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Algemada no hospital: médicos ignoram lei e denunciam mulheres que abortam

Santa Casa de Araguari, onde a paciente foi algemada pela polícia após denúncia de médico - Divulgação
Santa Casa de Araguari, onde a paciente foi algemada pela polícia após denúncia de médico Imagem: Divulgação

Do UOL, em São Paulo

07/07/2023 04h00Atualizada em 08/08/2023 15h48

Uma jovem de 21 anos procurou socorro em uma Santa Casa no interior de Minas após complicações de um aborto. Mesmo com a vida em risco, seu médico a denunciou à polícia, que a interrogou e a algemou no leito hospitalar. A jovem agora responde processo por homicídio duplamente qualificado, tentativa de aborto e ocultação de cadáver.

O caso não é isolado. Pesquisas indicam que médicos e outros profissionais de saúde desafiam as leis do Brasil, que obrigam o profissional de saúde a guardar sigilo sobre as informações que recebem de seus pacientes.

O que aconteceu em MG

A paciente foi encaminhada à Santa Casa de Araguari, a 574 km de Belo Horizonte, depois de ter procurado um pronto-socorro na pequena cidade em que mora. O caso foi em outubro de 2020 e a jovem estava com dor abdominal, sangramento e expelindo coágulos.

Na UTI da Santa Casa, ela foi atendida pelo médico Roberto Laurents de Sousa. O ginecologista suspeitou de aborto e chamou a Polícia Militar.

No boletim de ocorrência, três PMs confirmam que foram acionados pelo ginecologista. Um deles diz que o médico, "ao fazer os exames clínicos, percebeu que a paciente havia passado por um aborto". "Diante dos fatos, fomos autorizados pelo médico a falar com a autora", complementa outro.

Diante da pressão do interrogatório, a paciente confessou o aborto, recebeu voz de prisão imediatamente e teve as mãos e pés algemados na maca. Escoltada por dois policiais, ela ficou três dias algemada — dois na UTI e outro no quarto. O pedido de prisão preventiva após a alta foi negado pelo juiz.

O que dizem os envolvidos

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Maioria das mulheres denunciadas por profissionais de saúde é pobre
Imagem: Revista AzMina

Médico não respondeu o UOL. A defesa da jovem confirmou as informações, mas a paciente não deu entrevista porque o processo está em segredo de Justiça.

O médico não respondeu as mensagens enviadas pela reportagem. Como ele não constituiu advogado, o UOL tentou contato com o ginecologista em dois celulares, pelo WhatsApp, pelo Instagram e pelo Facebook. Também encaminhou e-mail e o procurou por meio da Santa Casa de Araguari.

A Santa Casa disse em nota que "logo após o atendimento foram acionadas as autoridades pertinentes com o intuito de resguardar outra vida". O texto afirma ainda que "a paciente foi acolhida e devidamente atendida".

Embora o depoimento dos policiais indique que a polícia foi acionada para apurar um aborto, o Ministério Público acusou a jovem também por homicídio e ocultação de cadáver. O MP alega que o feto pode ter sido expelido ainda com vida, morrido posteriormente e que a mulher teria ocultado o corpo ao embrulhá-lo em uma toalha.

A mulher, no entanto, diz que a criança nasceu sem vida. Os advogados dela, Alberto Toron e Luiza Oliver, alegam que o MP tenta "justificar a atitude ilegal do médico" ao denunciar homicídio.

Para Oliver, mesmo se houvesse vida no feto, "o médico não poderia acionar a polícia porque o compromisso dele é com a paciente". Procurado, o MP não respondeu.

ativista a favor do aborto em protesto na avenida paulista - NurPhoto/NurPhoto via Getty Images - NurPhoto/NurPhoto via Getty Images
Ativista a favor do aborto em protesto na Avenida Paulista, em São Paulo
Imagem: NurPhoto/NurPhoto via Getty Images

Por que a denúncia é ilegal

A primeira proibição está no Código de Ética Médica. O artigo 73 diz que é "vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente".

A segunda está no Código Penal. O artigo 154 considera "violação do segredo profissional" que alguém revele "segredo de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem".

Além de delatar, o médico depôs contra a paciente em fevereiro deste ano — e violou o artigo 207 do Código de Processo Penal. O texto diz que "são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho".

A lei estabelece o segredo profissional porque em certas profissões a base da relação é a confiança, como em um tratamento médico. Você não vai a um médico, advogado ou padre se não confia nele. Imagina ir a um médico e depois descobrir que ele revelou algum segredo seu a terceiros?
Euro Bento Maciel Filho, advogado criminalista

No STJ, em março deste ano, a Sexta Turma anulou provas consideradas ilegais de um processo justamente porque a mulher foi denunciada por seu médico pelo aborto. O relator, ministro Sebastião Reis Júnior, citou o Código Penal para reafirmar que o médico é "proibido de revelar segredo de que tem conhecimento em razão da profissão".

