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Despacho de presidente do Ibama pode custar ao menos R$ 3,6 bilhões à União

O presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim - Divulgação/Ibama
O presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim Imagem: Divulgação/Ibama

Laura Scofield e Bianca Muniz

27/06/2022 22h03

Um despacho assinado pelo presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, pode fazer com que a União deixe de receber ao menos R$ 3,6 bilhões em multas por infrações ambientais, mostra levantamento exclusivo da Agência Pública. A medida também abre a possibilidade de infratores condenados pedirem de volta o dinheiro já pago.

O valor apurado pela reportagem se refere a 6.297 processos administrativos atualmente com o status de "AI notificado via edital para alegações finais". Nessa fase, os infratores têm mais uma chance de se manifestarem antes da avaliação de uma autoridade julgadora do Ibama. Caso não se manifestem, o processo corre normalmente, com a possibilidade de apresentação de outras defesas e recursos.

No despacho nº 11996516/2022, Bim, que chegou ao cargo em janeiro de 2019 pelas mãos do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, considerou inválida a notificação de infratores por edital para a apresentação de alegações finais. A alteração poderá valer retroativamente. Como notificar por edital era a regra de 2008 a 2019, o despacho pode afetar milhares de processos. Somente em São Paulo, Minas Gerais e Tocantins há mais de 38 mil casos em que as pessoas multadas foram notificadas para apresentarem suas alegações finais desta forma, apontaram analistas dos três estados em resposta a um pedido da Associação Nacional de Servidores Ambientais (Ascema) ao qual a reportagem teve acesso.

Em 2021, Bim chegou a ficar três meses afastado do cargo por decisão da Justiça por causa de outro despacho que teria beneficiado madeireiros em esquema de contrabando. O caso, investigado pela Polícia Federal (PF), levou à saída de Salles do ministério.

Documentos obtidos pela Pública mostram que o presidente do Ibama começou a aplicar seu próprio entendimento sobre as multas antes mesmo de oficializá-lo no Diário Oficial da União, em março. Em 28 de dezembro, meses antes do despacho, Bim contrariou uma normativa da Procuradoria Especializada do Ibama — à qual cabe dar a palavra final sobre questões jurídicas na instituição — e decidiu pela prescrição de um processo por considerar que a notificação via edital não tinha validade.

O movimento de Eduardo Bim beneficiou a sócia de uma imobiliária em Paragominas, cidade no sudeste do Pará. Carmélia Sales Alves havia sido multada em mais de R$ 8 milhões, sob acusação do Ibama de destruição de 1.708,201 hectares de floresta nativa na fazenda Terra Boa, localizada no território da Amazônia Legal. Bim anulou a notificação via edital para apresentação de alegações finais, publicado em 5 de fevereiro de 2016. Como o último ato válido antes da notificação por edital se deu há mais de seis anos, o procedimento e a infração perderam a validade.

No dia 31 de dezembro de 2021, três dias após a decisão, o entendimento do presidente do Ibama foi repassado aos servidores do órgão. "Para ciência e divulgação", escreveu o superintendente substituto da Superintendência de Apuração de Infrações Ambientais (Siam), Pedro Augusto Lima Fonseca, em despacho interno. O texto foi compartilhado também em grupo de Skype dos analistas ambientais do órgão.

A forma como a decisão foi repassada assustou uma das analistas: "Eu até me manifestei no grupo: 'Gente, como assim, isso é muito grave para ser repassado de forma tão informal. Como assim?'. Era véspera do réveillon, não tinha ninguém para discutir", explicou. Assim como os outros funcionários do Ibama ouvidos pela reportagem, ela falou sob a condição de anonimato por temer represálias.

Despacho de Eduardo Bim pode anular milhares de ações fiscalizatórias entre 2008 e 2019, dizem especialistas

No dia 31 de dezembro de 2021, três dias após a decisão, o entendimento do presidente do Ibama foi repassado aos servidores do órgão. "Para ciência e divulgação", escreveu o superintendente substituto da Superintendência de Apuração de Infrações Ambientais (Siam), Pedro Augusto Lima Fonseca, em despacho interno. O texto foi compartilhado também em grupo de Skype dos analistas ambientais do órgão.

A forma como a decisão foi repassada assustou uma das analistas: "Eu até me manifestei no grupo: 'Gente, como assim, isso é muito grave para ser repassado de forma tão informal. Como assim?'. Era véspera do réveillon, não tinha ninguém para discutir", explicou. Assim como os outros funcionários do Ibama ouvidos pela reportagem, ela falou sob a condição de anonimato por temer represálias.

A ação gerou questionamentos internos por parte dos analistas ambientais, que formalizaram suas dúvidas em consulta interna em 17 de janeiro deste ano. Bim respondeu com o despacho nº 11996516/2022, tornando obrigatória sua interpretação.

Em 23 de maio, a Ascema, que representa servidores do Ibama, Ministério do Meio Ambiente e ICMBio, denunciou o que denominou de "ato ilegal" de Bim à Procuradoria da República do Distrito Federal. O Ministério Público abriu um inquérito para "apurar e tomar providências quanto à legalidade" do despacho.

