Topo

"Milagroso" remédio chinês tem sido a morte para os burros

A alta demanda por ejiao, uma medicina tradicional feita a partir de gelatina extraída de peles de burro cozidas, levou a um aumento nos roubos do animal em muitos países - Rachel Nuwer/The New York Times
A alta demanda por ejiao, uma medicina tradicional feita a partir de gelatina extraída de peles de burro cozidas, levou a um aumento nos roubos do animal em muitos países Imagem: Rachel Nuwer/The New York Times

Rachel Nuwer

Em Nairóbi (Quênia)

28/01/2018 04h00

"Este é o local", disse Morris Njeru, olhando para um lote de terra onde recentemente encontrou os corpos ensanguentados de David, Mukurino e Scratch --seus últimos burros.

Njeru, 44, carregador do mercado que depende de seus animais para transportar produtos pela cidade, já havia perdido cinco burros no início do ano. Toda vez, os ladrões cortaram a garganta dos animais e arrancaram sua pele do pescoço para baixo, deixando a carne para os abutres e as hienas.

Quatro meses depois, tudo o que Njeru conseguiu achar dos animais foi um único casco, que guardou de lembrança.

Também na lembrança está a vida confortável que Njeru levava. Sem seus animais, sua renda caiu de cerca de US$30 (aproximadamente R$ 94) por dia para menos de US$ 5 (R$ 15). Ele não pode mais pagar o aluguel de uma pequena propriedade e acredita que será preciso tirar seu filho do internato.

"Minha vida mudou completamente. Eu dependia dos burros para alimentar minha família", disse ele.

Para Njeru e milhões de pessoas em todo o mundo, os burros são os principais meios de transporte de alimentos, água, lenha, bens e pessoas. Na China, no entanto, eles têm outro propósito: a produção do ejiao, um medicamento tradicional feito de uma gelatina extraída da fervura do couro de burro.

O ejiao era prescrito principalmente como suplemento para a perda de sangue e para equilibrar o yin-yang, mas hoje é procurado para uma série de males, desde retardar o envelhecimento e aumentar a libido até tratar efeitos colaterais da quimioterapia e prevenir a infertilidade, o aborto espontâneo e a irregularidade menstrual.

Mesmo o ejiao existindo há séculos, sua popularidade moderna começou a crescer em torno de 2010, quando empresas como a Dong-E-E-Jiao --a maior fabricante chinesa-- deram início a campanhas publicitárias agressivas. Quinze anos atrás, meio quilo de ejiao era vendido por US$ 9 (R$ 28); agora, custa cerca de US$ 400 (R$ 1.257). 

NYT_1 - Rachel Nuwer/The New York Times - Rachel Nuwer/The New York Times
Morris Njeru, que mora em Nairobi (Quênia), teve 8 burros roubados no ano passado
Imagem: Rachel Nuwer/The New York Times

À medida que a demanda foi aumentando, a população de burros da China --que já foi a maior do mundo-- caiu de 11 milhões para menos de 6 milhões, e algumas estimativas contam possivelmente apenas 3 milhões. As tentativas de reabastecimento dos rebanhos se revelaram um desafio: ao contrário de vacas ou porcos, os burros não se prestam à criação intensiva. As fêmeas produzem apenas um potro por ano e são propensas a abortos espontâneos sob condições estressantes.

Então, as empresas chinesas começaram a comprar couro de burro de países em desenvolvimento. De uma população global de 44 milhões, cerca de 1,8 milhão de burros são abatidos por ano para produzir o ejiao, de acordo com um relatório publicado no ano passado pelo Donkey Sanctuary, uma organização sem fins lucrativos com sede no Reino Unido.

"Há um enorme apetite por ejiao na China, que não mostra sinais de diminuição. Como resultado, os burros estão desaparecendo de comunidades que dependem deles", disse Simon Pope, gerente de campanhas da organização.

Em novembro, pesquisadores da Universidade Florestal de Pequim advertiram que a demanda chinesa por ejiao pode transformar os burros nos "próximos pangolins".

"A China escolhe importar burros de todo o mundo a alto custo, o que pode levar a uma crise potencial ", escreveram pesquisadores na revistas científica "Equine Veterinary".

A pele dos animais segue para a China oriunda de nações tão variadas quanto o Quirguistão, o Brasil e o México. Mas a África é o epicentro do comércio, tanto em termos de número de animais mortos quanto de impacto.

"Em 2016, o negócio dos burros eclodiu. Havia um número crescente de casos de pessoas que passavam pela área de Maasai, roubavam burros e os levavam para a fábrica de propriedade chinesa", disse Obassy Nguvillah, superintendente da polícia no distrito de Monduli, na Tanzânia, perto da fronteira do Quênia.

