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Polícia x manifestantes: autoridades podem definir onde e quando ocorre um protesto?

Luis Kawaguti e Rafael Barifouse

De São Paulo

14/01/2016 07h57

O governo de São Paulo e o Movimento Passe Livre (MPL) vivem um impasse que se refletiu nos confrontos entre ativistas e policiais na última terça-feira em São Paulo.

Eles discutem se os manifestantes devem ou não comunicar previamente à polícia os trajetos de seus protestos - e se as autoridades públicas têm o direito de definir o local da realização de atos públicos de protesto.

A BBC Brasil ouviu juristas e especialistas para saber o que a lei brasileira diz sobre o assunto (veja, mas abaixo, alguns exemplos de como o assunto é tratado em outros países). Eles defendem diferentes interpretações, mas dizem que os conflitos poderiam ser evitados com mais diálogo entre as partes.

Esse assunto será tema de uma reunião nesta quinta-feira entre o Ministério Público do Estado de São Paulo, a Procuradoria-Geral de Justiça e representantes dos governos estadual e municipal e de movimentos sociais, quando se tentará chegar a um acordo quanto às regras a serem seguidas em manifestações em vias públicas a fim de evitar conflitos como o registrado na última terça-feira.

Na ocasião, o MPL convocou a concentração de uma manifestação para a avenida Paulista. Os ativistas reunidos no local queriam marchar para a Zona Oeste, pela Avenida Rebouças, até o Largo da Batata, no bairro de Pinheiros.

Mas a polícia determinou que o protesto só ocorreria se seguisse na direção oposta, rumo ao Centro da cidade, pela rua da Consolação, até a praça da República.

O impasse acabou em confusão, com manifestantes tentando furar o bloqueio policial e policiais atirando bombas de gás lacrimogêneo e desferindo golpes de cassetete contra participantes do ato.

A ativista Luíze Tavares disse à BBC Brasil que não é uma prática do MPL "sentar com a Polícia Militar para definir um trajeto".

"O papel da polícia é garantir que consigamos fazer o trajeto que escolhermos", disse. "Para isso temos uma concentração e, ao longo do tempo em que estamos ali, negociamos com a polícia, mas o comandante estava irredutível."

Ela acrescenta que "o trajeto imposto era uma emboscada para implodir o ato, pois a polícia estava posicionada em todas as ruas paralelas e havia cercado a praça da República".

Já o secretário de Segurança Pública, Alexandre de Moraes, afirmou em entrevista coletiva não ser "possível que os manifestantes queiram livremente bagunçar a cidade toda".

"Pedimos que eles comuniquem por ofício o traçado, se não quiserem se reunir com a secretaria. Os manifestantes precisam cumprir a Constituição e avisar previamente", disse Moraes.

"Caso contrário, será a secretaria que definirá o trajeto para transferir linhas de ônibus, retirar o lixo da rua e garantir que não haja depredação."

Aviso antecipado

Especialistas afirmam que a Constituição, no inciso XVI do artigo 5º, determina que as autoridades devem ser previamente avisadas sobre protestos por seus organizadores.

O texto constitucional, entretanto, não detalha como deve ocorrer essa notificação e isso não foi regulamentado por uma lei posterior. Então, como deveria ser essa comunicação ao governo?

Para o jurista Maurício Januzzi Santos, presidente da Comissão de Sistema Viário da OAB-SP, os ativistas deveriam se reunir previamente com membros do governo e da prefeitura e discutir trajeto, data e percurso da manifestação.

Já Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da PUC e membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP, diz que o aviso antecipado até pode ser "absolutamente formal", mas não é um pré-requisito.

"Se há uma divulgação ampla e pública, nas redes sociais e na imprensa, as autoridades já estão comunicadas. Isso pode acontecer um dia antes ou até de manhã, se o protesto for à noite."

O diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, Martim de Almeida Sampaio, também afirma que o aviso não precisa ser oficializado.

"Foi amplamente divulgado na imprensa. Então, o poder público foi avisado, sim. Não existe uma regulamentação deste artigo da Constituição, então, não existe uma previsão legal de como fazer este aviso. Não precisa de um protocolo. Entregaria para quem? Falar que faltou aviso é um engodo", diz.

