Recuperados? Pacientes narram pós-covid: "2 meses para reaprender a andar"
"A gente achava que, saindo do hospital, ia ficar tudo bem, mas não é bem assim. Fiquei mais quase três meses tratando as escaras [feridas por ficar na mesma posição]. Perdi toda minha massa muscular e tive que reaprender a andar."
O empresário Maurício Plates, 56, passou 33 dias internado por causa da covid-19, mas a alta não terminou com as dores nem com a fraqueza que sentiu.
Como ele, milhares de pessoas pelo país entraram para as estatísticas de "recuperados" do governo federal, sem que essa saída do hospital signifique uma volta à vida normal.
Ontem, na OMS (Organização Mundial da Saúde), o ministro interino Eduardo Pazuello comemorou números que apontam o Brasil como "líder" em recuperados, sem citar o alto índice de mortes. Questionada pelo UOL, a pasta da Saúde não explica como são definidos esses recuperados nem como estima os efeitos colaterais da doença.
"O problema da covid, tanto no estágio inicial quanto no pós, é a heterogeneidade de apresentações. Há consequências tanto diretas, como a inflamação que culmina em fibrose pulmonar, como da própria internação na UTI [Unidade de Tratamento Intensivo]", afirma Frederico Fernandes, presidente da SPP (Sociedade Paulista de Pneumologia).
Esta doença está longe de ser resolvida depois dos 10 a 14 dias de incubação ou depois da alta hospitalar. Muitos pacientes têm, sim, sequelas que podem levar à necessidade de tratamento crônico."
Frederico Fernandes, presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia
Ao UOL, sobreviventes da doença contaram sobre muitas dificuldades que enfrentaram após a alta no hospital, tanto em decorrência do vírus quanto dos dias acamados ou intubados.
"Fiquei sem conseguir mexer o braço direito e as pernas"
Jorge Gushikein, 37, deu entrada no hospital no dia 6 de abril. Na época, a recomendação era só procurar ajuda médica se sentisse falta de ar. "Mediram a saturação e estava baixa, então já me encaminharam diretamente para a UTI. À noite, eu tive muita falta de ar e me intubaram. Aí eu já não me lembro de nada", diz.
O contador ficou 20 dias em coma induzido. "Acordei muito confuso. Eu não sabia se estava sonhando, se estava acordado... Para mim só tinha se passado um dia."
Nesse período, ele teve um AVC (acidente vascular cerebral) isquêmico, o rim parou de funcionar e o pulmão ficou comprometido entre 60% e 70%.
Quando comecei a retomar a consciência, tive a sensação de solidão. Você está ali amarrado, sozinho, olhando para o teto."
Jorge Gushiken, contador
"Tinha problemas para comer. Durante muito tempo, me alimentei por sonda e soro, depois fui para a dieta pastosa."
Ele saiu do hospital depois de 43 dias, dos quais 37 foram na UTI. "Na minha função motora, só tinha resposta no meu braço esquerdo. Meu braço direito, nada; meu pé esquerdo, equino [com dificuldade de movimentação] e fraqueza na outra perna. Ao todo, perdi 15 kg. Eu não tinha mais músculo, estava muito debilitado."
Além disso, o longo tempo de internação fez com que ele desenvolvesse uma lesão na pele de 12 cm nas costas. "Descobri também que a covid afetou meu olho. Sabe quando você olha muito para a luz? Até hoje minha visão não está perfeita. Consigo ler, mas a qualidade caiu", conta.
Em casa, passou a fazer fisioterapia e a se cuidar. "No início, eu não conseguia comer sozinho por causa da fraqueza nos braços e por ainda não ter coordenação motora. Também tive muita queda de cabelo, então decidi raspar. Até hoje faço tratamento da úlcera [escara]. Ela foi de 12 cm para 1 cm, mas ainda está aberta", diz. O pé esquerdo também não se recuperou totalmente e está fraco.
"Não é uma batalha fácil. No começo eu chorava muito, ficava muito para baixo. Hoje, oriento a todos: nunca subestime o vírus. Você vai arriscar sua vida? Tenho 37 anos, sou jovem ainda, não é uma doença que afeta só idoso. Eu era saudável e fiquei muito mal."
"Minha avó mudou, é uma doença devastadora"
A família de Rafael Gama, 28, começou a sentir sintomas em junho. "Quem pegou primeiro a covid foram meus avós por parte de pai. Meu avô e minha tia-avó ficaram mais graves. Meu pai ficou cuidando dele e pegou", conta. Os dois saíram do hospital, mas o pai, exposto, acabou internado e intubado.
