Igreja que carregou título de catedral de São Paulo por duas décadas luta para escapar da ruína
Basílica de Nossa Senhora da Conceição, no centro de São Paulo, sofre com problemas estruturais e precisa de R$ 31 milhões para restaurar acervo artístico de um século.
Quando o sino principal da Basílica Nossa Senhora da Conceição baladou pela última vez, a igreja que encabeça a rua Santa Ifigênia ainda conseguia ser uma das construções mais imponentes do centro histórico de São Paulo. O secretário paroquial Paulo Fernandes não sabe precisar quando isso ocorreu, mas estima que tenha sido na década de 1980, em um processo de degradação que começou quando o templo entregou o título de catedral da cidade para a famosa igreja da Sé, também na região central, 30 anos antes.
Os quatro sinos não funcionam porque estão com os badalos, as correntes e os motores danificados. Segundo o padre atual, Antônio Ruy Barbosa Mendes de Moraes, eles também não podem ser tocados porque suas vibrações constantes danificariam a estrutura da torre direita da igreja, que pode ser vista do viaduto Santa Ifigênia, um dos cartões-postais da metrópole.
A ausência deles não é novidade: no século 19, no antigo templo, os moradores do bairro de Santa Ifigênia apelidaram-na de "igreja dos sinos quebrados" por motivos semelhantes.
Os sinos que não tocam mais são apenas uma das lamentações do pároco diante das condições atuais de uma das principais igrejas da Arquidiocese de São Paulo.
Há problemas estruturais no forro e nas cúpulas que conformam o telhado, cujas infiltrações ameaçam as obras e decorações de importantes artistas brasileiros, como Benedito Calixto (1853-1927) e os irmãos Enrico (1905-1973) e Fernando Bastiglia (1913-2001) na nave e no altar da igreja, além de europeus, como o francês Henri Bernard (1868-1941) e o italiano Gino Catani (1879-1944).
Falta dinheiro também para restaurar os vitrais e as grandes rosáceas das laterais trazidas de Veneza, na Itália, no início do século 20, assim como os pára-ventos das portas principais, que reproduzem as janelas da Sainte-Chapelle, em Paris, na França. "Essa igreja possui um dos acervos mais ricos de São Paulo em obras de arte e do Brasil. Isso se não for o mais rico", explica o arquiteto Claudemir Ignácio, especialista em restaurações de templos católicos.
"Capitanear uma obra como essa e capitalizar os recursos para a restauração não é fácil. Seja por conta da instabilidade socioeconômica que estamos vivendo, seja pelas exigências ainda mais criteriosas para qualquer patrocínio do governo", lamenta o padre Antônio. "Tanto em âmbito federal, estadual ou municipal, as verbas para a educação e a cultura já estão bem escassas - e essa igreja faz parte de um acervo cultural, né?", questiona.
Três séculos, três templos
Inaugurado em 1912, o templo atual é apenas o terceiro construído desde o século 18 na mesma esquina entre a rua Santa Ifigênia e a avenida Cásper Líbero.
A primeira capela foi erguida ali em 1774 por africanos escravizados, mas foi destruída ainda no final daquele século para dar lugar a uma igreja maior - a primeira missa nela foi rezada por volta de 1805. Ao contrário da situação atual, os sinos das torres eram tão badalados que a Câmara chegou a enviar uma representação ao pároco da época lhe pedindo para "domar" seus sineiros.
Em 1904, o arquiteto alemão Johann Lorenz Madein - o mesmo que fez os traçados do Mosteiro de São Bento, também no centro de São Paulo - foi designado pela Arquidiocese para planejar uma terceira igreja que desse a dimensão arquitetônica que ela já tinha enquanto templo religioso para a cidade: influenciado pelos templos românicos alemães do início do século 20 e pelo movimento batizado na Europa de "gótico tardio", ele tirou inspiração especialmente na basílica Kaiser Wilhelm 1º, construída em Berlim, na Alemanha, em 1890, e destruída durante a Segunda Guerra Mundial.
"Foi quando ela deixou de ser uma igreja paupérrima para se transformar definitivamente em um esplendor. Como os vizinhos eram ricos, todos os materiais que eles ajudaram a comprar vieram do exterior: as telhas eram espanholas, a estrutura metálica das torres foi trazida da Inglaterra, o órgão alemão, os vitrais italianos, os pára-ventos franceses...", enumera Regina Sasso, responsável pelo primeiro projeto de restauração do atual edifício.
De 1930 a 1954, ela foi a catedral provisória de São Paulo enquanto a igreja da Sé, no marco zero da metrópole, era construída. No final dos anos 1950, como reconhecimento pelos serviços prestados neste período, o Papa Pio 12 a elevou para a categoria de basílica.
Os riscos atuais
Em 2016, a administração precisou fazer reparos de emergência no teto para conter os vazamentos e evitar que pedaços de concreto se descolassem e caíssem na igreja. "A gente temia que, por causa da trepidação do metrô, que passa por baixo, algo se soltasse e machucasse alguém na parte de baixo. Não tivemos outra solução a não ser jogar argamassa em cima das pinturas", afirma o secretário paroquial Paulo Fernandes, se referindo às marcas de cimento que agora cobrem boa parte do teto do coro e, por consequência, algumas obras de arte.
As infiltrações, porém, continuam a pôr em risco as telas expostas na igreja: em Adoração dos Reis Magos, pintada por Henri Bernard em 1923, por exemplo, é possível ver bolhas úmidas sobre boa parte da obra. Do outro lado, a água da parede compromete outro quadro dele: Bodas de Canaã, colocada ali naquele mesmo ano.