Em Esilalei --aldeia localizada em uma savana seca sob a supervisão de Nguvillah-- os moradores perderam quase 475 burros em um único ano. Cerca de 175 animais foram recuperados na perseguição aos ladrões pela mata, mas a polícia acredita que o restante foi vendido aos matadouros. Incapazes de adquirir outros exemplares, os antigos proprietários ainda estão se recuperando.

"Hoje, não estamos mais felizes porque nossos veículos, nossos burros, não estão mais aqui", disse Katasi Moko, que ficou com apenas um burro depois que quatro outros foram roubados.

Com cinco burros, Moko conseguia completar duas tarefas por dia: coletar água de poços distantes, por exemplo, ou buscar lenha. Mas, com apenas um animal, ela só tem tempo para uma tarefa, porque várias viagens de ida e volta são necessárias.

"Nossa carga de trabalho aumentou", disse ela.

Quatorze países africanos, juntamente com o Paquistão, promulgaram várias proibições contra o comércio internacional de burros. A Tanzânia juntou-se à lista em junho, citando preocupações de que os burros logo desapareceriam se o abate continuasse.

Rimoinet Shamburi, administrador da aldeia de Esilalei, disse que o roubo de burros diminuiu desde a proibição, mas não acabou completamente. Ele acredita que o comércio legal no Quênia é o culpado.

"As coisas ainda estão ruins porque há uma indústria em Nairóbi que apoia o roubo de burros", disse ele.

'Eles vêm de todo lugar' 
NYT_2 - Rachel Nuwer/The New York Times - Rachel Nuwer/The New York Times
O preço das peles de burro cresceu 50 vezes em apenas dois anos
Imagem: Rachel Nuwer/The New York Times

Ao contrário da Tanzânia, o comércio de couro de burro do Quênia não mostra sinais de desaceleração. Em 2016, o preço das peles era 50 vezes mais alto do que em 2014, enquanto o dos burros vivos quase triplicou, de cerca de US$ 60 (R$ 188) para US$ 165 (R$ 519).

Os três matadouros do país --todos com proprietários ou sócios chineses-- relataram o processamento de cerca de 100 mil burros em dois anos, de acordo com um memorando do governo. Tanto a pele como a carne são exportadas para a China, geralmente através do Vietnã ou de Hong Kong.

Dezessete comerciantes de pele também abriram lojas, principalmente em Nairóbi, e há rumores de que um quarto matadouro deve ser inaugurado. Os proprietários de matadouros insistem que estão melhorando o país, gerando empregos e pagando bons preços por burros desnecessários.

"O negócio ajudou muitas pessoas. Em vez de ter que vender vacas e cabras, os pastores Maasai estão vendendo burros para pagar as escolas dos filhos", disse John Kariuki, diretor do matadouro Star Brilliant Donkey Export, em Naivasha.

O matadouro Goldox Donkey, no condado de Baringo --o maior do Quênia, que diz processar cerca de 450 burros por dia-- também tenta mostrar boa vontade, fornecendo água gratuita aos vizinhos e pagando os gastos escolares de quatro crianças da comunidade. 

NYT_3 - Rachel Nuwer/The New York Times - Rachel Nuwer/The New York Times
Com descarte do resto dos animais, moradores da região reclamam de odores e contaminação da água
Imagem: Rachel Nuwer/The New York Times
Os críticos argumentam que os benefícios são exagerados e que o comércio cria muitos problemas.

"Os burros estão sendo roubados e abatidos no mato ou transportados de forma errada, sem documentação adequada ou padrões de saúde pública", disse um veterinário queniano que pediu para permanecer anônimo por medo de represálias de superiores do governo.

"Todos nós --os proprietários de burros, os profissionais veterinários-- somos contra o comércio, mas o governo não está interessado porque isso lhe garante renda."

De acordo com o censo mais recente em 2009, o Quênia tinha cerca de 1,8 milhão de burros que ajudavam cerca de 10 milhões de pessoas. Quando a próxima contagem for publicada, em 2019, Solomon Onyango, gerente de desenvolvimento de programas para ciência veterinária no Donkey Sanctuary Kenya, acredita que esse número terá diminuído significativamente.

"A população de burros do Quênia não pode sustentar essa demanda", disse Onyango.

De acordo com a organização, a intensa demanda já está afetando os países vizinhos; os burros às vezes são trazidos para o Quênia vindos de Uganda, da Somália ou da Tanzânia.

Silas Chesebe, um intérprete da Goldox, confirmou que os animais comprados pelo matadouro às vezes atravessavam fronteiras. "Eles vêm de toda parte, inclusive da Tanzânia", disse ele.

Em um esforço para se proteger contra a compra de burros roubados, acrescentou ele, a Goldox exige que seus vendedores obtenham dois documentos "sem objeção" assinados por um inspetor de carne do governo local e de um agente de aquisição. O agente de aquisição que emite o primeiro documento, no entanto, é um funcionário da empresa.

