Não vi, não tomei: governo corta verba de anúncios e vacinação da gripe cai
"Acordei com febre, dor de cabeça e no corpo, mas não era covid, era gripe", conta a faxineira Telma dos Reis, 46, que, pela primeira vez em anos, não viu propaganda de vacinação contra a gripe e esqueceu de ir ao posto.
Ela não deve ser a única. Desde o ano passado, o Brasil não consegue atingir a meta de vacinação contra a gripe. Ainda assim, o governo federal cortou a verba de publicidade para a campanha de 2022 enquanto cresce no Brasil a desconfiança sobre a eficácia das vacinas.
A Campanha Nacional de Vacinação deste ano acabou oficialmente em 24 de junho com apenas 47% da população alvo —78 milhões de pessoas— vacinada. A meta, que é atingir 90% desse publico ao final de cada campanha, já não havia sido alcançada no ano passado (52%), a primeira vez que isso aconteceu desde 1999, quando começaram os programas de vacinação contra a gripe.
Apesar de a procura pela vacina cair, o governo federal vem cortando a verba publicitária para divulgar a campanha de vacinação: são R$ 17 milhões para promover a deste ano, 58% menos que em 2019, primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (PL), indicam dados obtidos pelo UOL por meio de LAI (Lei da Acesso à Informação).
O valor é 46% menor que o de há dez anos (2013) e 82% abaixo dos R$ 92,6 milhões gastos na campanha contra a gripe de 2011, após correção pela inflação.
Na prática, o valor para 2022 é ainda menor porque, pela primeira vez, a campanha contra a gripe foi feita em conjunto com a de sarampo. O UOL pediu ao Ministério da Saúde que discriminasse o valor correspondente a cada uma das campanhas, mas não recebeu resposta.
Em nota, afirma que "as Campanhas Nacionais de Vacinação contra a Influenza e o Sarampo foram realizadas simultaneamente este ano devido a circulação ativa do vírus do sarampo no país desde 2018, a maior incidência de casos em crianças menores de 5 anos de idade e o registro de óbitos nessa faixa etária".
Sem a separação de valores, a cifra média desembolsada nos quatro anos do governo Bolsonaro supera a do governo anterior —Dilma Rousseff (PT)/Michel Temer (MDB)—, mas ainda fica abaixo do investimento médio no primeiro governo da petista.
"É inegável que a redução da publicidade interferiu [na vacinação]", afirmou ao UOL Geraldo Barbosa, presidente da ABCVAC (Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas), que também atribui o problema ao negacionismo. "Antes, não tinha questionamentos sobre a eficácia da vacina."
Gasto médio com campanha de vacinação por governo:
- Governo Dilma (2011 - 2014): R$ 41,6 milhões
- Governo Dilma/Temer (2015 - 2018): R$ 21,6 milhões
- Governo Bolsonaro (2019 - 2022): R$ 26,7 milhões (em 2022 inclui a campanha contra o sarampo)
Quando se leva em conta o aumento das doses oferecidas ao longo do tempo, os gastos com publicidade no governo Bolsonaro também ficam abaixo do governo Dilma/Temer.
Em 2011, por exemplo, o governo gastou R$ 2,83 para dar publicidade a cada uma das 32,7 milhões de doses compradas naquele ano. Em 2022, os R$ 17 milhões de propaganda equivalem a R$ 0,21 para cada uma das 80 milhões de doses distribuídas.
Gasto médio com campanha de vacinação para cada dose adquirida, por governo:
- Governo Dilma (2011 - 2014): R$ 1,1
- Governo Dilma/Temer (2015 - 2018): R$ 0,37
- Governo Bolsonaro (2019 - 2022): R$ 0,35
Quando tira publicidade, o governo para de falar com esse público, que deixa de procurar a vacina porque fica com a sensação de que não é importante procurar um posto, já que nem o governo está divulgando
Geraldo Barbosa, da Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas
"Não vi propaganda"
Telma, que cuida da limpeza de uma casa paroquial na Vila Miriam, zona norte de São Paulo, caiu doente em abril. Quando o teste para covid deu negativo e a gripe foi confirmada, precisou se afastar do trabalho por cinco dias para não contaminar o padre, já idoso.
"Todo ano tomo vacina, mas nesse não vi propaganda, e esqueci de tomar", conta. "Antes a gente via muito anúncio na TV, na internet. Dessa vez não vi, não lembrei e acabei não vacinando."
Negacionismo pesa
Ao longo do tempo, a exigência para a cobertura vacinal mudou, "avançando de 70% da população alvo desde 1999 para 80% em 2008 e 90% a partir de 2017", segundo o Ministério da Saúde.
"De modo geral, as coberturas vacinais são elevadas, acima da meta estabelecida para cada período", diz Informe Técnico da pasta, que, pela primeira vez, admitiu que "em 2021, ano de pandemia pela covid-19, nenhum grupo apresentou valores iguais ou acima da meta de 90%".
Gerente médico do pronto atendimento do Hospital Japonês Santa Cruz, Newton Shiosawa vem recebendo este ano "muitos pacientes que não tomaram a vacina" e chegam ao consultório com dor de garganta e no corpo, tosse e febre.
"Há muitos jovens com essas queixas, provavelmente porque estão em contato com muitas pessoas durante o dia", conta. "Mas quem deve ter sempre mais cuidado são os idosos e pacientes com comorbidade."
Ele atribui a queda na vacinação a dois fatores: a queda na publicidade, "pois a população procura muito a mídia" para se informar sobre vacinação, e também ao negacionismo, que vem crescendo.
"Muitos pacientes não tomaram a vacina por medo ou por não acreditar", diz. Barbosa, da ABCVAC, concorda.
"Antes não tinha questionamentos sobre a eficácia da vacina. Hoje é complicado, a gente gasta uma energia muito grande para desmistificar teorias falsas, um problema crônico em tempos de redes sociais", afirma. "As pessoas não buscam fonte confiável de informação."
Nas clínicas particulares, apenas 43% das 9 milhões de doses de vacinas disponíveis foram aplicadas este ano.
Riscos
Shioswa recomenda o uso de máscaras também para se proteger contra o vírus da gripe, e garante que a vacina é "muito eficaz e deve ser tomada todo ano porque as mutações acontecem frequentemente".
A queda na vacinação este ano, no entanto, pode resultar em nova cepa do vírus da gripe, diz Barbosa, provocando um surto de infecções fora de época, como aconteceu no final do ano passado.
Telma não quer correr o mesmo risco e, mesmo sem propaganda, vai buscar um posto de saúde.
"Fiquei cinco dias em repouso, tomando remédios e bastante líquido", diz. "Vou tomar essa vacina porque não quero voltar a sentir aqueles sintomas, que foram muito ruins."
Outro lado
Ao UOL, o Ministério da Saúde afirmou que "as Campanhas Nacionais de Vacinação contra a Influenza e o Sarampo foram realizadas simultaneamente este ano devido a circulação ativa do vírus do sarampo no país desde 2018, a maior incidência de casos em crianças menores de 5 anos de idade e o registro de óbitos nessa faixa etária".
Além disso, foi considerado também o público-alvo de ambas as campanhas de vacinação, o número de crianças não vacinadas e a necessidade de proteger os trabalhadores da saúde.
Sobre o valor investido na campanha deste ano, a pasta esclarece que o acréscimo foi decorrente da prorrogação da campanha, que ocorreu até o dia 24 de junho.
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