A associação argumenta que "haverá milhares de prescrições com gigantesca perda de trabalho dos servidores do IBAMA, bem como gigantesca perda de créditos e compensações ambientais". Responsável pelo caso, o procurador Felipe Fritz Braga considerou que o presidente do Ibama não abordou de forma satisfatória os impactos do despacho e pediu explicações.

Entretanto, enquanto a investigação está sendo realizada, fica mantida a ordem de Bim, o que deixa os servidores em um "beco sem saída". "Estamos anistiando todas as infrações [notificadas para alegações finais por edital] praticadas de 2008 a 2019. É um estímulo total [ao crime ambiental]. É tipo 'olha todo esse trabalho que o Ibama vem fazendo, isso tudo não vale nada, nós [o governo de Jair Bolsonaro] conseguimos cancelar'", afirmou uma analista do Ibama ouvida pela reportagem. "É como se o nosso trabalho fosse todo para o lixo. Está todo mundo desanimado, todo mundo sendo vencido", desabafou outro funcionário.

Até casos como as multas aplicadas pelo rompimento das barragens de Brumadinho e Mariana, que ocorreram quando a notificação por edital era a regra, podem ser afetados, explica o consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA) e professor da pós-graduação de direito ambiental da PUC-SP Maurício Guetta. "O prejuízo é exorbitante, porque ele inclui as multas das autuações [por infrações ambientais], o que já seria bastante elevado, mas também o orçamento milionário anual que o Ibama tem para fiscalização", afirmou. "Se um órgão tem dez anos de atuação [e gasto de recurso público], e esses dez anos de atuação representam zero efetividade, está havendo uma má gestão", concluiu.

Durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro, o orçamento milionário do Ibama diminuiu, saindo de R$ 102,9 milhões em 2019 para R$ 82,9 milhões em 2021. Enquanto o dinheiro que pode ser perdido pela União com o despacho de Bim é bilionário, o orçamento do órgão responsável pela fiscalização é medido em milhões. Ainda em 2020, o vice-presidente Hamilton Mourão admitiu que o Ibama, que perdeu 58,7% de seus funcionários nos últimos 20 anos, encontra-se sucateado.

A Pública pediu ao Ibama que enviasse os dados totais do número de processos que podem ser afetados. Por meio de assessoria, o órgão afirmou que havia feito a contabilização e estava aguardando a autorização da presidência para compartilhar os dados, mas não retornou. Em nota, a assessoria do órgão afirmou que "o despacho segue jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais (TRF's) e Superior Tribunal de Justiça (STJ)". De acordo com Guetta, entretanto, as jurisprudências citadas no despacho não têm efeito vinculante sobre o Ibama e nem abordam o uso de editais para a notificação para alegações finais em processos administrativos ambientais.

Entre as dez maiores multas aplicadas pelo Ibama identificadas pelo levantamento e que poderiam, em tese, ser beneficiadas pelo despacho de Bim estão grandes empresas como o banco Santander e a ferroviária Rumo Malha Norte — a que Jair Bolsonaro já teria agradado com medida provisória —, além de infratores conhecidos, como Pedro Cordeiro, que com a família figura entre os maiores desmatadores de unidades de conservação na Amazônia.

No caso do Santander, a base de autos de infração do Ibama aponta que o banco foi multado em mais de R$ 47 milhões por "intermediar 95.100 sacas de milho produzidas em uma área de 572,59 hectares embargada", ou seja, fornecer crédito a uma produção em área embargada por decisão judicial. Procurado pela reportagem, o banco respondeu "que sempre atua em conformidade com todas as normas ambientais em suas operações". "O banco recorreu contra a autuação mencionada, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, por entender que foram cumpridos todos os requisitos vigentes à época da concessão do empréstimo".

Já a Rumo Malha Norte foi multada em mais de R$ 25 milhões por derramar óleo diesel e gasolina em manancial superficial e lençol freático no Mato Grosso do Sul, por conta de um descarrilamento de 23 vagões. Em nota para a reportagem, a assessoria da Rumo respondeu que a empresa "fez toda a remediação ambiental da área do acidente e tomou todas as medidas mitigadoras à época do acidente. Desde então, o IBAMA faz vistorias em conjunto no local periodicamente, sem que tenha havido novas recomendações. O jurídico da empresa estava aguardando a decisão administrativa sobre o mérito de sua defesa quando tomou ciência da anulação da autuação".

Cerca de 80% do total de multas na fase processual de notificação para alegações finais via edital envolve infrações contra a flora que vão de desmatamento e transporte ilegal de madeira a queimadas. Isso inclui as duas maiores multas do levantamento, que cobram R$ 50 milhões cada uma de duas carvoarias em Marabá, no sudeste do Pará.

Em 2010, a Operação Corcel Negro, que mirou a venda ilegal de carvão, identificou que as empresas Arca da Aliança Indústria e Comércio de Carvão Vegetal Ltda e Carvoaria Grota Preta Ltda-ME teriam vendido sem permissão carvão e outros produtos florestais. De acordo com base de autos de infração do Ibama, a Arca da Aliança teria comercializado ilegalmente 363 metros cúbicos de carvão e 647.500 quilos de frutos para a produção de carvão; enquanto a Grota Preta teria vendido 560 metros cúbicos de carvão e 1,3 milhão de quilos de frutos do babaçu.