No entanto, portaria de Bolsonaro recomendava denúncia. Quando a jovem foi denunciada estava em vigor uma portaria editada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que recomendava aos profissionais de saúde que denunciassem casos de aborto. O texto, revogado pelo governo Lula, seria inválido porque portarias não se sobrepõem às leis já em vigor.

A Constituição está acima de tudo, depois vêm as leis criadas pelo Legislativo. Portaria, provimento, regimento, resolução podem ser uma recomendação, mas não substitui lei.
Euro Bento Maciel Filho, advogado criminalista

O Conselho Federal de Medicina defende o Código de Ética. Procurado, o CFM afirmou que "exige a observação de todos os pressupostos inseridos no Código de Ética Médica" e que "cabe ao médico preservar o sigilo das informações oferecidas pelo paciente, salvo em situações previstas em lei, onde a comunicação de fatos relatados é importante para preservação da segurança e da saúde públicas, por exemplo".

Caso seja confrontado em atendimento com situações excepcionais, mas que não configuram obrigatoriedade de reporte às autoridades, o médico pode reportá-las em prontuário clínico para se preservar de eventuais desdobramentos.
CFM, em nota

O que indicam pesquisas

aborto - Getty Images - Getty Images
Mulheres brancas e com mais instrução buscam clínicas clandestinas de aborto
Imagem: Getty Images

Cuidar ou delatar? Esse é o título de uma dissertação de mestrado de Vanessa Fogaça Prateano —orientada por Katie Arguello—, da Universidade Federal do Paraná, sobre a violação do sigilo médico e criminalização, no qual foram analisados processos de 43 mulheres por aborto naquele estado entre 2017 e 2019. Os resultados:

  1. 44% das mulheres citadas foram reportadas à polícia por profissionais de saúde;
  2. 65% tiveram seu prontuário médico compartilhado com a polícia sem consentimento;
  3. 58% dos casos em que a mulher foi denunciada à Justiça, os profissionais de saúde foram arrolados como testemunhas de acusação;
  4. 84% das mulheres citadas foram atendidas pelo SUS.

O perfil da mulher se repetia: pobre, pouco instruída, moradora de periferia. Este não é necessariamente o perfil das mulheres que fazem aborto, mas o das mulheres presas por terem feito aborto.
Trecho da pesquisa Cuidar ou Delatar?, da UFPR

Em outro estudo sobre o tema, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro analisou os casos de 42 mulheres processadas por aborto no Estado em 2017. Pesquisadores tiveram acesso aos processos — inclusive às declarações feitas à polícia. E chegaram à seguinte conclusão:

  1. 30,9% delas foram denunciadas pelo hospital ou posto de saúde;
  2. 52,3% foram denunciadas à Justiça após investigação policial;
  3. 9,5% foram denunciadas por familiares;
  4. 4,7% foram denunciadas por terceiros;
  5. 2,3% das denúncias partiram da própria vítima.

Enquanto as mulheres denunciadas por profissionais da saúde são "negras, pobres, com baixa escolaridade e residentes em áreas periféricas", 53% das que foram surpreendidas em clínicas clandestinas de aborto eram brancas e 75% tinham cursado o ensino médio, contra 22% do outro grupo. O maior número de mulheres denunciadas após investigação policial se deve a uma apuração deflagrada contra clínicas clandestinas de aborto naquele período.

As mulheres que têm condições de procurar clínicas de aborto são mais instruídas e o fazem logo no começo da gravidez.
Trecho da pesquisa da Defensoria Pública do RJ

A jovem citada no início da reportagem vem de uma situação de vulnerabilidade social. Criada pela mãe, trabalha desde os 14 anos em uma cidade pequena. Só conseguiu se defender porque a Rede Liberdade —formada por advogados e representantes de entidades da sociedade civil para a atuação jurídica em casos de violação de direitos individuais— acionou o escritório de advocacia (Toron Advogados), que tem o projeto Alê Szafir para atender clientes em vulnerabilidade social, e que é coordenado pela advogada Ingrid Ortega.

O processo está com o juiz para que decida se ela será submetida a Júri Popular. A defesa tenta anular o processo por meio de um habeas corpus protocolado no STJ com base na decisão de março do tribunal sobre o caso semelhante.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A reportagem cita o artigo 207 do Código de Processo Penal e não do Código Penal, como estava escrito. O texto foi corrigido.