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As cidades que concentram 80% dos assassinatos cometidos por policiais em SP

Zanone Fraissat/Folhapress
Imagem: Zanone Fraissat/Folhapress

Thiago Guimarães - @thiaguima

Da BBC Brasil, em Londres

14/03/2016 16h33

As mortes praticadas por policiais têm endereço certo no Estado de São Paulo. Em 2014, ano em que o Estado registrou aumento significativo na letalidade policial, apenas 17 das 645 cidades paulistas concentraram 81% desses casos, segundo dados da Polícia Civil.

Em municípios como Osasco e Santo André, na Grande São Paulo, praticamente uma em cada três mortes violentas em 2014 foi resultado da ação da Polícia Militar ou Civil. Na capital, uma em cada quatro mortes violentas foi cometida por policial.

Foram 874 ocorrências no total do Estado, ante 479 em 2013.

Inédito, o detalhamento da letalidade policial por município foi obtido por meio da Lei de Acesso à Informação, em solicitação da pesquisadora Samira Bueno, da Fundação Getúlio Vargas --o governo paulista divulga apenas o total do Estado e da capital.

Os números são baseados nos boletins de ocorrência da Polícia Civil, "matéria-prima" das estatísticas criminais no Estado.

E confirmam uma tendência já apontada pelos dados oficiais no ano passado: em números absolutos, o uso da força letal por policiais explodiu (subiu 82,4% de 2013 para 2014, segundo a base da Polícia Civil) apesar da queda de 3,3% no total de homicídios no mesmo período.

A novidade é a revelação da localização desses casos –a concentração das chamadas MDIP (mortes em decorrência de intervenção policial), a antiga "resistência seguida de morte", jargão técnico usado para classificar essas ocorrências.

"A comparação com dados de homicídios e outros crimes mostra municípios que concentram um número muito alto de mortes pela ação policial, e que isso não se distribui de forma homogênea no Estado e não segue a distribuição dos homicídios”, afirma Bueno, pesquisadora visitante na Universidade de Cambridge (Inglaterra) e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Arco da letalidade

As 17 cidades que registraram quatro em cada cinco mortes por policiais no Estado em 2014 foram São Paulo, Campinas, Guarulhos, Santo André, Diadema, São Bernardo do Campo, Osasco, Jundiaí, Sorocaba, Itaquaquecetuba, Carapicuíba, Ribeirão Preto, São José dos Campos, Guarujá, Mauá, Mogi das Cruzes e Praia Grande.

Juntas, essas cidades representam 49% da população, 51% dos homicídios e 75% dos roubos no período em questão.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirma que as mortes causadas por policiais ocorrem principalmente em decorrência dos roubos.

A pasta diz que investimentos em inteligência e recursos materiais contribuem para que agentes cheguem mais rápido aos locais das ocorrências, motivando confrontos. Diz também que medidas do governo já provocaram queda de 26% na letalidade policial em 2015.

Para a pesquisadora da FGV e de Cambridge, no entanto, é preciso entender o que está acontecendo em cidades como Osasco, onde a taxa de homicídios por 100 mil habitantes caiu 29% de 2013 para 2014 enquanto as mortes causadas por policiais saltaram 265% no período.

Ou Carapicuíba, onde a taxa de homicídios cresceu 9% e a letalidade policial, 297% –a taxa passou de 1 por 100 mil para 4,1. Ou Diadema, que registrou em 2014 uma taxa de mortes por policiais duas vezes maior do que a do Estado (6,3 ante 2).

Em números absolutos, Osasco, por exemplo, registrou 33 mortes em decorrência de ação policial em 2014, número que representou 53% do total de homicídios na cidade naquele ano –vale lembrar que o governo não inclui as mortes causadas por policiais nas estatísticas oficiais de homicídios, pois os números são apresentados em separado.

Osasco foi, em 2015, cenário da maior chacina da história do Estado, com 16 mortes –foram três em Barueri no mesmo dia. Investigações apontaram que PMs de Osasco se uniram a guardas civis de Barueri para vingar a morte de dois colegas dias antes da chacina.

Explicação difícil

"O percentual (de mortes por policiais) é muito alto em algumas localidades. Em Diadema, 31% do total de mortes violentas (em 2014) são de autoria da polícia. Em Osasco, chega a 32%. Santo André, 28%. São Paulo estava em 24%, o que já era tido como escândalo. Houve 84 assassinatos em Diadema em 2014, e 26 foram de autoria da polícia. Você pensa: como assim?", questiona Bueno.

Para a pesquisadora, a explicação para esses números ainda é um "mistério", que só poderia ser desvendado analisando caso a caso.

"O ano de 2014 é um mistério porque teoricamente os homicídios estão caindo no Estado. Em 2012 (quando também houve alta na letalidade policial), estava tudo aumentando e havia um conflito claro entre polícia e crime organizado. Agora, em 2014 você reduz homicídios e aumenta a letalidade --é um ponto fora da curva. Para compreender melhor seria preciso analisar todos os inquéritos e o que ocorreu com cada caso", diz.

