Médicos prometem em outdoor "cura" da covid com falso tratamento precoce
"Covid tem cura" —é o que afirma em letras maiúsculas um dos 30 outdoors que se espalharam por Feira de Santana, na Bahia, em nome de uma associação de médicos defensores do tratamento precoce contra a covid-19, o MPV (Médicos Pela Vida), que na peça publicitária aconselha: "Procure um médico e peça tratamento precoce".
Incentivado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o suposto tratamento nunca teve sua eficácia comprovada por nenhum órgão internacional respeitado. A OMS (Organização Mundial da Saúde) e o FDA, agência norte-americana que regula medicamentos, desestimulam o "tratamento precoce" e até Bolsonaro ameaça recuar sobre o tema.
A foto do outdoor ganhou as redes sociais depois de fotografada pelo advogado Theo Almeida, 55, que, ao voltar de uma trilha de bicicleta, tomou um susto ao se deparar com a publicidade em dois pontos da Avenida Transnordestina.
"Fiquei surpreso e parei a bike imediatamente pra tirar a foto", afirmou ao UOL. Almeida decidiu ligar para a empresa responsável pelos outdoors e perguntar quem bancou a peça.
"Fui informado que foi um médico da cidade que pagou para colocar 15 placas", diz. O UOL ligou para a empresa, mas ninguém atendeu o telefone.
"Encher o Brasil de outdoor"
O médico a que ele se refere é o cirurgião Eduardo Leite, candidato a vereador de Feira de Santana em 2020, pelo Patriota (ele desistiu da campanha), e um dos coordenadores dos Médicos Pela Vida. Quando conversou por telefone com o UOL, ele estava em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, celebrando a assinatura de uma lei municipal que autoriza o tratamento sem comprovação.
"Histórico. Fui tratado como celebridade aqui. Fiz até discurso", disse o médico, que nega ter sido o responsável pelo outdoor com a falsa promessa. Ele afirma que a publicidade foi bancada por um grupo de empresários em Feira de Santana que pretende "encher o Brasil de outdoor".
A mensagem, admite, foi criação sua: a promessa de curar a covid foi estampada por ele em cartões e distribuídos pela cidade.
"Um empresário me ligou perguntando se eu autorizava fazer outdoor com o cartão. Eu disse que não tinha problema nenhum", conta. "Então ele fez um grupo de WhatsApp chamado Unidos pelo Tratamento Precoce e me colocou lá com vários empresários. Uns 30% deles já foram tratados por mim."
Segundo o médico, os empresários "fizeram uma cotação entre si com duas empresas de outdoor". "É um grupo de voluntários, coisa deles. Fizeram 30 outdoors em Feira de Santana."
Não foi ideia dos Médicos Pela Vida. Como não podiam usar o nosso nome sem autorização, eu disse que tudo bem [usar]. Me perguntaram quanto era a autorização, e eu disse que era de graça
Eduardo Leite, médico
Foi por causa desse outdoor que um empresário em Curitiba também procurou o médico para fazer o mesmo na capital paranaense, mas o Ministério Público Federal "mandou tirar na raça", segundo Leite.
"Proibiram o outdoor, mas fizeram adesivos para usar no carro", conta o médico. "Outras cidades me procuram porque pensam que sou eu o responsável. Um vereador de Uberlândia também está tentando."
Bolsonaro "esculhambou" tratamento precoce
Com 72 anos e 42 de profissão, o médico fala em "epidemia de estupidez" a respeito do tratamento precoce, rechaçado pela AMB (Associação Médica Brasileira) por falta de "estudos seguros", mas tolerada pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), que recomenda autonomia médica.
De acordo com Leite, até o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o principal defensor do falso tratamento, atrapalhou a percepção sobre o tema. "O presidente que esculhambou o tratamento precoce. Fica mostrando cloroquina pra ema?", comentou.
Questionado se ele e a associação temem ser processados por prometer a "cura da covid" por meio de tratamento sem comprovação científica, Leite citou a opinião de "cientistas respeitados, como Nise Yamaguchi", que chegou a ser cotada para assumir o Ministério da Saúde no ano passado.
Podem me prender, não tem problema, mas a minha consciência jamais vão prender. Poderei ser cassado como médico, não tem problema.
Eduardo Leite, médico
Procurado, o Ministério Público Estadual informou que recebeu representação sobre os outdoors. "O promotor de Justiça Audo Rodrigues instaurou procedimento para apurar o caso", informa em nota.
Em novembro, um estudo britânico atestou que o uso de hidroxicloroquina e azitromicina —dois dos remédios recomendados em 2020 pelo Ministério da Saúde— não teve benefício em nenhum dos 4.500 pacientes, o mesmo relatado em outro estudo com 500 pacientes brasileiros internados em estágio moderado da doença.
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