Moradia e espaço de uso são propostas de movimentos para a Cracolândia
Em abril, o Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool de São Paulo divulgou relatório avaliando a possibilidade da criação de um espaço de uso seguro para consumo de drogas na capital paulista. O documento contextualiza que a medida estaria dentro da ética da redução de danos.
Redução de danos
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O documento informa que existem 98 salas de uso seguro no mundo e 60 cidades, sendo que na Europa a política vigora há 30 anos. A ideia é oferecer um espaço em que as pessoas que usam drogas possam ficar, evitando a "perturbação da ordem pública", segundo o texto, e oferecendo alternativas de cuidado aos usuários, desde insumos descartáveis, como seringas, para prevenir a transmissão de infecções, até o acompanhamento de profissionais de saúde e a assistência social.
Esses espaços existem, de acordo com o relatório, de diversas formas. O documento traz o exemplo dos Países Baixos, onde há "zona de tolerância, caracterizadas por oferecerem acomodações supervisionadas - locais de acolhimento e hospitalidade - a pessoas em situação de rua. Esses espaços frequentemente permitem o uso de substâncias ilícitas, não se caracterizam como ambiente da área da saúde, apesar de proporcionarem ações de redução de danos junto aos usuários".
Para São Paulo, o documento do conselho recomenda a criação de um Centro de Convivência e Cooperativa Álcool e outras Drogas, que estaria dentro das previsões legais que regulam o tema no país.
Violência naturalizada
Ainda em abril, 40 organizações da sociedade civil realizaram o seminário Cracolândia em Emergência, e o espaço de uso foi um dos temas discutidos. Para a militante do movimento A Craco Resiste, Roberta Costa, o contexto de violência extrema faz com que as pessoas que usam drogas tenham dificuldade em imaginar o que seria um lugar com mais acolhimento e sem violência.
"Esse debate sobre espaços de uso tem essa dificuldade de horizonte, de sonhar mesmo. No Brasil, a violação dos direitos humanos e a violência policial estão tão naturalizadas por essas pessoas, as que mais sofrem com isso, que elas não conseguem nem imaginar a possibilidade de um mundo em que não apanhem todo dia da polícia. E isso é muito triste", diz Roberta a partir das contribuições dos usuários de drogas colhidas durante o seminário.
No entanto, ela pondera que antes da mega operação policial de 2017, quando a Cracolândia ficava concentrada em dois quarteirões na Rua Helvetia e na Alameda Dino Bueno, em que a repressão policial era menor e menos intensa, especialistas internacionais viam o local como algo semelhante a um espaço de uso ou zona de tolerância.
"Eu tive a oportunidade de levar vários pesquisadores internacionais à Cracolândia, pessoas como Carl Hart e Liz Evans, que são especialistas em redução de danos e espaços de uso do mundo todo, e eles sempre olhavam aquele espaço - que tem muito sofrimento, muita pobreza e precisa de muitas coisas como água - como de uso impressionantemente alegre, com música", contou a respeito das experiências que teve com o neurocientista e com responsável por criar serviços de atendimento no Canadá e nos Estados Unidos.
Para o psiquiatra Flávio Falcone, a medida reduziria o conflito instaurado na região desde a dispersão em maio do ano passado. "Um espaço de uso seguro, que resolveria o problema dos moradores e das pessoas que fazem uso e que não vão desaparecer de uma hora para outra. Nem o problema vai se resolver internando todo mundo compulsoriamente. A gente tem que usar o princípio da realidade, não o princípio do meu desejo", defende o médico, que coordena o projeto Teto, Trampo, Tratamento.
Moradia primeiro
A iniciativa de Falcone oferece moradia para 13 pessoas que estavam em situação de rua. "Moradia em primeiro lugar. Não moradia como recompensa de um processo de abstinência, mas a moradia como um direito, antes de você fazer qualquer coisa. No meu ponto de vista, não dá para a pessoa fazer tratamento sem ter um mínimo de organização, que é a moradia. É o que a gente faz aqui nesse projeto", afirmou em entrevista à TV Brasil.
A melhoria das condições de vida das pessoas depois que tem a segurança de um teto é muito grande, destaca o artista e educador social Raphael Escobar, que atua na Associação Birico, que também oferece moradia a um grupo menor de pessoas. "A hora que alguém vê a bomba na rua e vai para casa porque precisa se cuidar, é um grande avanço. Quando alguém pega o dinheirinho e compra uma comidinha para ele mesmo cozinhar na casa dele, eu acho isso um avanço gigantesco. Quando a pessoa tem um lugar para guardar as coisas e não ser tomada pela polícia, acho que isso é uma vitória gigantesca", exemplifica.
A partir dessa condição mais estável, segundo Escobar, é possível que a pessoa possa trabalhar e ter autonomia. "As pessoas precisam trabalhar, 80% delas não conseguem emprego. E não é trabalhar em lanchonete no shopping. Essas lanchonetes não gostam de gente sem dente. Tem que entender o tipo de emprego, as peculiaridades do território. Partir de uma baixa exigência que, aos poucos, você possa ir construindo as possibilidades de um caminhar", diz.
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