Topo

Covid reduz atendimento a doentes crônicos, um problema para o pós-pandemia

Desde a pandemia Marina tem dificuldade para marcar consultas e exames  - Arquivo Pessoal
Desde a pandemia Marina tem dificuldade para marcar consultas e exames Imagem: Arquivo Pessoal

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

07/06/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Consultas, exames e cirurgias foram reduzidas durante a pandemia
  • Doentes renais, cardíacos, com câncer e diabetes são atendidos apenas em emergência
  • Além de perderem leitos para a covid-19, muitos pacientes têm medo ir ao hospital
  • Fila de espera deve aumentar, assim como o número de mortos por doenças crônicas após a crise da covid-19
  • Sistema de saúde precisará de mais dinheiro para atender a demanda reprimida, diz Conselho Nacional de Saúde

A educadora física Marina Amaral, 25, só precisava retirar o dente do siso em dezembro do ano passado, quando uma complicação inesperada terminou em uma infecção generalizada que a colocou entre a vida e a morte. Quando ela finalmente deixou o hospital após 12 dias internada, a pandemia de covid-19 já era realidade, e Marina não conseguiu marcar todos os exames e consultas de que precisava para acompanhar a evolução da doença.

Ela sobreviveu para contar sua história ao UOL, mas muitos podem não ter a mesma sorte. Os esforços para conter a pandemia do coronavírus acabaram afetando outras áreas médicas, como a cardíaca, hepática, digestiva e oncológica.

As restrições para receber pacientes em hospitais, a transferência de leitos para o tratamento da covid-19 e o medo de pacientes de procurar ajuda médica derrubaram o número de consultas, exames e cirurgias. Isso deve resultar em aumento de óbitos e acúmulo de doentes que só receberão cuidados quando a pandemia acabar.

Teremos uma avalanche de problemas de saúde relacionados ao agravamento de doenças que deveriam ter sido diagnosticadas, monitoradas e tratadas oportunamente. Poderemos enfrentar outra enxurrada de óbitos que poderiam ter sido evitados com diagnóstico precoce e manutenção dos atendimentos.
Priscilla Franklim Martins, da Abramed (Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica)

"50 mil diagnósticos de câncer a menos por mês"

Um caso emblemático é o cancelamento de 70% das cirurgias de câncer no Brasil, entre 11 de março e 11 de maio, segundo levantamento da SBCO (Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica) — uma redução de 116 mil procedimentos nesse período.

"Também são 50 mil diagnósticos de câncer a menos por mês desde o início da pandemia", afirma o patologista Clóvis Klock, presidente do Conselho Consultivo da SBP (Sociedade Brasileira de Patologia).

Enquanto isso, os laboratórios de diagnóstico registraram uma queda de 70% nos atendimentos, desde que o coronavírus chegou ao Brasil, segundo a Abramed.

"Os diagnósticos com hora marcada caíram vertiginosamente, enquanto laboratórios e clínicas de exames por imagem tiveram redução expressiva", diz a diretora-executiva da entidade, Priscilla Franklim Martins. "A pandemia estremeceu o sistema de saúde e fez os cidadãos se preocuparem apenas em evitar a infecção pelo novo coronavírus."

Principal causa de óbitos no Brasil (média de 390 mil por ano), as doenças cardíacas tiveram suas cirurgias canceladas em 70% na primeira semana de abril, segundo a SBCI (Sociedade Brasileira de Cardiologia Intervencionista). As angioplastias primárias — procedimento que reduz de 50% para 5% a mortalidade por infarto — caíram na mesma proporção em São Paulo, segundo a Sociedade Paulista de Cardiologia.

"Além de causar mortes, poderemos ter aumento futuro das taxas de insuficiência cardíaca", alerta Silvio Henrique Barberato, diretor da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia).

Em relação a doenças renais, que provocam 35 mil mortes por ano, as cirurgias caíram 70% e os exames encolheram entre 50% e 80%, dependendo da região do país, informa a SBN (Sociedade Brasileira de Nefrologia).

"Os procedimentos agendados foram remarcados e só os urgentes são realizados, como a diálise", diz a ex-presidente da SBN e atual diretora do Departamento de Ensino e Titulação, Carmen Tzanno, que estima em 20% a mortalidade dos pacientes com problemas renais crônicos.

