Aurélio Nunes/UOL

Aurélio Nunes

Colaboração para o UOL, de Salvador (BA)

29/03/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Categoria reivindica direito de cumprir período de confinamento em casa
  • Empregada doméstica morreu no RJ infectada por patroa com coronavírus
  • MPT e infectologistas recomendam isolamento, mas maioria dos patrões resiste
  • Alguns impõem medidas de profilaxia ineficazes e exigências ilegais
  • Medo de perder emprego explica ausência de ações na Justiça
  • Família que liberou empregada divide tarefas e tira lições da situação

Todos os dias Margarida*, 39, paga R$ 6,50 pela corrida com um motorista de aplicativo para percorrer o trajeto entre a sua casa e a da patroa.

Antes de abrir a porta do apartamento em Brotas, seu local de trabalho, na região central de Salvador (BA), esfrega as mãos com um pouco do álcool gel especialmente deixado para ela no hall e parte em direção ao sanitário para colocar o uniforme. Só então começa a rotina, que demanda cuidados com a casa e de sua mais velha moradora, uma senhora de 83 anos de idade.

Na volta ao lar, outro ritual se repete: ela entra pela área de serviço, deixa as roupas na máquina de lavar, segue nua até o sanitário e somente depois de tomar banho e se trocar que ela se permite entrar em contato com o filho.

Andando de lá para cá, Margarida vive com medo de se transformar em um vetor do novo coronavírus, que tem em seu grupo de risco perfis em que se encaixam tanto a idosa que cuida no trabalho, quanto seu próprio filho, que é asmático.

Tenho amiga que conseguiu antecipar as férias, mas comigo não teve acordo. O que é que eu posso fazer?"

Rosângela Conceição dos Santos, 31, trabalha desde a adolescência como empregada doméstica, mas só teve a carteira de trabalho assinada pela primeira vez quando arrumou seu mais novo emprego, há seis meses.

Rosa, como gosta de ser chamada, foi temporariamente liberada de suas atividades laborais por sua empregadora até que as medidas de restrição social para conter o avanço da propagação do novo coronavírus sejam suspensas.

"Foi o melhor pra todo mundo: para mim, para minha patroa e principalmente para a mãe dela, que tem 85 anos", diz Rosa, ciente de que seu caso é uma exceção.

Uma colega nossa está gripada e mesmo assim o patrão dela liga todo santo dia pedindo pra ela voltar ao trabalho"

Margarida e Rosa estão entre os mais de 6 milhões de profissionais de trabalhadores domésticos brasileiros, uma atividade de alto risco de contágio pelo novo coronavírus. Pelo menos é o que apontam alguns exemplos de amplamente divulgados sobre a propagação do vírus no país.

Casos como o do funcionário de um empresário que fugiu da quarentena em São Paulo e acabou sendo contaminado quando trabalhava na mansão dele, em Trancoso, Porto Seguro; o da doméstica de Feira de Santana que contraiu o Covid-19 da empregadora recém-chegada da Itália; e o mais grave, da morte da funcionária de 63 anos, que contraiu o vírus de outra dona de casa do Leblon, na zona sul do Rio, recém chegada da Itália. Ela morreu no município onde morava, Miguel Pereira (RJ)

Na opinião do infectologista Roberto Badaró, 63, as ameaças contidas nesse comportamento de risco são graves e não se restringem a uma categoria profissional.

Se continuarem agindo assim, as pessoas estarão arriscando não somente os seus empregados, como a saúde das próprias famílias e até mesmo a vida em sociedade"

Na mesma linha, o Ministério Público do Trabalho defendeu na nota técnica 04/2020 a recomendação de "garantir que a pessoa que realiza trabalho doméstico seja dispensada do comparecimento ao local de trabalho, com remuneração assegurada, no período em que vigorarem as medidas de contenção da pandemia do coronavírus, excetuando-se apenas as hipóteses em que a prestação de seus serviços seja absolutamente indispensável, como no caso de pessoas cuidadoras de idosas e idosos que residam sozinhos, de pessoas que necessitem de acompanhamento permanente, bem como no caso de pessoas que prestem serviços de cuidado a pessoas dependentes de trabalhadoras e trabalhadores de atividades consideradas essenciais nesse período".

A despeito da recomendação do MPT, do alerta do infectologista e da campanha iniciada Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) iniciada logo após a morte da primeira empregada, a balança da escolha patronal ainda pende para o prato da conveniência de ter um ajudante em casa.

"Estamos em campanha pela liberação do trabalhador doméstico sem prejuízo do pagamento integral dos salários, mas por enquanto a adesão é de menos de 20%. Essa é a realidade", declarou a Secretária Geral da Fenatrad e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Estado da Bahia, Creuza Maria Oliveira, 62.

A presidente da do Movimento das Donas de Casa e Consumidores da Bahia (MDCCB), Selma Magnavita,e sua empregada Marilene Melo Ramos - Aurélio Nunes/UOL - Aurélio Nunes/UOL
A presidente do Movimento das Donas de Casa e Consumidores da Bahia, Selma Magnavita, e sua empregada Marilene Melo Ramos
Imagem: Aurélio Nunes/UOL

A própria presidente do Movimento das Donas de Casa e Consumidores da Bahia (MDCCB), Selma Magnavita, é um exemplo do dilema dos empregadores em torno da questão.