Trajeto

Além de avisar as autoridades sobre a data do protesto, seus organizadores precisam comunicar previamente o trajeto da marcha?  "Sim" - de acordo com os juristas Maurício Januzzi Santos e Roberto Dias.

Dessa forma, as autoridades teriam tempo para avisar a população sobre o ato - para que quem não queira participar possa evitar a região -, desviar linhas de ônibus e garantir a segurança dos manifestantes e pessoas que estejam na área.

"O direito de manifestação (de um grupo de pessoas) não pode esbarrar no direito de ir e vir de outras pessoas", diz Santos.

Já para Sampaio a resposta à pergunta é "não" - o percurso não precisa ser previamente fixado.

"É verdade que uma passeata pode causar transtorno, mas esse é o preço da democracia. Ao mesmo tempo, o aumento (das tarifas de transporte público) é um transtorno para milhões de pessoas", diz.

Autoridades

E as autoridades públicas podem decidir onde uma manifestação deve ou não ocorrer, como promete fazer a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo? Dias e Sampaio acham que não.

Para Dias, a Constituição não especifica se as autoridades podem direcionar a realização de uma manifestação. E, segundo ele, o Supremo Tribunal Federal já tratou de assunto semelhante e decidiu que o poder público não tem poder para definir locais em que protestos não podem ocorrer.

Ele acredita que, se o trajeto da marcha for comunicado previamente, as autoridades deveria respeitar o caminho escolhido pelos organizadores.

De acordo com Sampaio, como as pessoas têm direito de se reunir livremente, "não cabe ao poder público dizer onde vai ocorrer uma manifestação".

"Os manifestantes não terem ido conversar (com as autoridades) pode ter sido uma falha estratégica deles. Mas, caso a reunião tivesse acontecido e não se tivesse chegado a um acordo, como fariam? E mesmo diante do desacordo não se justifica a repressão violenta", afirma ele.

"Se houve algum equívoco do MPL em não ir numa reunião, houve um equívoco muito maior de reprimir o protesto violentamente."

Já a interpretação de Santos é de que, em casos muito específicos, as autoridades poderiam determinar o trajeto de uma manifestação. Ele cita como exemplo o próprio protesto de terça-feira, quando os organizadores do protesto não informaram qual trajeto seguiriam.

Nesse caso específico, para garantir a segurança tanto dos participantes quanto do resto da população, a polícia poderia determinar um trajeto diferente do pretendido pelos organizadores.

"Imagine uma situação, por exemplo, em que grupos opositores estão se manifestando ao mesmo tempo. A polícia não pode deixar que se encontrem. O direito de manifestação não é irrestrito", disse.

Segundo ele, como não há uma regulamentação federal desse assunto, os governos locais podem decidir como tratá-lo.

Então, quem estava certo no protesto de terça-feira, o governo ou os manifestantes?

A resposta é incerta. Mas segundo Roberto Dias, o MPL poderia ter comunicado previamente o trajeto do protesto. Já a polícia não deveria ter tentado impor o caminho alternativo.

"Ninguém está com a razão total", diz ele.

Em outro países

Na Grã-Bretanha, a lei determina que organizadores de passeatas ou manifestações comuniquem a polícia - com um mínimo de seis dias antes do evento planejado - data, horário, rota proposta e nome e endereço dos organizadores.

O pedido pode ser feito por escrito, preenchendo um formulário no site da Scotland Yard (polícia metropolitana de Londres), por exemplo.

A polícia só retorna aos organizadores antes do evento quando vê razões específicas - geralmente ligadas a questões de segurança pública - para solicitar a mudança de local ou da rota.

Um relatório encomendado pelo inspetoria da polícia da Inglaterra e do País de Gales para encontrar formas de reduzir violência em confrontos entre polícia e manifestantes, recomendou a adoção de um cargo criado pela polícia da Suécia: o de dialogue officer, "oficiais de diálogo", policiais treinados especificamente para atuarem como elo de comunicação entre manifestantes e a polícia, reduzindo o risco de tensão e violência.