Muitos serviços cancelaram transplantes por redução de doadores, medo dos receptores, segurança epidemiológica e sanitária. Esse fenômeno é mundial. No Brasil, a redução foi de cerca de 34% nos transplantes de órgãos
Carmen Tzanno, efrologista

No hospital Sírio Libanês houve um "represamento dos serviços de endoscopia", exame fundamental para o diagnóstico de doenças digestivas, que deixam cerca de 70 mil mortos todos os anos no Brasil. "Se realizávamos 180 exames por dia antes do novo coronavírus, hoje conseguimos um décimo disso (18)", afirma o médico do hospital e da Sobed (Sociedade Brasileira De Endoscopia Digestiva), Marcelo Averbach.

Vista aérea do Hospital das Clínicas de São Paulo - Divulgação - Divulgação
Hospital das Clínicas de SP cancelou cirurgias eletivas
Imagem: Divulgação
No Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo, as cirurgias de emergência foram mantidas, mas "todas as eletivas [agendadas] foram canceladas", diz ao UOL a pneumologista do HC Juliana Carvalho Ferreira, da SBPT (Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia).

Ela explica que o objetivo dos cancelamentos foi "proteger pacientes, familiares e profissionais de saúde do risco de contágio e também para manter vagas de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para a covid-19".

Teleconsultas serão comuns

Para depois da pandemia, Tzanno, da SBN, espera "uma retomada gradual de consultas, exames e procedimentos".

"Manteremos atendimento à distância de forma mais intensa do que antes. Creio que as teleconsultas vieram pra ficar."

É o que ajudou o servidor público Bruno Montenegro, 33, com diabetes tipo 1. Parte do grupo de risco para a covid-19, ele mesmo cancelou uma consulta em 23 de março, poucos dias depois do isolamento decretado em Brasília, onde mora. "Mas durante esses 77 dias que não saí de casa, tive uma inflamação nas costas e procurei ajuda médica", conta.

Bruno Montenegro ao lado de canetas de insulina, agulhas e sensor para monitoramento de glicose - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Bruno Montenegro ao lado de canetas de insulina, agulhas e sensor para monitoramento de glicose
Imagem: Arquivo pessoal
"Perguntei via WhatsApp se deveria procurar a emergência de um hospital, mas minha médica desaconselhou por ser uma área de risco", conta. "Ela propôs um teleatendimento. No primeiro dia, pediu imagens e vídeos da inflamação. Então ela conversou comigo, diagnosticou e prescreveu. Depois pedi a um Uber que buscasse a receita no prédio dela. Ela continua me acompanhando por imagens que envio pelo celular."

Presidente do departamento de diabetes da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia), Hermelinda Pedrosa é coautora de um estudo global prestes a ser publicado na IDF (Internacional Diabetes Federation). A pesquisa indica que 38,4% das pessoas com diabetes tiveram consulta adiada durante a pandemia.

Pedrosa lamenta o cancelamento no Brasil "de todos os atendimento em grupo" — muito comum entre esses pacientes — "porque uma reunião com mais de cinco pessoas já é considerada aglomeração".

SUS precisará de mais dinheiro em 2021

O CNS (Conselho Nacional de Saúde) acredita que o SUS (Sistema Único de Saúde) não terá dinheiro suficiente em 2021 para tratar os casos que se acumularam em razão da pandemia.

Para se ter uma ideia, dos R$ 34,5 bilhões que a União destinou ao Ministério da Saúde para impedir o avanço da covid-19, R$ 5 bilhões foram retirados da atenção básica e assistência hospitalar.

Coordenador da Comissão de Orçamento e Finanças do CNS, André Luiz Oliveira defende que esse valor de R$ 34,5 bilhões, incorporado ao ministério para o combate ao coronavírus, seja adicionado ao orçamento da saúde no ano que vem.

Quando encerrar a pandemia, virá essa demanda reprimida. As enfermidades crônicas e demandas eletivas vão chegar fortemente. Por isso a gente precisa incorporar esses créditos no ano que vem
André Luiz Oliveira, da Comissão de Orçamento e Finanças do CNS

Para Juliana, do Hospital das Clínicas, só o dinheiro não resolverá o problema da fila. "Será preciso mapear quantas consultas e cirurgias foram adiadas, como estão as filas. Envolverá parcerias entre secretarias de saúde, Ministério da Saúde e hospitais para atender essas pessoas depois."