Mesmo saudável, passou uma semana sob sedação. Aí foi liberado. "A gente viu o que a covid pode fazer, o quão forte ela pode atingir. Fora os problemas respiratórios, ele teve problemas cardiovasculares, redução do ritmo dos batimentos, dormência nas pernas. Você vê que ela atinge uma área grande do corpo."
Hoje, ele se recupera em casa, mas tem um quadro bom. Já a avó materna de Rafael causou mais preocupações, apesar de nem ter chegado a ser internada.
Aos 75 anos, Isaura era saudável. Depois da covid, passou a apresentar problemas neurológicos. "Minha avó começou a desenvolver uma doença ainda não diagnosticada que evoluiu exponencialmente. Tem também uma síndrome do pânico muito grave."
Segundo ele, a avó mudou. "No começo do ano, ela nos ajudava no bar, conversava, e agora não quer comer, tomar banho ou remédio. Está uma confusão grande. O resumo é que a gente viu que a doença pode causar tanto problemas físicos quanto mentais."
"Saí do hospital só osso"
Maurício Plates foi ao hospital em abril quando, no café da manhã, seu pão pareceu "uma bucha de lavar louça". Era um sintoma da covid. Ele foi internado e encaminhado à UTI. Conta que fez questão de tomar cloroquina, mas o remédio não impediu que a oxigenação caísse. Quando chegou a 86%, ele foi intubado.
"Tive que ficar amarrado, tive muita alucinação. No 16º dia, eu acordei. A médica percebeu que eu estava bem, só que logo em seguida eu apaguei. Fiquei dez dias louco, totalmente inconsciente, talvez pela sedação forte."
Mais calmo, o empresário foi liberado, mas, depois de 33 dias deitado, desenvolveu úlceras e teve de começar uma nova parte do tratamento.
Fiquei mais dois meses e 20 dias tratando as escaras, perdi toda a massa muscular, 25 kg ao todo. Eu tive que reaprender a andar, uma situação horrível."
Maurício Plates, empresário
Com a fisioterapia e o tratamento em casa, foi melhorando. "Fiquei no quarto. Minha mulher tinha de me levar ao banheiro, tomava banho sentado. Até sentar na privada, não era fácil porque a escara era na região sacral", diz.
Precisava de ajuda para tudo. "Eu não conseguia fazer a barba, tomar banho sozinho. Sentia muita falta de ar, porque meu pulmão ficou totalmente comprometido. E olha que eu não fumo, sou saudável, ia na academia com a minha esposa."
Hoje, voltou a dirigir sua empresa, com algumas limitações. "Ando com dificuldade, sem forçar. Sinto uma leve dormência em cima dos pés, e o dedão direito também não sinto. As escaras estão praticamente fechadas. Graças a Deus é só isso. Quando cheguei do hospital, via só o osso, não via músculo", conta ele, que ainda faz uma recomendação. "Fique em casa quem tenha condições. Eu sou um cara guerreiro, trabalhador. Sei que é difícil porque as coisas vão acumulando. Mas processo é lento."
"Passou duas semanas para eu andar até a parede"
O paulistano Fabio Franco, 60, foi internado em meados de maio, depois de sentir incômodo na garganta e febre. Com saturação em 86%, foi encaminhado à UTI e acabou 17 dias intubado e 31 internado. "Minha pressão subia e descia. A covid provoca isso, né? Eu não senti nada, estava sedado, mas você parece que é uma cobaia, porque não existe a cura. Eles vão dando remédio para tentar controlar o que aparece."
"Quando conseguiram tirar [a sedação], parece que você não é você. Você fala absurdos, porque a quantidade de remédio é meio grande. Fui virado várias vezes de posição, mas peguei uma bactéria hospitalar."
As pessoas pensam que, quando sair [do hospital], vai passar, mas não é assim."
Fabio Franco, empresário
Após ser desintubado, Fabio só começou a comer sem sonda depois de sete dias. Perdeu 25 kg e quase toda a força muscular. "Você perde só massa magra. Passa a comer, mas, como não tem movimento na mão, precisa de ajuda. Na fraqueza, não conseguia nem apertar a campainha, não conseguia digitar o celular."
Para voltar a andar, o processo foi mais demorado: "Passou duas semanas para eu conseguir ir até a parede [do quarto]".
Há 60 dias em casa, ele leva uma vida quase normal. "O que me incomoda um pouco mais é o ombro direito, a articulação, mas agora já dirijo. Tenho um pouco de medo e, se sinto uma febre, já fico fragilizado com a ideia [de o vírus voltar]. Não é nada agradável. Você fica por conta da sorte, nem sei como dizer. Quero falar para os outros: o vírus pega e pega mesmo, te deixa fora de tudo."
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