Como representante da categoria patronal, ela entende que a liberação das domésticas é a medida mais sensata, mas morando sozinha ao lado de uma pessoa ainda mais idosa, continua contando com o auxílio diário de Marilene Melo Ramos, funcionária da casa há 4 anos.

"A nossa orientação é para que os empregadores dispensem as empregadas e continuem pagando os salários. Foi o que eu ofereci à minha, mas ela continua vindo porque quer, pra continuar ajudando a gente", alega Selma, que mora com a irmã Silvia, de 88 anos.

Eu até sugeri que ela dormisse no trabalho, mas não tive resposta. Por enquanto o que ela tem feito é trocar os sapatos e a roupa e lavar as mãos até os cotovelos com sabão e com álcool gel antes de entrar em casa"

Para Badaró, as medidas profiláticas como estas e as adotadas pela patroa de Margarida (substituição do transporte público pelos motoristas de aplicativo) não possuem nenhuma eficácia no combate à propagação do coronavírus. "Somente com o isolamento social evitaremos a visitação de pessoas e, conseqüentemente, a circulação do vírus pelas ruas. Por isso que devemos restringir a circulação aos profissionais de atividades essenciais, o que não é o caso dos trabalhadores domésticos", pondera.

Medo

Diariamente a Fenatrad recebe denúncias que comprovam a disposição de alguns empregadores em fazer de tudo para não abrir mão de seus empregados: os patrões de Lúcia*, 26, por exemplo, trocaram a casa em Salvador pelo confinamento no litoral norte baiano e deixaram aos cuidados dela o filho adolescente, que está gripado; no Recife, um cliente da diarista Iraci*, 31, exigiu apresentação de atestado de saúde para permitir que ela continue limpando a casa dele; os donos da casa onde trabalha Márcia*, 47, em São Paulo, exigiram que ela passasse a pernoitar no local, onde ofereceram não uma cama em um quarto, mas um edredon colocado no chão da área de serviço.

Um medo maior que o de contrair covid-19, o de perder o emprego, explica porque situações como estas raramente chegam aos tribunais.

"Temos que acabar com essa história de que a quarentena no Brasil virou privilégio de classe", declara a presidente da entidade, a pernambucana Luiza Batista, 64.

Na ausência de sensibilidade do patronato para estabelecer acordos minimamente razoáveis, a única alternativa, diz ela, é levar as denúncias de abusos ao sindicato, e posteriormente à Justiça. "A nossa orientação é tentar resolver no diálogo, e, se não houver acordo, entrar com uma ação. Sim, a demissão nesse caso é certa, mas em certos casos é melhor perder o emprego", garante.

A vida sem a empregada

A produtora cultural Brenda Medeiros e seu marido, o servidor público Fred Wiering  - Aurélio Nunes/UOL - Aurélio Nunes/UOL
A produtora cultural Brenda Medeiros e seu marido, o servidor público Fred Wiering
Imagem: Aurélio Nunes/UOL

Apesar de minoritários, os casos de empregadores que decidiram liberar espontaneamente suas empregadas vem crescendo na mesma proporção em que vídeos de seus depoimentos em defesa da medida têm viralizado nas redes sociais.

Moradora de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, Edmilsa Nascimento Oliveira, 52, a Nena, trabalhou pela última vez na quarta-feira, 18, data em que as aulas das redes municipal de Salvador e estadual da Bahia foram suspensas. As férias que Nena só teria direito de gozar em dezembro foram antecipadas pelos patrões.

"Foi bom porque cada um pode se cuidar em sua casa, mas eu não vejo a hora de voltar", confessa Nena. O acordo foi de afastamento por 15 dias, prorrogável por mais 15, caso as medidas de restrição continuem em vigor.

"Antecipamos as férias dela a partir do momento em que entendemos que não seria mais seguro pra nenhum de nós continuar circulando e interagindo", explica a produtora cultural e jornalista Brenda Medeiros, 46, que atualmente divide as funções de Nena com o marido, o servidor público Fred Wiering, 51, e o filho do casal, Artur, 10, no apartamento onde vivem, na Barra.

"Agora eu lavo louça, coloco a comida dos gatos e penduro a roupa da máquina no varal", conta Artur, que também 'se vira nos 30' com o aspirador de pó.

"Estamos dando conta do recado, sei lá até quando", brinca Wiering, a quem coube na divisão de tarefas a responsabilidade de substituir Nena em seu ponto forte, a cozinha. A família é unânime em apontar a hora do almoço como o momento em que a ausência de Nena bate mais forte.

"A Nena é uma cozinheira de mão cheia, mas não posso criticar pra não desestimular. Ontem meu marido fez um almoço ótimo, que era alguma coisa entre um arroz de carreteiro e um risoto", diz Brenda, que além de se divertir, procura tirar lições do novo momento. "É nessas horas que a gente aprende a dar mais valor a esse trabalho".

*Nomes fictícios