A canetada de bilhões

Outra brecha aberta pelo despacho de Bim é a possibilidade de que infratores condenados usem o entendimento do despacho para questionar sua condenação e pedir seu dinheiro de volta. Como os efeitos da alteração podem afetar o caixa do Ibama, Eduardo Bim pediu que a Coordenação-Geral de Cobrança e Recuperação de Créditos (CGCOB) da Procuradoria-Geral Federal (PGF) avaliasse a medida "para eventual ratificação do entendimento", mas o órgão ainda não se manifestou. Em retorno à solicitação do Ministério Público Federal (MPF), o procurador-chefe da CGCOB, Fábio Munhoz, afirmou que o tema está em análise.

Para os analistas ambientais ouvidos pela reportagem, o despacho não faz sentido, já que a orientação anterior só era usada em casos em que a pessoa multada não ia ter a situação alterada.

"Não há nenhuma violação à ampla defesa e ao contraditório, nada. Isso [a argumentação de Bim] são princípios gerais e que são usados quando não se tem argumentação razoável", diz Guetta. Ele considera que o presidente do órgão fez um malabarismo jurídico para sustentar sua interpretação com a "finalidade ideológica de impor ao Ibama a má gestão e a ausência de efetividade das ações [sancionatórias]".

Em 2011, a Procuradoria Federal Especializada do Ibama havia chegado à mesma conclusão e ordenado que a notificação por edital fosse "observada por todas as unidades" para uniformizar a atuação do órgão. Como parte das investigações do MPF, em 13 de junho, a presidência do Ibama e a Siam reconheceram que a orientação continua válida, mas ainda sustentam a canetada que a ignora.

De acordo com os servidores, corre nos bastidores que a alteração teria sido motivada pelo interesse do presidente do Ibama em beneficiar grupos específicos. "Jogando no meio de um bolo, a prescrição ia alcançar milhares de processos, aí ficava diluído e [ele] não precisava se explicar", apontou um deles. Não seria a primeira vez: investigações da PF mostraram que o despacho em benefício dos madeireiros teria sido encomendado em reunião com participação do então ministro Ricardo Salles e empresários da área.

"Muitas vezes, como aconteceu lá no caso da madeira, isso [o despacho] vem a pedido de um setor ou de alguém. A partir deste tipo de provocação se faz essa alteração de uma interpretação com efeitos retroativos, mas é difícil eu te precisar", apontou Guetta. "Mas o efeito [dessas medidas] é evidente: é um convite ao crime. É um atestado de que o Ibama não tem efetividade nas suas ações, e que portanto não há coação para que os infratores deixem de cometer crimes ambientais."

Um dos primeiros atos do presidente eleito, ainda em março de 2019, foi demitir um fiscal do Ibama que o havia multado por pesca ilegal.

A canetada ainda afetou o moral na instituição, denunciaram os analistas ouvidos. Como presidente do órgão, Eduardo Bim deveria ser "o primeiro a defender a gente", mas não o faz, comentou um funcionário do Ibama. "É como se o nosso trabalho não valesse de nada", desabafou. Ele ainda lembrou a fala de Bim em 19 de abril deste ano, na qual disse que a área ambiental está repleta de "muita gente louca, e os loucos gostam de direito ambiental porque eles se sentem confortáveis na área, inventando coisas". Depois da repercussão da declaração pelas entidades representativas dos trabalhadores, o vídeo foi retirado do ar.

Já outra funcionária ressaltou o risco ao qual os fiscais do órgão se expõem ao fazer seu trabalho no Brasil, que é o quarto país do mundo que mais mata defensores ambientais. Nas últimas semanas, repercutiu nacional e internacionalmente o desaparecimento e assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira. Pereira atuava com fiscalização em terras indígenas na Amazônia Legal, mais especificamente no Vale do Javari, onde, em 2019, Maxciel Pereira, outro indigenista da Funai já havia sido assassinado em crime ainda não elucidado pela PF.

"Agora está muito difícil, porque vemos nossos colegas fiscais? Teve gente arriscando a vida fazendo fiscalizações perigosíssimas para lavrar um auto e tentar fazer valer a legislação. É um trabalho muito árduo de analisar tudo, de derrubar a defesa e de contestar com provas para simplesmente uma pessoa [o presidente da instituição] acabar com tudo", apontou ela.

"Conversando com colegas de vários estados, todos estão na mesma coisa, muito desanimados. As pessoas estão simplesmente sem ânimo nenhum para fazer o trabalho delas, porque é como se a gente tivesse dando murro em ponta de faca. A gente está há anos e anos trabalhando com isso para virem agora e falarem que tudo isso que a gente fez não valeu de nada", explicou. "As pessoas que vão ter seus processos anulados vão ter a plena consciência e a plena satisfação de que podem cometer crime ambiental porque nada vai acontecer."