Chesebe explicou que o matadouro também limita suas compras de peles secas às vendidas pelo povo Turkana --porque, segundo ele, "todos sabem que apenas os turkana comem burros"-- e para peles novas de vendedores que dizem que seus animais morreram a caminho do matadouro.

Onyango afirma que nenhuma dessas regras é suficiente para garantir que os burros e as peles sejam legalmente adquiridos.

Em alguns casos raros, os proprietários que vivem perto dos matadouros identificaram e resgataram seus animais com sucesso. Por conta disso, Lu Donglin, diretor da Goldox, anunciou em outubro que o matadouro começaria um processo de checagem de três dias, permitindo que a empresa recupere o pagamento caso burros roubados sejam recuperados pelos moradores.

Kariuki, da Star Brilliant, concordou que o roubo é um problema e disse que agora exige que os vendedores tenham permissão de transporte do departamento veterinário do Quênia.

"Faço o melhor possível para acabar com o roubo, porque é muito triste quando uma mulher pobre vem aqui chorando dizendo que perdeu o burro do qual dependia para carregar água. Eu realmente me sinto mal com isso e desencorajo o roubo."

Porém, as queixas sobre os matadouros se estenderam para além do seu papel no incentivo ao roubo. Os burros geralmente chegam em condições horríveis, alguns com pernas quebradas ou feridas infestadas de larvas, e muitos quase morrendo de fome. As queixas de crueldade apresentadas pela Sociedade de Proteção e Cuidados com os Animais do Quênia --incluindo alegações de que os burros foram mantidos durante dias no sol e chuva sem sustento-- levaram o governo a fechar o Star Brilliant por um mês.

"Não há incentivo para fornecer alimentos, água ou cuidados veterinários. A situação é absolutamente horrenda do ponto de vista do bem-estar animal", disse Pope.

Os burros que morrem na estrada, acrescentou, muitas vezes têm a pele retirada no local e suas carcaças são abandonadas para apodrecer.

Ossos dispersos 
NYT_4 - Rachel Nuwer/The New York Times - Rachel Nuwer/The New York Times
Restos de burro são jogados em área externa de matador de Naivasha (Quênia)
Imagem: Rachel Nuwer/The New York Times
 

Na verdade, a eliminação de resíduos se tornou um grande problema. No final do ano passado, a Goldox começou a despejar restos de burro em um terreno que comprou na aldeia de Chemogoch, no fim da estrada de seu matadouro.

Depois que os moradores que viviam ao lado do local se queixaram, a empresa começou a enterrar os resíduos em vez de deixá-los ao ar livre. Mas os vizinhos dizem que a situação ainda é inaceitável, acusando a empresa de contaminar as águas subterrâneas e propagar doenças.

Em uma visita recente ao local de despejo, vários poços profundos e abertos aguardavam os restos de burros, enquanto outras áreas estavam cobertas de terra revirada recentemente. Crânios, costelas, vértebras e ossos da perna dos animais estavam espalhados na grama e na sujeira. Um cheiro putrefato infestava o ar, e os abutres circulavam no alto.

Evans Kiprop, agricultor cuja casa fica a poucos metros de distância, afirma que suas vacas desenvolveram problemas nos cascos e nos olhos como resultado da poluição, e que sua produção de leite caiu de 30 litros diariamente para cerca de 9 litros. Ele disse que os mabecos, ou cães selvagens, agora se reúnem aqui, arrastando restos de burro para áreas onde seus filhos brincam, suscitando preocupações com segurança, saneamento e raiva.

"Nós não queremos mais comer ou dormir aqui. Estão transformando nossa aldeia em aterro", acrescentou Koros Kipkoech, outro vizinho.

À medida que as frustrações crescem, os donos de burros e a Associação Veterinária do Quênia realizaram protestos em Nairóbi e em outras cidades. Em julho, Njeru e mais de mil outras vítimas de roubo pediram a interrupção imediata do comércio de couro de burro em uma petição entregue ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca do Quênia, que regula o setor.

"As pessoas estão roubando e vendendo burros roubados, mas o governo não está ajudando. Relatei o crime à polícia, que não tomou nenhuma providência", disse Njeru.

Os funcionários do Ministério não responderam aos pedidos de entrevista, mas um memorando emitido em setembro não dá indícios de que as autoridades planejam acabar com o comércio. Em vez disso, afirma que a indústria oferece grandes oportunidades de emprego e potencial para o desenvolvimento econômico, uma conclusão que Onyango e outros críticos contrariam.

Devemos entrar no negócio de cocaína ou na venda de presas de elefantes só porque dá dinheiro? Não se pode permitir o comércio apenas em nome de um negócio que prejudica as pessoas."