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Frei Betto: 'Bolsa Família não é emancipatório. Quem sai pode voltar à miséria'

São Paulo

30/12/2022 08h05

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, conheceu a fome no Brasil quando passou cinco anos em uma favela de Vitória. Responsável pelo programa Fome Zero no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o dominicano se tornou crítico do programa que o sucedeu, o Bolsa Família, por entender que ele não garante solução permanente para o problema. Segundo ele, seus resultados são suscetíveis às mudanças econômicas e políticas porque não exige que os beneficiários se tornem produtivos nem lhes dá a consciência crítica da cidadania. Sua profecia se realizou no governo de Jair Bolsonaro, quando a fome voltou ao País. Atualmente assessor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), disse: "Se não se introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais, nós vamos ter um governo balcão de benefícios". Leia trechos da entrevista.

Por ser compensatório, o sr. diz que o Bolsa Família não garante a emancipação das famílias para erradicar o problema. Ou seja, se a política ou a economia sofrem abalos, a fome pode voltar. Esse seria o problema do Bolsa Família?

Essa questão para mim é fundamental. Toda a minha discordância com o fim do Fome Zero e a criação do Bolsa Família foi exatamente essa. O Fome Zero era um programa emancipatório porque ele incluía uma cesta de mais ou menos 60 diferentes programas, entre eles de capacitação profissional em que a família beneficiária em três ou quatro anos estaria em condição de produzir a própria renda e ficaria independente do governo. O Bolsa Família é bom, mas compensatório, não é emancipatório. Quem sai do Bolsa Família corre o risco de voltar para a miséria. Essa foi a minha discordância. Depois, porque o Fome Zero era controlado pelos comitês gestores nos municípios. E isso gerou revolta dos prefeitos, pois aquelas lideranças populares estavam se destacando e ameaçando as velhas oligarquias. Eles foram ao Planalto e ameaçaram sabotar o governo. E aí veio o Bolsa Família.

O que é fundamental na política contra a fome?

Considero fundamental dois procedimentos: primeiro a qualificação para que os beneficiários estejam em condições de produzir a própria renda. Não bastam como condicionalidade a carteira de vacina e a frequência à escola das crianças. E, segundo, a educação política.

O que seria essa educação?

Vou usar um termo do Paulo Freire: usar uma metodologia, uma pedagogia que tire a pessoa da consciência ingênua para a consciência crítica. Em outras palavras: a pessoa ter uma consciência de cidadania, saber o que é democracia e que o governo não está fazendo favor a ela, que ela é governo, ela é a referencia principal. O governo é servidor para ela.

Para que o Estado não seja capturado por interesses privados que se contrapõem ao interesse comum?

Exatamente isso.

Pode-se dizer que a rendição do governo Lula aos prefeitos cobrou um preço depois, quando esse flagelo voltou ao País?

Muito. O programa foi sendo descaracterizado. Estive em Bananeiras (PB) há dois anos, e as pessoas me disseram que ali não é mais a mulher que vai à Caixa pegar o dinheiro com o cartão do Bolsa Família. É o filho. E muitos para gastar em drogas. A coisa foi se afrouxando na medida em que passou a ser monitorado pelas prefeituras.

Há um ano, o senhor chamou Bolsonaro de 'Bolsonero' e dizia que ele tinha uma lira que tocava enquanto a Amazônia pegava fogo. E essa lira era o Arthur Lira. Essa mesma 'lira' será apoiada pelo PT para permanecer na presidência da Câmara. Como a música que vai sair daí pode ser diferente daquela de Bolsonaro se o instrumento é o mesmo?

Estou convencido de que o Lula hoje tem muita consciência do que devia ter feito e não fez. E mais. Possivelmente, essa é sua última chance, sai da frente que vou ir com trator. Está aí na própria escolha do Ministério. Até acho que, se o governo for bem, em 2026, ele será candidato de novo. Ele tem consciência disso. Agora, não dá para errar. Tem de fazer. Por outro lado, ele dá nó em pingo d'água. Veja aí a PEC da Transição, uma coisa de um gênio político. Ninguém imaginava que alguém que nem tomou posse ainda fosse capaz de conseguir isso que ele conseguiu. Mas ele terá de alguma maneira manter boas relações com um Congresso que é totalmente adverso. A questão é criar base política para daqui a dois anos colocar um candidato dele à frente da Câmara e do Senado.

Em 1946, o Josué de Castro publicou seu livro Geografia da Fome, cujo subtítulo era Pão ou Aço. Economistas dizem que esse é um falso dilema, que é possível desenvolver e ao mesmo tempo bater a fome. O sr. acha que esse é um falso dilema?

Acho que é um falso dilema justamente. Veja na crise de 2008. O que Lula fez? Pôs dinheiro na mão do povo e aumentou o consumo, que é a mesma coisa que ele está fazendo agora com a PEC da Transição, com R$ 600 e mais R$ 150 para cada criança. Mas isso tem de ser feito com pedagogia, de uma maneira inteligente e não como mero donativo ao povo. Não pode estabelecer políticas sociais que não tenham contrapartida dos beneficiários. Isso é uma questão educativa. Se não se introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais, nós vamos ter um governo de balcão de benefícios em vez da realização de direitos.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.