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'Minha mãe quis que eu pedisse demissão', diz enfermeiro que teve covid-19

O técnico de enfermagem Ricardo de Oliveira, que trabalha em dois hospitais em SP e já se curou da covid-19 - Arquivo pessoal
O técnico de enfermagem Ricardo de Oliveira, que trabalha em dois hospitais em SP e já se curou da covid-19 Imagem: Arquivo pessoal

Gabriela Sá Pessoa

Do UOL, em São Paulo

13/05/2020 18h09

Resumo da notícia

  • Dados do Ministério da Saúde apontam: profissionais de enfermagem são os mais atingidos pela covid-19 entre os trabalhadores da saúde
  • Esse grupo representa 57,1% das hospitalizações de profissionais da saúde notificadas no país
  • Conselho Federal de Enfermagem diz que já recebeu "mais de 5 mil denúncias" sobre insuficiência ou má qualidade de EPIs
  • "Este é o momento mais crítico da história contemporânea da enfermagem", declara conselheira do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo

No primeiro plantão em que atendeu uma ala de pacientes com covid-19, no início de abril, o técnico de enfermagem Ricardo de Oliveira chorou. "Fiquei muito abalado. Era uma coisa nova, desconhecida. Minha mãe queria que eu pedisse demissão dos dois hospitais em que trabalho. Ela me disse: 'eu pago suas contas, filho, pelo amor de Deus'."

De profissional da saúde ele passou a ser paciente. E o medo não o abandonou quando foi internado, em 19 de abril, após receber o diagnóstico da doença que temia. Ao seu lado, Ricardo reconheceu outros seis colegas da enfermagem, que foram confirmados com o novo coronavírus ao mesmo tempo.

A experiência de Ricardo traduz o que dados do Ministério da Saúde apontam: profissionais de enfermagem são os mais atingidos pela covid-19 entre os trabalhadores da saúde.

Esse grupo representa 57,1% das hospitalizações de profissionais da saúde notificadas no país, segundo boletim epidemiológico divulgado ontem. A maioria é de técnicos de enfermagem (205 casos), seguidos por enfermeiros (192 casos) e auxiliares de enfermagem (108).

Os sete colegas diagnosticados ao mesmo tempo indicam também o tamanho da subnotificação. O Ministério da Saúde divulgou que nove profissionais de enfermagem hospitalizados com síndrome respiratória aguda grave morreram em decorrência da covid-19 (casos confirmados). O Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) contabilizou 108 mortos na categoria até ontem, incluindo os óbitos suspeitos pela doença.

"A maioria tem dois ou três empregos"

Para Walkírio Almeida, coordenador do comitê de crise da covid-19 do Cofen, a maior exposição desses profissionais a ambientes contaminados ajuda a explicar por que eles são os mais vulneráveis na área da saúde.

"Desde a coleta de exames à medicação, é o enfermeiro que ajuda a aspirar os pacientes, dá banho nos leitos. Desde as tarefas mais básicas até as mais complexas, são os enfermeiros, técnicos e auxiliares que têm mais contato. Somado a isso, eles têm maior tempo de exposição a contaminações. Para conseguir melhorar a renda, a maioria tem dois ou até três empregos", afirma o representante da categoria.

A jornada diária de Ricardo começa às 6h em um hospital e termina às 19h em outro — ambas são instituições particulares. "Sou acostumado a dormir quatro horas por dia, já são dez anos nessa vida", conta o técnico de enfermagem. Desde abril, ele precisou se adaptar a uma nova rotina de sono: improvisou um quarto na garagem de casa, com medo de contaminar a mulher e o filho.

"Tenho um cantinho, um porãozinho. É confortável. Minha esposa manda algo para comer por um cestinho. Todo dia ela gritava: 'Ó, a comida está pronta'", relata Ricardo. Mesmo curado da covid-19, o técnico de enfermagem não relaxou as medidas de segurança. "Está acabando com a nossa vida até hoje. Dentro de casa, é todo mundo de máscara. A gente tem medo, né?"

"5 mil denúncias"

Walkirio Almeida diz que o Cofen já recebeu "mais de 5 mil denúncias" sobre insuficiência ou má qualidade de EPIs (equipamentos de proteção individual). Além disso, afirma que os profissionais nem sempre são instruídos para manusear os equipamentos. "O momento de retirar os EPIs no plantão é o mais crítico, é um momento de grande risco. Se o profissional não estiver atento ou não tiver sido treinado com os protocolos, pode se contaminar", avalia.

É numa situação como essas que Ricardo relata ter vivido sua maior exposição ao novo coronavírus. Ele diz que não faltam EPIs, mas "na hora do café, de tirar a máscara, um contamina o outro".

"No contato com os pacientes, todo mundo usa todos os EPIs. Mas na hora de tomar café, e às vezes isso é em locais pequenos, um pode acabar contaminando o outro. Tem profissionais que não têm sintomas e contaminam os colegas, infelizmente", diz.

Problema nos locais de descanso

Uma enfermeira que atua no Ceará e realiza fiscalização em hospitais, pelo Conselho de Enfermagem, relatou ao UOL que um dos grandes problemas nas unidades de saúde é justamente os locais onde profissionais descansam ou fazem as refeições. Nesses ambientes, geralmente pequenos, os trabalhadores podem estar desprotegidos e, por vezes, não respeitam uma distância mínima.

Essa profissional, que prefere falar sob anonimato, diz que a precarização dos vínculos empregatícios é outro agravante. "Muitos profissionais não têm vínculo com as instituições, recebem só pelo plantão. Às vezes, mesmo com sintomas leves, por serem o arrimo da família, até escondem que estão com covid-19 e vão trabalhar."

A enfermeira, inclusive, revela que pode ter trabalhado infectada: "é o que mais me dói".

Antes de confirmar o diagnóstico de covid-19 em um exame de imagem, recebeu três resultados negativos de testes rápidos. Quando a tosse se agravou, com dificuldade respiratória, voltou ao médico, fez uma tomografia e colheu novos exames que, enfim, confirmaram que ela tinha o novo coronavírus.

Entre suspeitos e confirmados, o Conselho Federal de Enfermagem reporta 14,3 mil casos de covid-19 em todo o país, a maioria em São Paulo e no Rio de Janeiro.

"Este é o momento mais crítico da história contemporânea da enfermagem", diz Ivany Baptista, coordenadora do curso de enfermagem da Universidade do Vale do Paraíba e conselheira do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo. Ela também foi diagnosticada com covid-19 e precisou ser hospitalizada, em março, para suplementar oxigênio.

"A gente também se abala emocionalmente na linha de frente. Ficamos cansados. Não podemos errar. Sentimos medo e, muitas vezes, sofremos preconceitos. Temos denúncias de pessoas que sofrem no ônibus só porque estão de branco — é uma forma errada de se pensar. O profissional está preparado para não se contaminar, ele tem o maior medo de se contaminar e contaminar sua própria família. Não é justo sofrer discriminação no percurso até o trabalho, numa padaria", lamenta Ivany.