Com dados instáveis sobre covid, Brasil não sabe se ômicron avança no país
A ciência já indicou em estudos recentes que a variante ômicron da covid-19 deve ser mais transmissível — ou seja, infecta outras pessoas com mais facilidade — do que outras cepas. Nos últimos dias, em meio às festas de final de ano, a variante provocou um salto de novos casos nos EUA e no Reino Unido.
Mas, aqui no Brasil, não é possível saber se a variante tem causado salto de infecções e nem se pode desenhar um cenário confiável do comportamento do vírus no país. Com sistemas fora do ar e dados desatualizados, o mapeamento da doença que matou mais de 600 mil pessoas no Brasil está defasado.
A instabilidade nos sistemas do Ministério da Saúde não é um problema novo e ainda não foi corrigido apropriadamente. Em setembro, o UOL noticiou essa subnotificação enquanto a pasta do governo federal alegava alterações no sistema para "melhor atender ações de vigilância".
O Sivep-Gripe, sistema que registra casos graves e mortes por covid-19, segue apresentando instabilidades e impossibilita que se acesse dados atualizados até hoje — no site de monitoramento de dados da covid do governo do estado de São Paulo, há uma nota explicando que não houve atualização de casos e óbitos entre 11 e 29 de dezembro por problemas no sistema federal.
Os registros de novos casos, feitos por profissionais de saúde no sistema E-Sus Notifica, já vinham sofrendo instabilidade decorrentes de atualizações. A situação piorou no último dia 10, quando os sistemas do Ministério da Saúde foram atacados por hackers. A pasta diz ter normalizado as plataformas, mas estados seguem relatando problemas na contagem dos dados.
O UOL perguntou ao Ministério da Saúde qual o número de testes feitos em dezembro; o número total de testes feitos, não só PCR; e informações atualizadas sobre o plano nacional de testagem lançado em setembro. O órgão respondeu que "na última semana foram restabelecidas as plataformas e-SUS Notifica, SI-PNI e Conecte SUS, possibilitando a inclusão de dados por estados e municípios. Os dados lançados após o dia 10 de dezembro ainda não constam nas plataformas. Entretanto, todas as informações podem ser registradas pelos gestores locais e, assim que a integração de dados for restabelecida, os registros poderão ser acessados pelos usuários."
Brasil fica para trás em testagem
Para saber se as contaminações estão sob controle ou não, é preciso testar a população. A medida é considerada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como um mecanismo fundamental de combate à pandemia de covid, combinada com a vacinação.
No entanto, há mais de um mês o Brasil não sabe ao certo quantos testes estão sendo feitos no país em meio às flexibilizações das proteções e das festas de final de ano.
Os dados públicos do Ministério da Saúde apresentam defasagens e divergências. Os últimos dados disponíveis na plataforma do Ministério da Saúde são do dia 11 de novembro, e mostram 213.313 testes PCR feitos em novembro até o dia 11 daquele mês. Já o último boletim epidemiológico, divulgado no dia 15 de dezembro, informa a realização de 710 mil testes PCR no país no mês passado.
Mesmo com dados inconsistentes, é possível observar que o número de testes vem despencando desde o auge da pandemia de covid. Em março deste ano, foram 2,4 milhões de PCRs, mas os números vêm caindo mês a mês, segundo o mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde.
Os números são baixos se comparados a outros países. Dados da plataforma Worldometers, coletados pelo Infotracker, plataforma de monitoramento da covid-19 da USP (Universidade de São Paulo) e Unesp (Universidade Estadual Paulista), apontam que o Brasil está na 128º colocação no índice de testagem por milhão de habitante (296.892 testes por milhão). Em primeiro lugar está a Dinamarca, com 18 milhões de testes por milhão de habitantes.
"No Brasil, não estamos vendo o aumento de casos [decorrente da ômicron] porque o país não testa. Simplesmente, essa é a realidade", diz o epidemiologista Pedro Hallal, professor da Ufpel (Universidade Federal de Pelotas). Hallal coordenou o Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil, realizado justamente pela aplicação de testes de covid.
Em termos de testes, estamos muito atrás de outros países. É como se o poder público não tivesse mais interesse em testar, porque grande parte da população está vacinada. Isso não faz sentido, vai na contramão de países que estão encarando a pandemia de forma séria. O Reino Unido, por exemplo, tem uma cobertura vacinal boa e, ao mesmo tempo, uma política muito forte de testagem."
Wallace Casaca, professor da Unesp e coordenador do InfoTracker
Casaca lembra que pessoas vacinadas ainda podem transmitir a covid e que, sem testes, "não é possível detectar o vírus, isolar o paciente e impedir a continuidade da transmissão."
"O teste é uma medida básica de combate à pandemia. Não pode cair em desuso com a vacinação. O que me causa pânico é que, com baixa testagem, o país fica no escuro", afirma.
