Por que o decreto de armas de Bolsonaro pode acabar sendo derrubado
Se o objetivo é mudar a lei atual e ampliar o acesso a armas no Brasil, como o presidente prometeu durante a campanha, o caminho correto seria enviar um projeto ao Legislativo e articular com o Congresso para que ele fosse aprovado, dizem constitucionalistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Depois de muito se discutir a questão do armamento da população no Brasil, o novo decreto do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que facilita o porte de armas pode acabar sendo derrubado não por questões ligadas à segurança ou violência, mas por uma situação jurídica.
O decreto, assinado pelo presidente no dia 7 de maio, amplia em muito as atuais condições que autorizam o porte de armas. As medidas incluídas no texto facilitam que certos profissionais - como advogados, caminhoneiros e políticos eleitos, por exemplo - portem armas de fogo carregadas.
O texto também aumenta o número de munições que podem ser compradas por cidadãos que tenham autorização.
Mas, menos de uma semana depois, um parecer da Câmara dos Deputados disse que o decreto contém ilegalidades e o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa uma ação que questiona sua constitucionalidade.
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Nesta sexta-feira (10), a ministra Rosa Weber, do STF, resolveu dar oportunidade para o presidente explicar o decreto antes de decidir sobre a ação que pede a anulação do documento, pedida pela Rede Sustentabilidade. Ela também vai ouvir o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e a Advocacia-Geral da União (AGU).
Ou seja, o decreto está sob questionamento em duas frentes: ele pode acabar sendo suspenso total ou parcialmente pelo STF, ou pode ser derrubado pelo Congresso Nacional, que também tem instrumentos legais para fazê-lo.
Argumentos técnicos
Mas afinal, quais seriam os motivos para isso?
A ação da Rede diz que o decreto é inconstitucional porque o presidente extrapolou seus poderes ao tentar contrariar as leis já existentes. Essa é também a conclusão do parecer da Câmara, que destaca diversas ilegalidades no decreto. Especialistas em direito constitucional ouvidos pela BBC News Brasil concordam com essas avaliações.
"Não há dúvida nenhuma de que o decreto é escancaradamente ilegal. E por ser ilegal ele é inconstitucional", diz Marcos Perez, professor da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).
Ele explica: o Brasil já possui uma lei sobre armamento e o presidente tem o poder de fazer um decreto para regulamentá-la, ou seja, especificar detalhes que são tratados de maneira ampla na lei e terminar como ela será aplicada. Mas seu decreto não pode contradizer essa lei, porque a Constituição determina uma hierarquia de normas: um decreto (criado pelo presidente) está abaixo de uma lei, (criada pelo Congresso).
Ou seja, ao ter ilegalidades, o decreto é automaticamente inconstitucional.
"Ao tentar contrariar as leis com um decreto, o presidente não está apenas regulamentando, ele está extrapolando", afirma Luiz Guilherme Arcaro Conci, professor de Direito Constitucional da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica). Segundo ele, essa atitude fere a separação de poderes. "Mudar uma lei é algo que não pode ser feito por decreto"
A ilegalidade mais evidente, apontam os constitucionalistas, é o trecho que facilita porte para certas profissões (advogados, caminhoneiros, políticos eleitos, entre outros).
"O Estatuto do Desarmamento, que é a lei vigente, estabelece a possibilidade de porte para profissionais que comprovarem efetiva necessidade", explica Ponci. "Ao facilitar o porte para toda uma categoria, você elimina a exigência de comprovar necessidade, o que é ilegal."
"Isso cria uma presunção de necessidade, está avançando o sinal", afirma Marcos Soares, da Comissão de Segurança Pública da OAB-SP. "Independentemente de ser a favor ou contra [o porte de armas], é preciso respeitar a questão da hierarquia da lei a separação dos Poderes."
Segundo ele, criar uma nova política em relação às armas contrária a lei existente é algo que necessariamente precisaria ser feito pelo Legislativo. Ou seja, o governo deveria propor um projeto ao Congresso e articular para aprová-lo.
