Os e-mails vazados com críticas a Trump que levaram à renúncia de embaixador britânico nos EUA
Três dias após o vazamento de críticas do embaixador do Reino Unido em Washington, Kim Darroch, ao governo Donald Trump, o diplomata renunciou nesta quarta-feira (10) ao posto mais alto da diplomacia britânica nos Estados Unidos. O substituto dele ainda não foi anunciado.
O episódio do vazamento gerou grande mal-estar diplomático entre os dois países, que são aliados históricos e que não se cansam de repetir que possuem uma "relação muito especial".
Enquanto o governo do Reino Unido manifestou oficialmente apoio a Darroch, o presidente americano, Donald Trump, declarou que sua administração não iria mais lidar com o embaixador. Trump inclusive chegou a chamar o diplomata de "homem muito estúpido".
Nesta quarta, Darroch disse que deixaria o posto para por "fim à especulação" e argumentou que o vazamento tornou "impossível" que cumprisse seu trabalho. Ele ocupava o cargo de embaixador do Reino Unido em Washington desde 2016 - ano do pleito americano que elegeu Trump.
"Desde o vazamento dos documentos oficiais desta embaixada, tem havido grande especulação sobre a minha posição e a duração do meu termo como embaixador. Quero por fim à especulação", explicou ele numa carta ao gabinete de Relações Exteriores do Reino Unido.
A primeira-ministra britânica, Theresa May, lamentou que Kim Darroch tenha sentido a necessidade de renunciar ao posto e reiterou que diplomatas precisam poder repassar avaliações "francas e completas" ao governo. "Kim Darroch dedicou uma vida inteira a serviço do Reino Unido e nós temos uma dívida de gratidão com ele", acrescentou May.
Mas quais foram os pontos mais polêmicos das correspondências do embaixador britânico e as principais reações a esse vazamento?
E que consequências esse episódio pode trazer para as relações entre EUA e Reino Unido?
'Inepto' e 'incompetente'
A crise teve início no domingo (7), quando o jornal britânico The Mail on Sunday vazou e-mails diplomáticos confidenciais, nos quais Darroch classifica o governo Trump de "inepto", "inseguro" e "incompetente".
Os documentos obtidos pelo jornal britânico abarcam o período entre 2017, primeiro ano de Trump como presidente, até o presente. Neles, o embaixador aborda desde políticas do presidente americano sobre Oriente Médio até seus planos de reeleição.
Segundo o jornal, nas correspondências oficiais, o embaixador:
- Alerta que Trump pode estar em dívida com "russos suspeitos"
- Afirma que as políticas econômicas do presidente americano podem arruinar o sistema de comércio internacional
- Diz que Trump pode estar no "começo de uma espiral de queda... que leva à desgraça e à decadência"
- Expressa o temor de que Trump possa atacar o Irã
"Nós não acreditamos que essa administração vai ser substancialmente mais normal, menos disfuncional, menos imprevisível, menos divida em facções, menos diplomaticamente atrapalhada e inepta", diz Darroch, num dos telegramas mais sensíveis.
Ele também diz, segundo o The Mail on Sunday, não acreditar que o governo Trump "parecerá competente" um dia.
Relação de Trump com a Rússia
Nas correspondências, o embaixador britânico teria abordado vários temas polêmicos, entre os quais: a relação dos EUA com o Irã e a suspeita de que Trump teria atuado em conluio com russos para ganhar da democrata Hilary Clinton na eleição de 2016.
De acordo com o jornal britânico, em um e-mail do dia 22 de junho de 2017, endereçado ao Conselho Nacional de Segurança do Reino Unido, Darroch diz que "o pior não pode ser descartado", em referência às suspeitas de ingerência russa na campanha eleitora para a Presidência dos EUA.
O embaixador alega, no e-mail, que investidores russos "podem ter resgatado" empresas de Trump e de seu genro, Jared Kushner, "quando elas corriam risco de quebrar em décadas anteriores".
Mas, na mesma correspondência, Darroch parece admirar a capacidade do presidente americano de sobreviver a escândalos.
"Trump tem estado envolto a escândalos durante quase toda a sua vida e vem superando essas situações. Parece indestrutível."
Política 'incoerente' sobre o Irã
Neste ano, em 22 de junho, o britânico afirmou que os rumores de "caos e conflitos" na Casa Branca eram, em sua maioria, verdadeiros, e que a política do governo em questões sensíveis como o Irã era "incoerente e caótica".
