Jovens denunciam tortura e violência sexual em repressão a protesto na Venezuela
Eles não se conheciam. E nunca poderiam imaginar que viveriam juntos uma das experiências mais traumáticas de suas vidas.
De acordo com processos judiciais, 10 jovens foram presos no dia 15 de maio deste ano no Estado de Aragua, ao norte da Venezuela, próximo a uma região onde eram realizados protestos contra o governo do presidente Nicolás Maduro.
"Eles foram colocados em fila e forçados a tocar as partes íntimas uns dos outros e a manipular seus órgãos genitais. Davam murros, chutes e golpes com capacetes de proteção usados pela polícia. Foram forçados a dançar Macarena. Aqueles que se recusaram receberam mais golpes. Mas não foi apenas isso que fizeram com eles... ", disse à BBC Martín Ríos, um dos advogados dos jovens.
Segundo ele, essas cenas foram protagonizadas na sede da Polícia Nacional Bolivariana (PNB) em Aragua.
A mais recente onda de manifestações contra o presidente começou há quase três meses. E, até 15 de junho, foram registradas mais de 3.200 prisões, de acordo com o Foro Penal, ONG venezuelana que oferece assistência gratuita aos presos.
Durante essas prisões, houve diversas denúncias de tortura, agressão, abuso e violação dos direitos humanos e da lei vigente por parte das forças policiais do Estado.
Os excessos - muitos dos quais registrados em fotos e vídeos - foram condenados inclusive pelo ministro da Defesa, Vladimir Padrino López.
"Não quero ver nenhum policial cometendo atrocidades na rua. Os oficiais que não tiverem um comportamento condizente com os princípios da instituição devem responder por seus atos", disse López no dia 6 de junho.
A BBC entrou em contato em meados de maio com o Ministério Público (MP) e a Polícia Nacional Bolivariana (PNB), por telefone e por e-mail, para falar sobre as denúncias.
O MP informou que, no momento, não estava concedendo entrevistas. A PNB, por sua vez, não tinha respondido até o momento da publicação desta reportagem.
Violência sexual
"O que está acontecendo na Venezuela não tem precedentes na história recente do país, é muito preocupante", disse à BBC Erika Guevara, diretora da Anistia Internacional para as Américas.
"É uma das piores crises de violação dos direitos humanos no continente, devido à gravidade dos fatos, à sistemática dos mesmos, à falta de independência dos Poderes e à impunidade que existe", acrescenta.
Os 10 jovens foram separados na prisão. "E com um deles (cuja identidade será preservada) fizeram algo absurdo e dantesco", disse Ríos.
Segundo ele, o jovem foi obrigado a se ajoelhar e teve os braços imobilizados, amarrados com um cabo na altura dos pulsos.
"Colocaram gás de pimenta e um capuz na cabeça dele. Em seguida, baixaram seu short e introduziram um tubo no seu reto", conta o advogado.
De acordo com Ríos, os outros presos não presenciaram o ato, mas de acordo com seus testemunhos, ouviram-no gritar, chorar e pedir ajuda.
O caso do jovem, de 19 anos, está sendo investigado pelo Ministério Público.
A BBC teve acesso ao processo em que o episódio é relatado e constatou a existência de um documento no qual o juiz do caso pediu que a vítima fosse submetida com urgência a um exame médico.
Ríos garante que os exames confirmaram a violação. E explica que os resultados foram enviados em sigilo ao tribunal e constam no processo e investigações do caso.
"Em casos de tortura, as denúncias feitas nas atas oficiais são provas conclusivas", diz à BBC Alfredo Romero, diretor da ONG Foro Penal.
Liliana Ortega, diretora do Comitê de Familiares de Vítimas (Cofavic), concorda:
"Esse crime procura não deixar rastros. Oficiais de regimes ditatoriais foram condenados, embora nenhuma evidência tenha sido coletada quando os atos ocorreram. A responsabilidade de provar o que aconteceu - ou não - cabe ao Estado, segundo termos das convenções internacionais para investigar casos de tortura, como o Protocolo de Istambul", afirma Ortega.
O caso do jovem detido em Aragua não é isolado.
