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Covid: o que levou o país a voltar a registrar mil mortes por dia?

Enterro noturno no Cemitério de Vila Formosa (SP) - VINCENT BOSSON/FOTOARENA/Estadão Conteído
Enterro noturno no Cemitério de Vila Formosa (SP) Imagem: VINCENT BOSSON/FOTOARENA/Estadão Conteído

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

05/02/2022 04h00

O Brasil voltou a registrar ontem um dia com mais de 1.000 mortes pela covid-19. A rápida ascensão na curva de óbitos causada pelas infecções com a variante ômicron expõe uma série de erros em sequência que o país cometeu no controle da pandemia. Em janeiro, a média diária de mortes pela doença saltou 566%.

Especialistas ouvidos pelo UOL afirmam que, novamente, o Brasil deixou de cumprir o papel preventivo (mesmo sabendo antecipadamente da ômicron) e lida agora as consequências. Com hospitais cheios em vários estados, a tendência é que o número ainda suba mais pelo menos por alguns dias.

A bióloga e divulgadora científica Natália Pasternak diz que um erro marcante nessa terceira onda foi o menosprezo à capacidade letal da nova variante. "Erramos ao subestimar a ômicron e liberar as medidas preventivas muito rápido. Com uma cepa tão contagiosa, o momento era de cautela", diz

O discurso exageradamente otimista de que a ômicron era mais branda acabou gerando uma sensação de segurança para as pessoas; e mesmo ela sendo menos capaz de causar doença grave, dado o número de pessoas que ela infecta, era esperado que o impacto total fosse grave."
Natália Pasternak, bióloga

Para o pesquisador Miguel Nicolelis, o Brasil confiou exageradamente também na vacinação, sem levar em conta que as coberturas atingidas seriam incapazes de deter uma nova tragédia. "Acreditamos que era só vacinar, mesmo não tendo vacinado gente suficiente com a segunda dose. As pessoas acharam que estavam liberadas. Não houve uma comunicação nacional, nem estratégia para alertar dos riscos reais, dizer que a ômicron escapa às duas doses", relata.

Nicolelis diz ainda que o país seguiu cometendo os mesmos erros das outras ondas. "Mantivemos o espaço aéreo aberto, com pessoas de todo lugar. Além disso, não fizemos campanha e distribuição de máscaras que efetivamente funcionam", completa.

Rosana Onocko Campos, presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), lembra ainda que o Brasil estacionou no percentual de pessoas que tomaram a segunda dose há meses e não consegue fazer com que muitos completem o esquema de imunização. Agora, são pessoas não vacinadas, ou com ciclo incompleto, que lotam hospitais nessa nova onda.

"Sem dúvida essa taxa de vacinação deveria ser maior, e além disso não temos uma imunização homogênea da vacinação: tem cidades e regiões do país sem 40% de cobertura", afirma.

Temos bares, festas e jogos de futebol. Suspenderam só o carnaval, mas todo resto seguiu. Ainda demoramos propositalmente o início da vacinação das crianças, e elas estão começando as aulas sem a devida proteção."
Rosana Campos, Abrasco

Ela coloca ainda na conta do governo federal o apagão de dados e a desarticulação da atenção básica de saúde na gestão das vacinas. "Como as vacinas foram feitas sem muito controle, está difícil para os profissionais da atenção básica saberem quem tomou a 2ª ou 3ª dose e irem em busca. O nosso sentimento é de comoção pela dor que tantas famílias brasileiras estão passando desnecessariamente", completa.

Centro de testagem em Manaus está com alta procura de pessoas com suspeita de covid - Rodrigo Santos/Secretaria de Saúde do Amazonas - Rodrigo Santos/Secretaria de Saúde do Amazonas
Centro de testagem em Manaus está com alta procura de pessoas com suspeita de covid
Imagem: Rodrigo Santos/Secretaria de Saúde do Amazonas

O doutor em microbiologia e divulgador científico Átila Iamarino ressalta que o Brasil fez "muita coisa errada" que ajudou a ômicron a ter um número alto de mortes. Uma das questões principais que ele cita é a campanha de desinformação para pôr dúvidas sobre a segurança e a eficácia das vacinas —o que levou muita gente a recusar a imunização e lotar hospitais com covid-19 agravada.

