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Juíza condena Funai, União e MG por 'campo de concentração' Krenak na ditadura

Pepita Ortega

São Paulo

16/09/2021 14h06

A juíza Anna Cristina Rocha Gonçalves, da 14ª Vara da Justiça Federal de Minas Gerais, condenou a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Estado por violações aos direitos humanos e crimes cometidos contra os indígenas Krenak durante a ditadura militar. As ilegalidades perpetradas contra os povos originários estão relacionadas, por exemplo, ao funcionamento do reformatório Krenak, considerado um campo de concentração de indígenas criado pelo regime.

De acordo com a sentença, a União, a Funai e o Estado de Minas Gerais deverão realizar, em até seis meses, uma cerimônia pública na qual serão reconhecidas as graves violações de direitos dos povos indígenas, seguida de pedido público de desculpas ao Povo Krenak. Além disso, também em seis meses, a Funai deverá concluir o processo de delimitação da Terra Indígena Krenak de Sete Salões, além de estabelecer ações de reparação ambiental das terras degradadas pertencentes ao povo indígena.

O órgão ainda terá de, juntamente com o Estado de Minas Gerais, implementar ações e iniciativas voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak, de forma a resgatar e preservar a memória e cultura do povo indígena, com a implantação e ampliação do Programa de Educação Escolar Indígena.

Já a União, deverá de reunir e sistematizar toda a documentação relativa às graves violações dos direitos humanos dos povos indígenas e que digam respeito à instalação do Reformatório Krenak, à transferência forçada para a fazenda Guarani e ao funcionamento da Guarda Rural Indígena, disponibilizando os arquivos na internet.

Além disso, a sentença de Anna Cristina reconhece a existência de relação jurídica entre Manoel dos Santos Pinheiro, então responsável pelo reformatório conhecido como Capitão Pinheiro, e a União, a Funai e o Estado de Minas Gerais. De acordo com a juíza, o Capitão Pinheiro deve ser reconhecido como 'agente público responsável, em nome dos entes públicos ora discriminados, pela prática de atos de violações de direitos dos povos indígenas, como a criação e instalação da Guarda Rural Indígena, a administração do Reformatório Krenak e a transferência compulsória dos índios para a Fazenda Guarani, em Carmésia'.

A decisão foi dada na segunda-feira, 13, no âmbito de uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal. De acordo com a magistrada, a Procuradoria conseguiu demonstrar, após 'exaustivo trabalho de colheita de depoimentos e exame de volumosa documentação', diversas arbitrariedades praticadas em detrimento dos povos indígenas com a criação do reformatório Krenak, na região de Resplendor, e da Guarda Rural Indígena, ambos em 1969, além do exílio imposto aos povos originários na Fazenda Guarani, em Carmésia, 1972.

Em sua decisão, Anna Cristina avaliou um a um os pontos questionados pelo MPF, entre eles a Guarda Rural Indígena. De acordo com a magistrada, o grupo consistiu, basicamente de milícias armadas criadas pelo Estado com indígenas de etnias variadas. Na avaliação da juíza, a estratégia de colocar comporem a Guarda que fiscalizaria suas próprias comunidades era 'assaz maliciosa e visava, sobretudo, instigar conflitos físicos e psicológicos entre os índios de uma mesma tribo, esfacelando sua integridade e identidade'.

Já com relação ao reformatório Krenak, a magistrada reproduziu trechos da petição inicial do Ministério Público Federal, apontando que o local considerado um campo de concentração foi instalado pela Funai e pela Polícia Militar de Minas Gerais em 1969, na área do Posto Indígena Guido Marlière (PIGM), onde viviam os indígenas Krenak.

De acordo com a sentença, o presídio destinado a 'corrigir desajustados' abrigou centenas de indígenas de múltiplas etnias, sendo que eles chegavam ao local sem uma 'pena' previamente definida. Esta dependia da análise do responsável pelo local, Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro.

O documento ressalta as 'precárias condições de confinamento' do reformatório. Segundo o MPF, o Museu do Índio 'preserva uma série de documentos, inclusive fichas de identificação dos indígenas confinados, bem como relatórios e telegramas que descrevem a fome e a degradação humana a que foram submetidos os indígenas presos'.

O local apontado como campo de concentração funcionou até 1972 quando os indígenas foram compulsoriamente transferidos para uma fazenda na cidade de Carmésia. Diversos indígenas, contrários à transferência, foram amarrados e enviados ao local onde havia coerção para trabalharem à força.

Além de citar as violações perpetradas aos indígenas, a juíza Anna Cristina ainda detalhou as referências dos indígenas ao Capitão Pinheiro, responsável pelo reformatório. De acordo com a magistradas, os relatos dos indígenas ao Ministério Público Federal 'demonstram o abusivo exercício de poder por parte do Capitão Pinheiro, cuja atuação extrapolou a já ilegal e arbitrária orientação estatal'.

"Não bastasse a ilegalidade das orientações do próprio ente estatal, o Capitão Pinheiro optou por não apenas segui-las, mas por praticar condutas que extrapolaram ainda mais a ética, o decoro e a honra, violentando de maneira ignóbil a integridade dos indígenas submetidos à sua 'guarda'", registrou a magistrada.