"Em 70% dos casos registrados, houve algum tipo de abuso sexual: os detentos ficaram nus, foram tocados, obrigado a ficar em posições mostrando suas partes íntimas e alguns foram vítimas de estupro", diz à BBC o advogado Tamara Suju, diretor da Casla, centro de estudos para a América Latina com sede na República Tcheca, que analisa as democracias na região.
Suju entrou com ação no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, contra o governo venezuelano, acusado de cometer atos de tortura sistemática, o que constitui crime contra a humanidade.
Golpes
Outro aspecto que expõe os abusos a que são submetidos os presos detidos nas manifestações é o uso excessivo da força por parte da polícia no momento da prisão. Não são poucos os casos registrados.
"Senti o primeiro golpe na cabeça, me deram uma coronhada com um rifle," disse à BBC Carmen Ángel, de 21 anos, que mora em Barinas.
"Eles começaram a puxar meu cabelo e chutar meus joelhos, enquanto batiam na minha cabeça. Foi uma sequência de golpes. Uma das mulheres da polícia me deu um soco no rosto. Eu gritava e chorava ... tive tanto medo que me mijei", completou.
Ela conta que sangrava muito e, por isso, foi encaminhada ao hospital. Chegou algemada e permaneceu assim o tempo todo. Os policiais disseram aos médicos que as lesões foram resultado de uma queda.
"Me advertiram para não falar nada, mas pedi ajuda com o olhar e o médico percebeu. Se não fosse pela equipe médica, que impediu a polícia de me levar do hospital, a história teria sido diferente", afirmou.
Como consequência do espancamento, que aconteceu no dia 11 de abril, a jovem teve fraturas nos dedos e vários ferimentos na cabeça, que precisaram de sutura. Ela sofreu vertigem durante um mês e, quando ocorreu o incidente, ela estava tão tonta que não conseguia ficar em pé sem segurar na parede.
Munição para caçar animais
Andrés, estudante universitário de 21 anos, foi encaminhado ao hospital no dia 18 de maio com nove projéteis de chumbo em suas costas. Os médicos foram incapazes de extrair as balas, usadas para caçar animais, porque estavam entranhadas dentro do músculo do rapaz.
Segundo ele, os disparos foram feitos à queima-roupa em confronto com a Guarda Nacional, braço das Forças Armadas da Venezuela, no norte de Caracas.
Já estava escuro, eram quase 6 horas da tarde, quando Andrés saiu de casa para acompanhar um protesto na vizinhança. Ele se recorda que lançaram bombas de gás lacrimogêneo e começaram a aparecer motos da Guarda Nacional por toda parte.
"As pessoas correram loucamente. Me vi encurralado por um paredão de guardas, que saíram de suas motos. Levantei as mãos e disse a eles que estava desarmado. Acho que eram oito no total. Um deles apontou a espingarda para mim, me virei e senti o tiro", declarou.
"Eles riam e gritavam: 'Chora, seu maricas, você está se borrando de medo, vamos te matar'. Fiquei assustado, o medo tomou conta de mim. Mandaram que eu corresse, as motos começaram a me perseguir, me pegaram e me deram uma coronhada com o rifle. Eu ouvia eles dizerem: 'Atirem'", recorda-se.
Andrés conseguiu escapar com a ajuda de uma mulher que o levou de moto a uma clínica da região.
"Eles tiveram que drenar o sangue dos buracos de bala e, para fazer isso, pressionavam as feridas. Não há palavras para descrever a dor que eu senti", contou.
O calvário
Há diversas denúncias de violações e ações ilegais e de diferentes naturezas.
"A dificuldade de acesso à informação na Venezuela é extrema. As autoridades não permitem, com frequência, contato com os detidos. Nem mesmo familiares podem vê-los", afirma Erika Guevara, diretora da Anistia Internacional.
A lei venezuelana garante aos presos, no entanto, o direito de se comunicar com advogados e a família.
A falta de informação foi uma das várias irregularidades denunciadas pelos advogados de Sergio Contreras, ativista social e professor da Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas.
Ele foi preso em uma região central da capital, quando, por meio de um megafone, pediu à Polícia Nacional Bolivariana que parasse de lançar bombas de gás lacrimogêneo, uma vez que havia crianças e idosos no local.
