Bolsonaro chamou de idiotas: Isolados resistem e veem ato como 'político'
Em conversa com apoiadores ontem (17), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) chamou de "idiotas" as pessoas "que até hoje estão em casa", desprezando o isolamento social, que é a principal forma de prevenção contra a covid-19. O UOL conversou com três brasileiros que estão em isolamento há 14 meses, ou desde o início da pandemia, em março de 2020.
Renato Bock, 45, morador de Brasília, brinca que é "um desses idiotas". "Ficar em casa hoje é um ato político de desobediência civil", afirma.
No dia 11 de março de 2020, Renato levou a filha de 12 anos ao médico para tirar uma tala do pé, que ela havia quebrado. Em frente ao consultório do ortopedista, no Hospital Regional da Asa Norte, acabava de ser confirmado o primeiro caso de covid-19 na capital federal.
Foi a última vez que Renato, que é asmático grave, a filha, também portadora de asma, o filho e a esposa, saíram de casa —salvo uma saída emergencial, quando o filho quebrou um dente brincando dentro de casa.
"Desenvolvemos um método de vida sem conexão nenhuma com a rua", conta Renato. Há três meses, a família empacotou o que cabia no carro e se mudou para a chácara dos pais dele, no interior de São Paulo.
Renato, que é gestor de projetos de uma ONG, e a esposa, de 41 anos, funcionária pública federal, estão trabalhando remotamente desde o início da pandemia. As duas crianças nunca foram presencialmente à escola nesse período, fazem todas as aulas online e agora estão se adaptando à vida na chácara. Aprenderam a mexer na terra, cuidar das galinhas e colher os ovos.
Não é fácil para eles, minha filha é pré-adolescente, está numa fase em que os amigos são muito importantes. Depois de 11 meses trancados no apartamento de 90 metros quadrados, decidimos vir para a chácara justamente para dar mais espaço a eles. Tem grama, tem cachorro, tem avô, tem avó.
Renato Bock, que trabalha numa ONG e tem dois filhos
Ele, a esposa e os pais —ambos com 68 anos, já vacinados— se revezam na limpeza da casa, cuidados com as crianças e cozinha. A comida é comprada 100% online e preparada em casa, pela família. Pedir pizza ou qualquer refeição pronta por delivery é uma memória que ficou no passado —uma das coisas que Renato afirma sentir mais falta, além de encontrar com os amigos.
"Alguns amigos, quando souberam que eu estava em São Paulo, falaram: 'Ah, você está na chácara dos seus pais? Vou aí fazer uma visita!'. Eu falei: 'Espero que você continue meu amigo depois disso e que a gente possa se abraçar muito ainda. Mas não estamos recebendo visitas'", conta.
A viagem de carro de Brasília até o interior paulista foi uma odisseia. A família se programou durante duas semanas para fazer o trajeto de 1.200 km no tempo mais curto possível, evitando paradas na estrada e fazendo maior aproveitamento do combustível. Foi necessário parar apenas uma vez para abastecer. Ninguém desceu do carro.
Nada de parar em pedágio. A gente costumava fazer essa viagem em 14 horas. Parávamos para almoçar, comprar queijo em Minas, abastecer o carro mais de uma vez. Desta vez fizemos tudo em 11 horas, com apenas uma parada para fazer xixi e todo mundo no mato. Banheiro público, nem pensar.
Renato Bock, que trabalha numa ONG e tem dois filhos
Contar saídas para manter sanidade
Moradora do Recife, Mayra Melo, 42, também portadora de asma, saiu de casa exatas 30 vezes desde março de 2020, para comprar itens de farmácia para a avó, que é acamada. "Compramos tudo via aplicativo, mas às vezes falta alguma coisa. Sim, eu estou contando todas as saídas. Acho que é uma forma de manter um pouco a sanidade. Hoje faz 427 dias que estamos em isolamento", relata.
Ela mora com a mãe, de 66 anos, já vacinada, e a avó, de 89, que tomou apenas a primeira dose, pois depende do calendário de vacinação em domicílio.