"O governo federal demorou a comprar vacinas, e a gente ainda teve uma série de engasgos durante a distribuição. A gente teve uma séria campanha por parte de líderes políticos falando mal das vacinas. A gente tem um ministro da saúde que cria dúvidas; que põe em questão a vacinação, inclusive sobre a vacinação infantil. Então a gente tem de enfrentar outras dificuldades no Brasil além do vírus", lamenta.

Átila ainda cita que faltou, desde o início uma gestão planejada para enfrentamento da pandemia. "A gente até hoje não tem um plano nacional de combate ao coronavírus; não tem um comitê de combate, não tem direção nem do PNI [Programa Nacional de Imunizações] —que ajudou a gente a combater várias outras doenças evitáveis até aqui. E, claro, tem a dificuldade econômica, o cansaço, a perda de emprego, de oportunidade das pessoas por conta do que a pandemia impõe", relata .

Esse número acima de mil vem muito da falta de ação do governo federal contra o vírus. A gente só tem uma ação por parte do governo pró-vírus e pró-transmissão".
Átila Iamarino, doutor em microbiologia

O professor em saúde pública da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Alcides Miranda lembra ainda que, apesar das taxas não serem as ideais, não fosse a vacinação de boa parte da população, estaríamos vivendo uma tragédia sem precedentes no país. "Não fora a cobertura vacinal já alcançada, estaríamos lidando com uma catástrofe e o inevitável colapso dos serviços de saúde", comenta.

Para ele, os erros de agora não são muito diferentes das outras ondas. "Lamentavelmente mantivemos os erros, mesmo com os avisos de que era um momento para cautela e ver como exemplo o que estava ocorrendo na Europa, onde houve uma flexibilização prematura", diz.

Os erros repetidos justificam que não estamos a lidar com incompetências flagrantes e omissões eventuais da parte do governo federal, mas com negligências intencionais; portanto, são crimes contra a saúde pública".
Alcides Miranda, UFRGS

Tenda vacina moradores de Boa Vista  - Giovani Oliveira/Prefeitura de Boa Vista - Giovani Oliveira/Prefeitura de Boa Vista
Tenda vacina moradores de Boa Vista
Imagem: Giovani Oliveira/Prefeitura de Boa Vista

A professora titular em epidemiologia da UFC (Universidade Federal do Ceará) e presidente do 11º Congresso de Epidemiologia da Abrasco, Lígia Kerr, faz uma comparação do momento do país com o final dos anos de 1920, quando o mundo ainda enfrentava a pandemia da gripe espanhola.

"A maioria das histórias sobre esta gripe diz que ela terminou no verão de 1919, quando uma terceira onda de contágio respiratório finalmente diminuiu. No entanto, o vírus continuou a matar e, em 1920, surgiu uma nova variante. Nos Estados Unidos, em várias grandes cidades, as mortes por esta variante chegaram a superar as mortes ocorridas na segunda onda. Mas as pessoas cansaram da influenza, e o poder público foi ficando sem forças para impor mais restrições", diz, comparando com o momento atual.

Apesar de muitos pesquisadores e jornais --tanto agora, como naquela época-- estarem cheios de notícias assustadoras sobre o vírus, todos reduziram as medidas de precaução".
Lígia Kerr, epidemiologista

Por fim, ela ainda faz uma previsão de que ainda estamos em momento de ascensão. "Infelizmente, os números de casos e óbitos devem continuar aumentando por mais algum tempo antes de estabilizar e reduzir. Isto tudo, se não houver uma variante pior, como aconteceu com a influenza, em 1920", avalia.