Para o governo de São Paulo, as mortes são, sobretudo, consequência de confrontos com bandidos armados durante roubos.

"Os confrontos ocorrem principalmente em decorrência dos roubos, onde os autores estão armados. No período citado pela reportagem (2013 e 2014), as ocorrências de roubos foram responsáveis por 66% dos confrontos. Analisando as ocorrências de roubos e de confrontos, fica bem nítido o quanto estes dois fenômenos caminham juntos", informou a pasta em nota.

"Técnicas de neutralização"

Ao analisar os boletins de ocorrência das chamadas mortes em decorrência de intervenção policial, Samira Bueno identificou o uso de um discurso específico, que, para ela, tende a "aliviar ou reduzir" eventual responsabilidade dos agentes envolvidos e a caracterizar de antemão as vítimas como criminosos. São expressões como "revidou de forma proporcional à injusta agressão" e "estrito cumprimento do dever legal", e descrições das pessoas mortas como "vítima/autor" ou pelas tatuagens e outras características físicas específicas.

"Você tem um discurso padrão adotado que em geral criminaliza a vítima da ação. Para o policial justificar a morte precisa necessariamente colocar a vítima como elemento perigoso. Se um PM envolvido usa esse discurso, ok, a questão é como isso aparece no vocabulário de quem faz o registro do caso. Uma coisa é você pegar a declaração de quem está envolvido na ocorrência. Outra é você, como delegado ou escrivão, citar que tal atitude 'está albergada por verossímil discriminante de legítima defesa'", diz Bueno, para quem tais procedimentos podem estimular impunidade.

"Quando o próprio policial que faz o registro deixa bem claro na narrativa que isso encontra amparo na lei, você compartilha de um valor e de um olhar para o mundo que entende a violência policial como instrumento de controle do crime. No fundo, assim estamos delegando a policiais o direito de decidir quem deve viver e quem deve morrer na ponta do sistema", completa.

Questionada sobre essas narrativas nos boletins de ocorrência, a SSP-SP não comentou.

Estatísticas divergentes

A investigação dos registros da Polícia Civil revelou ainda divergências com as estatísticas que são divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública.

Por exemplo: enquanto houve 479 BOs de mortes por policiais em 2013 e 874 em 2014, os dados da SSP apontaram, respectivamente, 369 e 728 casos.

Para Samira, isso pode estar acontecendo porque essas estatísticas de mortes por policiais têm um fluxo diferente das demais: os boletins de ocorrência são analisados pelas Corregedorias das corporações, que podem reclassificá-los, por exemplo, como homicídios.

Para complicar ainda mais essa contagem, as Corregedorias também publicam suas próprias estatísticas de violência policial, divididas em seis categorias para Polícia Civil e sete para a Militar –um caso em que um policial mata sua mulher fora de serviço, por exemplo, não é classificado como morte em decorrência de intervenção policial, mas "homicídio– fora de serviço".

"Para entender (a divergência) seria preciso fazer uma auditoria dos BOs (de morte em decorrência de intervenção policial) em comparação com todos os BOs de homicídio para entender se os casos de letalidade viraram homicídio (na reclassificação das Corregedorias)", afirma a pesquisadora.

O governo paulista diz usar metodologia da ONU, seguida também por EUA e União Europeia, ao excluir os dados de mortes por policiais na soma por homicídios.
"Portanto a comparação entre letalidade policial e taxa de homicídios ou latrocínios é indevida, pois não há nexo causal entre as modalidades. A morte decorrente de intervenção policial é originada, majoritariamente, em ocorrências de crime contra o patrimônio frustradas pela atuação de agentes de segurança, diferentemente dos homicídios e latrocínios", afirma a pasta.

Sobre ações para reduzir a letalidade policial, a secretaria disse ter adotado, em março de 2015, uma resolução que daria maior eficácia às investigações, por determinar o "inédito comparecimento" de Corregedorias e comandantes de região, além de equipes técnicas, nas cenas dos crimes.

"A iniciativa, que prevê também imediata comunicação ao Ministério Público, foi elogiada no relatório final da CPI sobre homicídios de jovens negros e pobres da Câmara dos Deputados, em julho, que defendeu a adoção da medida em todo o Brasil, como texto legal no Código de Processo Penal. Da mesma maneira, a resolução será adotada pelo Conselho Nacional do Ministério Público", informou a pasta.

O governo paulista disse ainda ser um dos poucos Estados a divulgar dados específicos sobre mortes provocadas por policiais militares e civis fora de serviço, e que os indicadores de criminalidade do Estado são dados considerados de alta qualidade pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Em relação aos policiais civis e militares mortos, foram 90 em 2013 e 91 em 2014.