"Um decreto não pode contrariar a própria lei que pretende regulamentar", diz Ponci.
"Se você tem uma lei federal cujo objetivo é restringir o acesso, você não pode ampliá-lo por decreto. Isso precisaria ser discutido pelo Legislativo, a lei teria que ser revogada. Hoje você tem muitos projetos de lei que pretendem alterar o Estatuto do Desarmamento", diz ele.
Principais pontos
A liberação de porte para várias categorias profissionais pode ser o ponto mais claramente ilegal, mas não é o único, segundos os juristas.
Ponci cita, por exemplo, a facilitação de porte para "moradores de áreas rurais".
"No interior de SP, há áreas consideradas rurais em que há condomínios de luxo. Ter uma chácara a 10 km da cidade é muito diferente de ser um produtor rural em uma área afastada. Não pode haver presunção (de necessidade de armas) em situações tão distintas", diz Ponci.
O parecer da Câmara dos deputados também aponta outros trechos do decreto que contrariam a lei vigente.
O decreto não estabelece validade para o porte, nem área de vigência - e a determinação desses dois fatores é exigida pela legislação. O documento da Câmara também aponta que o decreto amplia o porte para todos os praças das Forças Armadas, um assunto que deve ser regulado pela própria Marinha, Exército e Aeronáutica, e não pelo presidente da república.
O Senado também elaborou uma nota técnica apontando diversos problemas no decreto. Nela, a Casa destaca que não está questionando "o mérito e a razão" das medidas mas o "extravasamento" de poder que o decreto representa - ou seja, o que está em discussão não é a questão do armamento, mas o possível abuso de poder do presidente ao tentar forçar uma decisão contrária à lei sem passar pelo poder Legislativo.
O que acontece agora?
Tanto o Congresso quanto o STF podem derrubar o decreto do presidente.
A ação da Rede no STF é uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) -tipo de ação de insconstitucionalidade- que pede uma decisão liminar (em caráter de urgência) parar suspender o decreto. A ministra Rosa Weber deve decidir sobre o pedido depois de ouvir o presidente Jair Bolsonaro - ele tem cinco dias para explicar o decreto a partir da data em receber a notificação da Corte, o que ainda não ocorreu.
Em um evento na tarde de sexta (10), Bolsonaro disse que se o decreto "é inconstitucional, tem que deixar de existir. Quem vai dar a palavra final vai ser o Plenário da Câmara. Ou a Justiça".
Há alguns caminhos que podem ser seguidos pela ministra Rosa Weber em sua decisão. Ela pode:
- Suspender o decreto total ou parcialmente em decisão liminar e encaminhar a ADPF para avaliação pelo plenário do STF
- Negar a liminar e encaminhar a ADPF para o plenário
- Encaminhar a liminar para avaliação do plenário (o que os analistas dizem ser improvável)
- Não acatar a ADPF, caso em que a ação nem chegaria a ser avaliada pelo colegiado de ministros
Independentemente da decisão do Supremo, o Congresso também tem mecanismos para suspender o decreto. Como explica Marcos Perez, da USP, seria preciso um decreto legislativo para revogar o ato do presidente.
"É algo relativamente fácil, seria necessário ter maioria simples na Câmara e no Senado", explica Luis Ponci, da PUC.
Os constitucionalistas afirmam que o Executivo extravasar seu poder em um assunto como essa não é uma questão marginal. "São questões fundamentais para o Estado de Direto, a separação do Poder, a hierarquia das leis".
Marcos Soares, da Comissão de Segurança Pública da OAB-SP, acredita que o STF deve barrar o decreto, ao menos nas partes que contrariam a legislação. "Editar um decreto que não será efetivo gera uma insegurança, uma confusão na população", diz.
Para Marcos Perez, da USP, a questão exige um debate longo e editar um decreto "que provavelmente será derrubado" é um "desserviço".
"Claro que pode ser um factóide (por parte da Presidência), para dizer 'eu tentei fazer, mas o Congresso e o Supremo não deixaram", diz Perez. "Se as instituições estiverem funcionando, ele será suspenso ao menos em parte."
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