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Pacaembu também foi barbearia e cinema enquanto sediou hospital de campanha

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

30/06/2020 04h00

Resumo da notícia

  • O Hospital de campanha do Pacaembu fechou ontem depois de atender 1,5 mil pessoas e registrar três mortes
  • Pessoas que trabalharam na unidade de saúde relatam as dificuldades e como fizeram para tornar o local mais agradável com o tempo
  • Os pacientes tiveram missa, filmes e corte de cabelo; os profissionais aprenderam enquanto enfrentaram o maior desafio de suas carreiras

Aplausos e gritos eufóricos anunciaram que Nilza Dantas Batista, 61 anos, se aproximava do sino colocado na saída do hospital de campanha do Pacaembu, em São Paulo. Cada badalada deste sino representa uma vitória coletiva.

Dona Nilza comemora a vida, estava internada desde 22 de maio. Os profissionais de saúde celebram porque estão diante da maior calamidade sanitária de suas carreiras. Mas as altas de Nilza e Nelio di Moura Moysés, 57 anos, tiveram um significado maior.

Tratava-se da liberação dos dois últimos pacientes, já que o hospital foi fechado ontem. A tenda, os leitos e os respiradores no estádio que recebeu seis jogos da Copa de 1950 é uma das imagens-símbolo da pandemia de covid-19 em São Paulo. Mas o que as pessoas não conseguem ver é o que aconteceu embaixo da lona.

O abatimento de médicos e enfermeiros com a perda de um paciente. Ninguém fica sabendo da mobilização para evitar que esta pessoa, que vivia na rua, fosse enterrada como indigente. A calamidade que aflora o pior do ser humano em muitos momentos, despertou os melhores sentimentos no Pacaembu.

Teve voluntário fazendo a barba de idosos que não queriam parecer relaxados nas ligações de vídeo com a família. Uma iniciativa individual gerou um cinema e aliviou as tardes de pessoas que não sabiam se sairiam do hospital andando ou em um caixão.

O UOL ouviu relatos de três funcionárias que contaram como foram os dias desde 6 de abril, data de inauguração do hospital de campanha do Pacaembu.

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Últimos pacientes deixam o hospital de campanha do Pacaembu
Imagem: Divulgação

Tesoura e lâmina de barbear

Funcionários de uma empresa terceirizada faziam manutenção no hospital de campanha quando seu João foi conversar com a mulher por vídeo chamada. O paciente começou a chorar. Falava com a companheira de uma vida descabelado e com a barba por fazer havia dias. Ele se sentia um indigente.

Seu João explicou a Renata Rafaella Tadeucci, coordenadora administrativa do hospital, que fazia a barba todos os dias. Um dos empregados da empresa terceirizada escutou a conversa. Disse que fizera um curso de barbearia e se ofereceu para resolver a situação.

Mas hospital é um ambiente controlado. A equipe médica precisou criar uma sala adequada. E não seria justo beneficiar somente seu João. O hospital de campanha do Pacaembu ganhou uma barbearia. O serviço não era diário, mas houve sessões de embelezamento dos pacientes.

Chamada de vídeo

A barbearia do Pacaembu só existiu porque antes alguém doou tablets para o hospital de campanha. A coordenadora do projeto do hospital, Rose Mara Miranda, diz que a preocupação na abertura era garantir tratamento aos pacientes. Vencida esta fase, os profissionais de saúde criaram formas de transformar a estadia em algo menos desgastante.

Celulares eram proibidos com medo de vazamentos de imagens em que aparecessem outros pacientes. Televisão não existia porque não faz sentido pessoas internadas por covid-19 verem telejornais mostrando a pandemia matando gente. Mas os tablets permitiram que famílias se vissem.

"A primeira vídeo-chamada foi uma surpresa. A família manda a pessoa para um lugar fechado, que não tem visita. Poder ver o familiar foi um sucesso. Era grande a satisfação que eles tinham em ver o paciente".

A equipe passava das 14 horas até 22 horas fazendo chamadas de vídeo. As famílias e pacientes recebiam mais que boletins médicos.

Vista aérea - Marcello Zambrana/AGIF - Marcello Zambrana/AGIF
O hospital de campanha do Pacaembu foi aberto em 6 de abril e atendeu 1,5 mil pessoas
Imagem: Marcello Zambrana/AGIF

Sessão da tarde

A noção de valor é individual, cada pessoa sabe o que importa para si. Certo dia, uma senhora manifestou desejo de assistir uma missa. Comovida, uma funcionária do hospital de campanha levou um computador e um projetor de casa, colocou bancos longe um do outro e fez a vontade da mulher.

