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O líder africano que obrigou milhares de pessoas a se submeterem a cura falsa da Aids

23/01/2018 17h19

O ex-presidente de Gâmbia Yahya Jammeh - que deixou o país um ano atrás, após duas décadas no poder - foi acusado de muitos crimes. Um dos mais insólitos, entretanto, foi obrigar milhares de pessoas com HIV a se submeterem a tratamentos com uma mistura de ervas que ele mesmo inventou. Um número ainda desconhecido de vítimas morreu em decorrência desse episódio.

Como primeira pessoa no país a se declarar publicamente soropositiva, Lamin Ceesay pensou que estivesse fazendo a coisa certa. Isso foi no ano 2000, quando muitos sabiam pouco sobre a doença e pessoas infectadas tinham que lidar com o estigma e o preconceito.

No Dia Mundial da Luta contra a Aids daquele ano Ceesay tomou coragem para ir a público e participou de uma marcha promovida por uma ONG. Isso lhe rendeu o respeito de ativistas da saúde em todo o mundo.

Mas, alguns anos depois, também chamou a atenção de Jammeh, então presidente.

"Cura milagrosa"

No início de 2007, Jammeh declarou ter inventado sua própria cura milagrosa para a doença, usando uma mistura de ervas medicinais e técnicas de cura espiritual. Ainda mais bizarramente, ele disse que a cura funcionava apenas às segundas e quintas-feiras.

Não surpreendentemente, a história foi denunciada como charlatanismo do tipo mais perigoso por especialistas em saúde de todo o mundo.

Na própria Gâmbia, entretanto, dizer ao presidente que ele estava falando absurdos poderia levar à prisão.

Foi nesse contexto que, quando chegou um convite à instituição beneficente de HIV de Ceesays pedindo 10 voluntários para serem as primeiras cobaias no programa de seis meses de tratamento do presidente, ele decidiu que essa seria uma proposta que não poderia recusar.

"Eu pensei em simplesmente enviar outras pessoas para o programa, mas temi que se eu mesmo não fosse, poderia ter problemas", disse ele. "Também pensei, 'por que não?' Isso não pode fazer nenhum mal".

Era aí que Ceesay estava enganado. Somente quando chegou à clínica improvisada do presidente, na sede do governo, as regras básicas do programa foram explicadas. Não poderia fumar, beber chá ou café. Não poderia fazer sexo. E, fundamentalmente, não poderia tomar remédios convencionais - incluindo as drogas anti-retrovirais dadas a ele por seus médicos.

Não havia como recuar. Os guarda-costas armados de Jammeh estavam estacionados nas portas da clínica.

Pelos próximos seis meses, disseram eles, nenhum paciente seria autorizado a sair sem sua permissão.

Tratamento

E então o tratamento começou.

A cada manhã, o presidente esfregaria uma pasta verde misteriosa no corpo dos pacientes, enquanto entoava preces do Corão. Depois, duas vezes ao dia, eles beberiam uma espécie de poção amarela de ervas armazenada em garrafas. Jammeh se negou a dizer o que havia ali dentro, apesar de ter sido dito que se realmente tivesse encontrado a cura do HIV poderia deixar a Gâmbia rica da noite para o dia.

O que quer que fosse, aquilo provocou em Ceesay diarreias constantes. Ele também pegou tuberculose de outro paciente, e finalmente ficou tão fraco que teve de ser transferido para um hospital.

Exames mostraram que sua carga viral de HIV havia disparado, e ele voltou então a tomar os anti-retrovirais, até então proibidos por causa do novo tratamento.

Ceesay estava entre os sortudos. Sua esposa, que também era soropositiva, morreu durante o programa de ervas - assim como, diz ele, aconteceu com a maioria dos pacientes. "Como veterano no grupo do HIV, eu estava em funerais o tempo todo", diz ele.

Essa, no entanto, não era a imagem promovida pelo presidente Jammeh, que pressionou os pacientes a aparecerem na televisão estatal gambiana para alardear o sucesso do programa. Entre eles estava Ousman Sowe, que possuía diploma em saúde pública da Universidade britânica de Leeds e acabou recrutado por Jammeh como porta-voz, para tentar afastar dúvidas de jornalistas estrangeiros incrédulos.

A expectativa era dar alguma seriedade acadêmica ao programa.

Sowe chegou a dizer à BBC na época que tinha "100% de confiança" na cura. Mas, de fato, desistir de seus anti-retrovirais o deixara tão fraco que mal conseguia subir um lance de escadas.

"Como uma pessoa instruída, eu sabia que tudo aquilo era idiotice", lembra Sowe. "Mas eu não podia dizer nada contra isso, mesmo que as pessoas estivessem morrendo".

Sowe e seus colegas pacientes estão agora trabalhando com o Aids-Free World, um grupo ativista dos Estados Unidos que quer que sejam apresentadas acusações contra Jammeh por causa do programa. O grupo afirma que esse é, provavelmente, um dos maiores escândalos de direitos humanos cometidos pelo regime dele.

Além disso, diferente de suas prisões secretas e câmaras de tortura, o programa era realizado abertamente para o mundo ver. No entanto, Jammeh não estava tão inclinado a ter seus atos examinados. Um oficial de saúde da ONU que levantou objeções foi expulso da Gâmbia logo no início.

No final, acredita-se que 9 mil pessoas tenham sido tratadas. Entretanto, como Jammeh manteve todos os registros clínicos em sigilo, ninguém definiu ainda quantas delas morreram. Uma coisa parece certa agora, porém - o único "milagre" de sua cura foi que alguém sobreviveu a ela.