A cúpula principal, por sua vez, divide-se entre as cores das folhagens tropicais e dos anjos do afresco feito por Gino Catani durante toda a década de 1910 e as marcas de cal que taparam recentemente os buracos decorrentes das chuvas - Catani foi o mentor do renomado artista brasileiro Túlio Mugnaini (1895-1975).
Segundo Fernandes, a igreja ainda teme pelos dois maiores quadros feitos por Benedito Calixto nas laterais do altar da basílica: Anunciação de Maria e A Piedade, de 1914 - o pintor já tinha feito A Ceia de Emaús em 1912 para adornar a Capela do Santíssimo Sacramento, na parte esquerda da nave do templo principal.
"O problema é que o restauro de qualquer parte da igreja é oneroso, mas hoje não existe incentivo nenhum para esse trabalho. Eu cheguei a falar com o cardeal de São Paulo algum tempo atrás, mas ele respondeu que, se ajudasse a basílica, teria que fazer o mesmo com várias outras da cidade", lamenta Regina Sasso.
Segundo ela, o templo também enfrenta dificuldades para captar os recursos necessários à revitalização por causa de sua localização: todos os dias, pessoas de várias partes do Brasil lotam a rua Santa Ifigênia para comprar produtos elétricos e eletrônicos nas lojas, tendas e nas mãos de ambulantes que trabalham ali - uma espécie de rua 25 de Março de aparelhos diversos.
Além disso, o endereço faz parte da região chamada de "Cracolândia", por causa dos usuários de crack que se concentram pelas ruas do centro da metrópole.
"Os possíveis patrocinadores associam sempre a igreja, que é de Nossa Senhora das Dores, à rua Santa Ifigênia. Isso já impediu muitos possíveis patrocínios de bancos e de instituições que pudessem bancar os milhões envolvidos nos custos de restauração", afirma Sasso.
Furtos, assaltos e tubos roubados
De acordo com Paulo Fernandes, secretário paroquial, os constantes furtos são, de fato, um problema. Há oito anos, um homem entrou na igreja, atravessou todo o átrio, invadiu a barreira de oratórios e colocou a custódia - peça utilizada nas missas para guardar as hóstias - que estava no altar dentro da sua mochila.
Quando o único segurança viu a ação, não dava mais tempo de alcançá-lo. Depois disso, a administração paroquial resolveu enviar a custódia original, feita em ouro, para o Museu de Arte Sacra de São Paulo.
Tentativas de pegar as notas de dinheiro que fiéis depositam nos cofres abaixo dos quatro altares nas laterais do templo também são comuns. A Capela do Santíssimo Sacramento, anexa ao templo principal, precisa ser trancada durante os dias ordinários: além das várias vezes em que tentaram levar as imagens e o sacrário banhados em ouro, era comum encontrar fezes e xixi ali ao final dos dias.
Segundo Fernandes, não é raro flagrar pessoas defecando ou urinando dentro da nave da igreja - uma das últimas da cidade a fechar suas portas, às 19h.
Os assaltos, porém, não se limitam às ações ocasionais. Na década de 1960, a administração paroquial contratou uma empresa alemã para restaurar o órgão de 3.250 tubos fabricado em 1922 pela Casa Walcker Orgelbau, de Ludwigsburg, na Alemanha, especialmente para a igreja paulistana.
Durante o período dos trabalhos, o pároco da época notou que, conforme o tempo passava, menos peças podiam ser vistas durante as missas. Então, quando se deu conta, a empresa havia já levado quase todo o órgão de volta ao país europeu.
"Os 10% dos tubos que sobraram são os que estão aí hoje", volta a lamentar-se Fernandes. No final dos anos 1970, o padre da época conseguiu recuperar uma pequena porção das peças quebradas, com as quais montou o pequeno órgão secundário, localizado hoje atrás do altar.
Patrimônio histórico
A Basílica Nossa Senhora da Conceição de Santa Ifigênia foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) do Estado em 1986, mas o colegiado do órgão pediu revisão da decisão em 2009, alegando a necessidade de análise para estender a proteção patrimonial a outros imóveis do bairro histórico.
Enquanto os estudos não se encerram, a igreja fica sob preservação do Condephaat. O templo permanece tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) desde 1992.
Em 2009, o então padre Anízio Ferreira iniciou uma campanha para pedir doações de empresas, dos vizinhos e dos fiéis para reformar toda a igreja. Naquele ano, ele ouviu de uma empresa especializada que o restauro custaria R$ 18 milhões (R$ 31 milhões corrigidos para abril de 2019).
Só a reforma das cúpulas do telhado, que significaria o fim das infiltrações, está estimada hoje em R$ 5 milhões. Segundo o padre Antônio, juntando todas as fontes mensais de receitas, a igreja soma uma renda anual de R$ 80 mil - valor que pode chegar a R$ 120 mil com os lucros das festas.
"Hoje nós estamos buscamos apoio dos comerciantes do bairro da Santa Ifigênia, além de parcerias com empresas e bancos. Sabemos que alguns desses segmentos fazem esse tipo de acordo. Mas eu sempre uso um adágio: cada coisa no seu tempo e cada tempo com suas coisas", reflete o padre.
Enquanto os recursos para os restauros não chegam, ele gosta de sonhar. "Quem sabe se um dia a gente recebe o título de patrimônio da humanidade? Imagina, meu filho?".
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