Sofrendo de um mieloma, tipo de câncer que afeta coração e pulmões, e portadora de Alzheimer, a avó "ligou o foda-se", brinca Mayra. "Ela não está preocupada se vai morrer, ela sabe que pode morrer a qualquer minuto, mas a gente fica preocupada. Uma coisa é morrer dormindo, em casa, outra é passar por um processo de internação, intubação", diz.
Durante o período, a família recebeu apenas as duas cuidadoras, que se revezam a cada 48 horas, e uma diarista que vai três vezes por semana. As compras são feitas todas online e Mayra, que é taróloga, passou a trabalhar remotamente. "A gente teve uns dois familiares que resolveram fazer visitas, chegaram aqui sem avisar, criando uma situação superdelicada", desabafa.
Após perder sua gatinha de estimação, Mayra se conectou cada vez mais com a espiritualidade e passou a rever hábitos. Deixou de beber álcool e consumir carne. "Várias chaves viraram nesse sentido", diz ela, que tem um grupo no WhatsApp chamado "Resistir", com outros amigos que também estão isolados.
"Descobri que é possível sentir dor e estar em paz ao mesmo tempo. É um equilíbrio tênue. Faz parte desse compromisso: entender o que te alimenta em meio ao caos", diz.
É a pior coisa que eu já passei na vida e talvez a melhor. É um processo de muita humildade, tenho sido mais cuidadosa com minha própria dor e a dor dos outros, para poder apoiar minha mãe, apoiar minha avó, entender as demandas delas e não surtar. Tenho certeza que vou sair dessa muito mais sabida.
Mayra Melo, taróloga
Sobre a provocação do presidente, ela diz: "A gente tem que rir para não chorar, né? Porque francamente, vemos cada vez menos gente isolada e cada vez maior o número de mortos. É triste. Mas resistiremos", diz.
"Se ele [Bolsonaro] diz isso, é sinal que estou fazendo alguma coisa direito", diz Marcelo Calenda, 48, morador de São Paulo e também isolado há 14 meses.
Portador de diabetes, um dos fatores de risco para a covid-19, o ilustrador mora na zona oeste de São Paulo com a esposa e pratica corrida de rua há 12 anos. Desde março de 2020, está afastado do esporte. Ele tentou por duas vezes fazer seu treino como de costume, na avenida Sumaré. Nas duas tentativas, voltou para casa apavorado, em questão de minutos.
"Achei que não aguentava mais não correr, coloquei duas máscaras e fui. Chegando lá, 50% das pessoas estava sem máscara, 25% com máscara no queixo ou no cotovelo, e uma minoria tinha máscara. Eu dei alguns passos e desisti", conta. "Também tive duas saídas por conta de uma emergência oftalmológica. Estava com uma mancha na visão, foi um descolamento posterior de vítreo. Já está tudo bem. Mas é sempre muito traumático, muito difícil sair", diz.
A esposa, de 36 anos, produtora executiva, também está em home office. Ela chegou a sair cerca de dez vezes para compras grandes de supermercado. "A gente foi se adequando cada vez melhor com os aplicativos. Farmácia nem pensar, tudo por aplicativo", diz.
Afastado da corrida, Marcelo substituiu o esporte por atividades artísticas. Lançou um single com duas músicas autorais no Spotify com sua banda Calendas e tem se dedicado à pintura.
"Sinto falta de cortar o cabelo, de fazer pequenas viagens e de ver minha mãe, mas acho que não é o momento. Converso com ela todos os dias por vídeo e me sinto bem por estar fazendo isso", diz Marcelo. "Ela já está vacinada, eu ainda não. Mas espero poder reencontrá-la em breve."
Segundo pesquisa Datafolha divulgada ontem, o índice de isolamento no Brasil atingiu os níveis mais baixos desde o início da pandemia. Apenas 2% dos brasileiros adultos afirmam estar totalmente isolados e 19% afirmam sair de casa só quando é inevitável. Mais de 435 mil pessoas já morreram em decorrência da covid-19 no país.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.