Cabul tenta retomar a vida entre medo e desconfiança do novo regime talibã
A vida tentava recuperar lentamente seu ritmo normal nesta terça-feira (17) em Cabul, em um cenário de grande temor e desconfiança dos afegãos a respeito do novo regime talibã, que fortalece seu controle na cidade e dificulta a saída de quem quer fugir do país.
As lojas reabriram as portas na capital do Afeganistão, o tráfego retornou, e as pessoas voltaram às ruas, enquanto os talibãs monitoram tudo em postos de vigilância.
Um oficial do Talibã deu uma entrevista a um jornalista para uma rede de notícias e uma escola para meninas funcionou em Herat, no oeste.
Alguns sinais mostram que a vida não será igual. Os homens trocaram suas roupas ocidentais pelo shalwar kameez - a vestimenta tradicional afegã -, e a televisão estatal exibe agora, principalmente, programas islâmicos.
As escolas e universidades da capital ainda estão fechadas e poucas mulheres se arriscaram a sair de casa.
Algumas se reuniram brevemente na entrada da "zona verde" para pedir o direito de voltar ao trabalho. Os talibãs tentaram em vão dispersá-las, antes de civis as convencerem a partir.
Abdul Ghani Baradar, cofundador e número dois do talibã, voltou ao Afeganistão vindo do Catar, onde chefiou o gabinete político do movimento, disse um de seus porta-vozes.
Os insurgentes anunciaram uma "anistia geral" para todos os funcionários públicos, que receberam o pedido para "retomar sua vida cotidiana com total confiança".
Os talibãs intensificaram os gestos de apaziguamento para a população desde que entraram em Cabul no domingo (15), após uma ofensiva relâmpago. Em apenas dez dias, eles assumiram o controle de quase todo país, incluindo o palácio presidencial, abandonado por Ashraf Ghani, que fugiu para o exterior.
Para muitos afegãos, no entanto, será difícil ter confiança. Quando governaram o Afeganistão, entre 1996 e 2001, os talibãs adotaram uma versão extremamente rigorosa da lei islâmica. As mulheres não podiam trabalhar, nem estudar. Os acusados de roubo e de assassinato enfrentavam punições terríveis.
"As pessoas têm medo do desconhecido. Os talibãs patrulham a cidade em pequenos comboios. Não incomodam ninguém, mas com certeza as pessoas estão com medo", disse à AFP um comerciante em Cabul.
Apesar das mensagens dos talibãs, algumas informações sugerem que eles continuam procurando autoridades governamentais. Uma testemunha relatou que homens invadiram a casa de um funcionário, que foi levado à força.
Diante da "rápida deterioração da situação de segurança e direitos humanos" e "da situação de emergência humanitária", o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) pediu a proibição do repatriamento de afegãos.
Voos de retirada
Em um discurso muito aguardado, Joe Biden defendeu a retirada das tropas americanas do Afeganistão, onde os militares entraram há 20 anos para expulsar os talibãs do poder.
"Estou profundamente entristecido com os acontecimentos, mas não me arrependo da decisão" afirmou.
O governo dos Estados Unidos decidiu intervir no Afeganistão em 2001, após a recusa dos talibãs de entregarem o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, depois dos atentados do 11 de Setembro.
O triunfo dos talibãs provocou cenas de pânico e de caos no aeroporto de Cabul na segunda-feira (16), para onde milhares de pessoas correram desesperadas, em uma tentativa de fugir do país. Imagens que o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, chamou nesta terça de "vergonha para o Ocidente".
Vídeos nas redes sociais mostram centenas de pessoas correndo ao lado de um avião militar americano a ponto de decolar, enquanto alguns agarravam a lateral, ou as rodas da aeronave.
Uma fotografia capturou cerca de 640 afegãos amontoados em um avião C-17 da Força Aérea dos Estados Unidos. Alguns entraram na aeronave com a rampa entreaberta.
O governo dos Estados Unidos enviou 6.000 soldados para garantir a segurança do aeroporto e a retirada de quase 30.000 americanos e colaboradores civis afegãos.
Espanha, Alemanha, França, Holanda, Reino Unido e outros países tentavam acelerar nesta terça-feira a repatriação de seus cidadãos.
Imagem abalada
A reação da comunidade internacional ainda deve ser observada. Washington anunciou que apenas reconhecerá um governo talibã no Afeganistão se este respeitar os direitos das mulheres e adotar um distanciamento de movimentos extremistas como a Al-Qaeda.
A China, que declarou que deseja manter "relações amistosas" com os talibãs, criticou o "terrível caos" deixado pelos Estados Unidos no Iraque, Síria e Afeganistão.
A Rússia, cujo embaixador deveria ser o primeiro contato diplomático do novo regime, considerou que as garantias dos talibãs em termos de liberdade de opinião são um "sinal positivo" e desejou o início de um diálogo de "todas as forças políticas, étnicas e religiosas".
O ministro britânico da Defesa, Ben Wallace, citou o "fracasso da comunidade internacional", enquanto a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, disse que a intervenção no Afeganistão "não foi tão frutífera" como se esperava.
O presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que o Afeganistão "não deve voltar a ser o santuário do terrorismo que já foi" e pediu uma "resposta (internacional) responsável e unida".
Para muitos analistas, porém, embora os talibãs tentem apresentar mais prudência em suas relações com a Al-Qaeda, os dois grupos continuam estreitamente vinculados.
"O que está acontecendo no Afeganistão é uma vitória clara e veemente para a Al-Qaeda", avalia o diretor de pesquisas do "think tank" Soufan Center, Colin Clarke, para quem o grupo pode aproveitar para atrair recrutas e criar uma nova dinâmica.
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