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Liberdade, igualdade, burquíni: Como traje islâmico virou símbolo de racha na França

Daniela Fernandes - De Paris para a BBC Brasil

26/08/2016 14h01

A proibição do uso do burquíni - traje de banho islâmico que cobre todo o corpo e a cabeça das mulheres - está provocando uma onda de choque na política francesa, com fortes divisões no próprio governo e dentro dos partidos.

Nesta sexta-feira, o Conselho de Estado, a mais alta autoridade administrativa da França, considerou ilegal o decreto "anti-burquíni" aplicado em Villeneuve-Loubet, na Côte d'Azur.

Para os magistrados do órgão, criado por Napoleão Bonaparte, a proibição da vestimenta de banho "viola gravemente e de maneira ilegal as liberdades fundamentais como o direito de ir e vir, a liberdade de consciência e a liberdade pessoal".

A decisão, de última instância, é resultante de uma queixa apresentada por associações de defesa dos direitos humanos e era aguardada com grande expectativa neste momento em que o assunto incendeia o debate político no país.

Mais de 30 cidades litorâneas da França, a maioria governadas pela direita, proibiram o uso do burquíni.

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A primeira a exigir "um traje correto, que respeite a laicidade" foi Nice, onde 86 pessoas morreram em julho em um atentado reivindicado pelo grupo autodenominado Estado Islâmico.

Segundo o Conselho de Estado - Corte que aconselha o presidente e tem como função jurídica de analisar decretos de poderes executivos -, o argumento da "laicidade" evocado por alguns prefeitos não pode ser utilizado para proibir o traje.

A autoridade administrativa afirma que a interdição teria de ser baseada em "riscos concretos" contra a ordem pública.

Teoricamente, nada obriga os prefeitos das demais cidades a suspender imediatamente os decretos que proíbem o uso do burquíni. Mas a decisão do Conselho de Estado tem a força de um princípio jurídico. Na prática, porém, basta que associações contestem decretos aplicados em outras cidades para que eles sejam suspensos - o que pode ocorrer nos próximos dias.

"Provocação"

A polêmica sobre o burquíni ganhou força no país e movimenta a batalha para as eleições presidenciais no próximo ano, colocando temas como a identidade nacional, imigração e o islã no centro das discussões.

O primeiro-ministro francês, o socialista Manuel Valls, voltou a defender na quinta-feira a proibição do burquíni nas praias como forma de manter a ordem pública no atual contexto de ameaça terrorista, provocando críticas de políticos de seu partido.

Para Valls, o burquíni é uma forma de "proselitismo e de provocação". Segundo ele, o traje de banho é "um sinal de reivindicação de um islamismo político que visa provocar um retrocesso nos valores" do país.

"É preciso lutar contra o islamismo radical que almeja ocupar o espaço público porque isso é uma ideologia", completou Valls.

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A ministra da Educação, Najat Vallaud-Belkacem, nascida no Marrocos, trocou farpas com Valls na quinta ao declarar que a proibição do burquíni levanta a questão das liberdades individuais na França.

"Onde vamos parar? Isso libera o discurso racista", acrescentou Belkacem.

A ministra da Saúde e dos Assuntos Sociais, Marisol Touraine, filha do sociólogo Alain Touraine, também se diz contrária à proibição do burquíni e denuncia uma "estigmatização perigosa dos muçulmanos".

"Ver mulheres se banhando totalmente vestidas em praias francesas no século 20 é perturbador para a feminista que sou. Mas a laicidade não deve ser uma recusa da religião: é uma garantia da liberdade individual e coletiva", afirmou Touraine.

Os opositores à proibição do burquíni alegam que a palavra "liberdade" é uma das bandeiras da França, como igualdade e fraternidade. Mas a onda de atentados no país, que matou mais de 230 pessoas desde 2015, pode ter mudado a visão de muitos franceses em relação às questões do islã - e o burquíni se tornou um símbolo dessas tensões.

Pesquisas

A hashtag "BurkiniBan (veto ao burquíni) já foi usada dezenas de milhares de vezes desde o início da polêmica, para criticar ou defender o veto.

E, segundo uma pesquisa do Instituto Ifop para o jornal Le Figaro, divulgada na quarta-feira, quase dois terços dos franceses (64%) são contrários ao uso do burquíni. Apenas 6% se dizem favoráveis e o restante (30%) se diz "indiferente".

A França possui a maior comunidade muçulmana na Europa, estimada em cerca de 10% de sua população, e já promulgou, com base na "lei da laicidade", de 1905, leis proibindo o uso do véu islâmico nas escolas e do niqab (véu que deixa só os olhos à mostra) em espaços públicos e também rezas nas ruas.

Nos últimos dias, vários vídeos, fotos e relatos de mulheres usando roupas comuns nas praias e multadas por policiais circularam nas redes sociais, provocando reações de alguns membros da esquerda, que se disseram "indignados".

As imagens de uma mulher de meia-idade com turbante na praia de Nice tendo de retirar sua camiseta de manga comprida por ordem de quatro policiais armados ganhou repercussão internacional nesta semana.

Na Córsega, um homem chegou a ser ferido com um arpão em uma briga na praia motivada pela presença de mulheres usando burquínis.

A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, afirmou que é preciso por fim à "histeria mediática e política" em torno da questão do burquíni.

"França fraca"

Apesar do Conselho de Estado ter se pronunciado contra a proibição do burquíni, a questão do islã na sociedade francesa continuará tendo destaque no cenário político do país nos próximos meses.

O ex-presidente Nicolas Sarkozy, do partido Os Republicanos (antigo UMP), que declarou nesta semana sua pré-candidatura às eleições presidenciais, em abril de 2017, afirma que "o burquíni é uma provocação de um islã político".

Segundo Sarkozy, que também enfrenta divisões em seu campo sobre a questão, "usar burquíni é um ato político, militante. As mulheres que usam esse traje testam a resistência da República. Não fazer nada é permitir pensar que a França é fraca", diz ele, que defende uma lei nacional proibindo o uso do traje.

O programa de Sarkozy, anunciado no livro Tudo para a França, publicado nesta semana, prevê estender a proibição do uso do véu islâmico nas universidades, administrações públicas e empresas, além do reforço de medidas para reduzir a imigração.

Em seu livro, Sarkozy diz que a França "não tem dificuldades com religiões" e que "é com uma delas que não fez o trabalho necessário e inevitável de integração (que haveria dificuldades)".

Sarkozy vem subindo nas pesquisas eleitorais. Mas pela primeira vez haverá primárias de seu partido, em novembro. Seu principal rival, o ex-primeiro-ministro e ex-chanceler Alain Juppé, que lidera as pesquisas, tem uma visão mais branda do assunto ao defender a "identidade (nacional) feliz, que respeite a diversidade, sem excluir e rejeitar os outros".

Feministas divididas

Até mesmo as feministas, majoritariamente contrárias ao véu islâmico, estão divididas em relação à proibição do burquíni: algumas associações dizem que o traje é um retrocesso para as mulheres e outras afirmam que elas têm o direito de se vestir como quiserem.

"É um traje que estigmatiza a mulher como objeto sexual. Não entendo as feministas que não se revoltam contra essa roupa que existe para esconder as mulheres", diz Yael Mellul, presidente da associação "Mulher Livre".

Já o grupo "Ouse o Feminismo" criticou os decretos de proibição, afirmando que as mulheres muçulmanas são "as grandes perdedoras e vítimas de humilhações" nas praias do país.