Mas acontece que alguns valores são coletivos. Um senhor percebeu que havia uma missa em andamento e quis se juntar a ela. Mesmo que não fosse sua religião. "Tinha pastor internado que disse que ia ver porque Deus é um só", relata a coordenadora do projeto do hospital, Rose Mara Miranda.

O projetor não voltou para a casa da funcionária. Os trabalhadores do hospital tiveram a ideia de montar um cinema. Prepararam uma ala que garantia distanciamento social e todas as tardes havia filme. A programação era água com açúcar.

"Passava filmes como 'Vovó...zona', 'Minha mãe é uma peça'. Nada de desgraça", conta Rose.

A abertura

A metamorfose do estádio em hospital se deu após uma reunião de autoridades de saúde em 19 de março, quando a quantidade de mortes causadas pelo novo coronavírus cabia nos dedos. No dia seguinte ao encontro, um grupo de profissionais de saúde foi comunicado que tinha 17 dias para tirar um hospital do chão.

A coordenadora do projeto, Rose Mara Miranda, lembra turnos de trabalho de 16 horas por dia. Mais que contratar 522 pessoas, escolher a disposição de camas e equipamentos, providenciar refeições, esterilização e um mundo de coisas que faz um hospital rodar, havia dúvidas se haveria material.

Era uma época em que faltavam até máscaras. Rose diz que contou com a ajuda de colegas do hospital Albert Einstein do Morumbi. Eles emprestaram respiradores, macas, aventais, máscaras e até estetoscópio. Em 6 de abril, os primeiros pacientes chegaram.

Paciente chega hospital Pacaembu - Ettore Chiereguini/Futura Press/Estadão Conteúdo - Ettore Chiereguini/Futura Press/Estadão Conteúdo
Paciente chega ao hospital de campanha do Pacaembu
Imagem: Ettore Chiereguini/Futura Press/Estadão Conteúdo

A primeira morte

Jimena Eva Barriviera de Torre foi encarregada da coordenação médica do hospital. Assumiu a função assombrada com a possibilidade de haver filas de ambulância de pacientes esperando para dar entrada. Dedicou toda sua força de trabalho para evitar isto.

O hospital foi projetado para casos de baixa e média complexidade, mas os funcionários logo perceberam que nem sempre os pacientes tinham sintomas leves. E na primeira semana de trabalho ocorreu a primeira morte. Ela lembra que o episódio balançou a equipe.

Tratava-se de uma pessoa em situação de rua de 36 anos, portador de Doença de Chagas e com o coração com baixa capacidade de bombear sangue. Ele sofreu uma parada cardíaca e a tentativa de reanimação foi inútil. Morreu em 11 de abril. O esforço para salvar o homem foi tão grande que a perda abalou médicos e enfermeiros.

A coordenação médica conversou com a equipe, mas o alento veio do serviço social. Ninguém queria ver o homem enterrado como indigente. As assistentes sociais foram a campo procurar algum familiar espalhado pelo mundo. Contaram com a ajuda de um delegado e chegaram à família.

Os parentes não precisaram ficar chorando sobre um BO de desaparecimento. O paciente teve pessoas amadas rezando por ele ao encontrar sua última morada.

Heranças do hospital de campanha

Os dias de pandemia foram dias de exceção. Trabalhar sob tanta pressão, risco de infecção e com o desconhecido é pedagógico. Jimena decidiu morar em um hotel no começo por medo de contagiar a família. No segundo momento, voltou aos finais de semana.

Ao chegar, aprendeu que não é imprescindível em casa. Também sentiu o orgulho que todos exalavam pelo trabalho que desempenhou. Ainda percebeu que existem problemas muito maiores.

Jimena permaneceu no grupo de mães da escola. Viu que as queixam por atrapalhar o ano escolar, e não poder se preparar para o vestibular são problemas irrisórios perto daquilo que não tem solução, a morte.

Rose tem certeza de que as pessoas que trabalharam no hospital de campanha do Pacaembu são mais fortes hoje que em abril. Ela disse que cumprir o dever muitas vezes exigiu ir além do que achava que era possível. Desta maneira, viu que na hora do aperto o ser humano é capaz de entregar mais do que julga ser capaz.

Renata voltou para casa neste período, mas desenhou traços no chão até o canto onde tirava a roupa. A filha não podia e ainda não pode passar por este lugar da casa. Foi uma decisão providencial. Ela contraiu covid-19. Falaram que era consequência de não querer ficar com a família, de ter escolhido o trabalho.

Não entenderam nada. Renata revela que 9% dos trabalhadores do hospital de campanha do Pacaembu tiveram covid-19. Assim como ela, todos aceitaram este risco porque o propósito do trabalho desempenhado era maior.