Apesar da escassez de informações, alguns estudos já indicam um avanço da variante pelo país. Um levantamento divulgado pelo Instituto Todos pela Saúde analisou 30.483 testes de covid-19 feitos em 396 cidades de 16 estados entre o dia 1º e 25 de dezembro. Destes, 640 amostras foram positivas e 203 (31,7%) eram casos prováveis da variante ômicron. Estes casos foram identificados em 47 cidades de oito estados brasileiros.
Dificuldades para testar
Políticas de testagem adotadas em outros países evidenciam a ausência de uma estratégia de monitoramento liderada por autoridades no Brasil.
No Reino Unido, por exemplo, para fazer um teste, basta fazer o agendamento em um site do governo. Se a pessoa não tem sintomas de covid, recebe gratuitamente em sua residência testes rápidos. Também é possível retirar os testes, sem custo, em postos de distribuição. Já se a pessoa tem sintomas, a recomendação é marcar o teste PCR, que detecta melhor a covid, também gratuitamente e com agendamento online.
A procura por testes no fim do ano no Reino Unido foi tão grande que alguns locais registraram falta do insumo. "Apesar da demanda sem precedentes, nós continuamos a disponibilizar milhões de testes rápidos todos os dias", disse um porta-voz da agência de saúde britânica para o jornal The Guardian.
Só entre 22 e 23 de dezembro, foram feitos 3,23 milhões de testes para covid no Reino Unido. O governo britânico divulga estes dados diariamente.
Em algumas cidades brasileiras, a situação é oposta. Em São Paulo, por exemplo, a Secretaria Municipal de Saúde informou na última terça-feira (28) que a rede pública só faz testes de covid em quem está com sintomas da doença.
Desta forma, uma pessoa sem sintomas, mesmo que tenha tido contato com alguém que recebeu diagnóstico positivo, não consegue ser testada na rede pública em São Paulo.
A política pública de testagem de São Paulo contraria até os resultados de uma pesquisa feita pela própria Prefeitura, em maio deste ano, mostrando que 56% das pessoas que tiveram covid na cidade foram assintomáticas. O dado prova a importância de testar mesmo quando não há sintomas.
"Lá no começo da pandemia, essa seria uma política errada, mas ainda havia a desculpa de que faltava teste, que não tinha dado tempo para criar política de testagem. Mas agora, com todo esse tempo de pandemia, não testar alguém que teve contato com (pessoa com resultado) positivo é inaceitável, é uma piada de mau gosto", diz o epidemiologista Pedro Hallal.
Em outros lugares do país, o acesso a testes de covid na rede pública é menos restrito que na cidade de São Paulo. Pernambuco, por exemplo, tem o projeto TestaPE, que disponibiliza testes gratuitos em locais de grande movimento de pessoas. Atualmente, há postos de testagem em um terminal de ônibus intermunicipais e interestaduais e no aeroporto internacional, ambos no Recife.
Fila de espera até para testes pagos
Com os obstáculos na rede pública, a rede privada vê um aumento na demanda por testes pagos de covid-19 no fim de ano.
Dados da Abrafarma (Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias) apontam que a semana de 13 a 19 de dezembro registrou 137.618 testes, 9% a mais do que os 126.210 do período entre os dias 6 a 12 do mesmo mês. O aumento foi ainda maior, de 44%, quando comparado com a semana de 29 de novembro a 5 de dezembro.
Dos testes feitos entre 13 e 19 de dezembro, 10.982 tiveram resultado positivo para covid-19 — na semana anterior, do dia 6 ao dia 12, esse número foi de 8.278. "No entanto, se considerada a média diária de casos, o índice segue em viés de baixa", afirma a associação em nota.
A alta demanda está gerando filas de espera pelo teste de farmácia. Neste fim de ano, em algumas regiões da cidade de São Paulo, é difícil encontrar farmácias e laboratórios com disponibilidade para realizar o teste de covid no mesmo dia ou no dia seguinte.
Na terça-feira (28), a reportagem buscou datas disponíveis para fazer o teste em diferentes estabelecimentos privados e encontrou casos em que só havia vagas no sábado, 1º de janeiro. Os preços variam de R$ 78 a R$ 170.
Alta taxa de testes positivos
Outro dado preocupante do Brasil é o alto percentual de casos positivos entre os testes feitos. Isso sinaliza, justamente, que estamos testando muito pouco.
Em maio de 2020, a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendou que os governos só flexibilizassem as medidas de restrição de circulação de pessoas quando 5% dos testes de covid, ou menos, dessem positivo ao longo de duas semanas.
Nesse patamar, considera-se que estão sendo feitos testes em quantidade suficiente para detectar casos e, assim, isolar as pessoas doentes. Por isso, o ideal seria que os governos disponibilizassem esse tipo de estatística diariamente.
É o que ocorre nos Estados Unidos. O acompanhamento diário desse tipo de dado mostra que, até o início de dezembro, cerca de 7% dos testes de covid-19 no país estavam dando positivo. Já na reta final do ano, o percentual dobrou para 14%, acendendo um forte alerta.
Já no Brasil, a média de resultados positivos entre os testes PCR feitos na pandemia foi de 27% — a plataforma Worldometers aponta um índice ainda maior, de 34,9%.
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