"Foi aí que começou o calvário. Nós não sabíamos de nada, para onde ele tinha sido levado ou quando seria a audiência. Tivemos que adivinhar, fomos de um centro de detenção para outro. Eles fazem isso para cansar você, para que se sinta mal", diz à BBC Mariana Barrios, mulher de Contreras.
Além disso, o professor sofre de epilepsia e precisava tomar medicamentos.
"Ele não pode parar de tomar os comprimidos um dia sequer, porque se não tomar, pode ter uma convulsão. Não me deixaram vê-lo por mais de uma semana, sem saber se ele tinha recebido a medicação. Nosso filho chorou muito. Foi um pesadelo, não tenho palavras para descrever o que passamos. É tão injusto, ele ajuda todo mundo... ", desabafa Barrios com a voz embargada.
O caso de Contreras também ilustra uma estratégia que se repete com bastante frequência: civis julgados por tribunais militares e acusados de traição à pátria e rebelião.
Contreras foi enviado para Ramo Verde, prisão militar em que o líder da oposição Leopoldo López está detido.
A ONG Foro Penal registrou dezenas de casos como esse. Durante o processo de investigação judicial em tribunais militares, muitos são enviados para prisões com criminosos perigosos que já foram condenados.
Muito medo
Existe um elemento recorrente nos relatos daqueles que denunciaram abusos na prisão.
"Quando os manifestantes se retiram, começam a ser perseguidos. Além disso, muitos dos excessos ocorrem quando a pessoa já foi detida. E esse é um dos elementos fundamentais do crime de tortura, porque a pessoa já estava sob o controle da autoridade", explica Ortega, diretora da Cofavic.
"O Ministério Público tem atuado dentro do marco legal, mas as autoridades policiais e alguns tribunais desconhecem, ignoram e vão contra essas resoluções", diz Alfredo Romero, diretor do Foro Penal.
Um dos vários casos atendidos pela organização, que ilustra esse ponto, é o de Fernando Caballero.
"Ele foi preso e transferido para a Corporação de Investigações Científicas Penais e Criminais. Conseguiu liberdade por meio de uma medida cautelar, que previa dois fiadores, que a família conseguiu, mas o juiz designado para o caso deixou de trabalhar sem dar explicação", contou Romero.
Ninguém substituiu o juiz, que não finalizou o procedimento de verificação dos fiadores. Diante deste cenário, Caballero permaneceu atrás das grades.
Violações graves e opositores em risco
Os casos investigados por Tamara Suju e apresentados ao Tribunal Penal Internacional incluem denúncias de tortura a opositores do governo Nicolás Maduro, feitas em 2014, durante prisões efetuadas em onda de manifestações semelhante a que acontece agora.
Os casos foram incorporados a um relatório da Comissão contra a Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU) após a realização de uma análise sobre o respeito aos direitos humanos no país.
Diante dos resultados, os especialistas expressaram preocupação com as denúncias de prisão arbitrárias e de tortura a manifestantes na Venezuela.
"A Comissão recebeu relatos de espancamentos, choques elétricos, queimaduras, asfixia, agressões sexuais e ameaças contra manifestantes detidos", diz à BBC Jens Modvig, presidente da Comissão contra a Tortura da ONU e diretor-médico da DIGNITY, instituto dinamarquês contra a tortura.
"Com base na informação recebida, há fortes indícios de que o governo violou gravemente os direitos humanos daqueles que se opõem (...)", acrescenta.
"A Comissão não recebeu qualquer informação recente sobre a situação, mas tampouco alguma informação que indique que houve mudanças", completa.
"Isso significa dizer que o mais provável é que os detidos, especialmente adversários políticos, estão sob risco constante de serem torturados", conclui Modvig.
Todos os entrevistados são unânimes em afirmar que ficaram impressionados com as expressões de raiva, ódio e violência no tratamento que receberam. Eles relatam "terror psicológico" e um medo absoluto que ainda se manifesta em sonhos e pensamentos involuntários.
"Você sente que não vale nada. Pensa que eles podem te matar, desaparecer com você e fazer literalmente o que quiserem... Eu me sentia tão indefesa e vulnerável. É horrível, não desejo a ninguém", diz Carmen Ángel, a estudante presa e hospitalizada em Barinas.
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