"É improvável que a política dos EUA sobre o Irã se torne mais coerente num futuro próximo. Este é um governo dividido."
A tensão com o Irã tem aumentado desde maio de 2018, quando Trump retirou os EUA de um acordo nuclear que restringia o enriquecimento de urânio pelos iranianos em troca da retirada de sanções à república islâmica.
Mais recentemente, a crise entre os governos americano e iraniano escalou com a derrubada de um drone militar americano por forças do Irã. Segundo o The Mail on Sunday, o embaixador britânico criticou o que chamou de "36 horas de mensagens e decisões contraditórias" por parte dos EUA.
A derrubada do drone quase levou o governo americano a atacar o Irã militarmente. Trump teria autorizado a ofensiva, mas disse ter desistido após ser informado de que ela causaria cerca de 150 mortes.
Em correspondência sigilosa com autoridades britânicas, Darroch disse acreditar que, na verdade, a intenção de se reeleger presidente na eleição de 2020 foi o que pesou na decisão de Trump sobre o Irã.
"É mais provável que ele nunca tenha estado totalmente de acordo (com a ideia de atacar o Irã) e que ele tenha se preocupado com a imagem que essa aparente contradição com as suas promessas de campanha de 2016 causaria em 2020 (na próxima eleição)", disse.
Mas, conforme o jornal britânico, Darroch encerra o e-mail alertando que um possível ataque dos EUA ao Irã não pode ser descartado.
"Essa pode ser, no entanto, uma pausa temporária. Algum outro ataque iraniano em algum lugar da região pode desencadear mais uma mudança de orientação de Trump."
Quais foram as reações às críticas
Logo após os e-mails serem publicados pelo Mail on Sunday, o porta-voz da primeira-ministra britânica, Theresa May, disse que ela não concorda com o teor das mensagens vazadas, mas que o embaixador conta com sua "total confiança".
O porta-voz ainda afirmou que o vazamento é inaceitável. "O trabalho de um embaixador é prover opiniões honestas e sem verniz, mas May não concorda com suas análises", disse, acrescentando que a premiê entrou em contato com Trump para discutir o episódio.
O chanceler britânico, Jeremy Hunt, que é candidato a primeiro-ministro, também tentou distanciar o governo das críticas feitas por Darroch a Trump.
"É muito importante dizer que o embaixador estava fazendo seu trabalho de embaixador, que é proporcionar relatórios francos e opiniões pessoais sobre o que ocorre no país em que ele trabalha", disse.
"Mas são opiniões pessoais, não as opiniões do governo britânico, nem a minha opinião", declarou, segundo um comunicado.
Rompimento
A primeira reação do presidente americano ao episódio foi dizer: "Nós não somos grandes fãs daquele homem e ele não serviu bem ao Reino Unido".
Mas, no decorrer da segunda-feira (8), Trump endureceu o discurso, atacando Theresa May diretamente e anunciando rompimento com o embaixador britânico.
"Eu tenho sido muito crítico da forma como o Reino Unido e a primeira-ministra Theresa May têm lidado com o Brexit. Que bagunça ela e seus representantes criaram", escreveu o presidente americano no Twitter. "Eu disse a ela como deveria ser feito, mas ela optou por outro caminho."
Trump ainda afirmou que não conhece o embaixador britânico em Washington, mas garantiu que Darroch "não é apreciado".
"Nós não vamos mais lidar com ele. A boa notícia para o maravilhoso Reino Unido é que muito em breve eles terão um novo primeiro-ministro", disse, em referência ao fato de que o Partido Conservador fará novas eleições internas, até o dia 21 de julho, para a escolha de um substituto para May.
"Embora eu tenha gostado muito da magnífica visita de Estado (ao Reino Unido) no mês passado, foi a rainha quem mais me impressionou", acrescentou.
'Total apoio'
Mesmo após as mais recentes críticas de Trump, o governo britânico reafirmou, na terça-feira (9), "total apoio" ao embaixador britânico.
"Deixamos claro aos Estados Unidos o quão infeliz foi esse vazamento. Os trechos vazados não refletem a proximidade e a estima que temos pelo relacionamento (com os EUA)", disse um porta-voz de Theresa May.
Mas ele também destacou que embaixadores precisam ter estabilidade para encaminhar análises sinceras sobre a política nos países onde estão alocados.
"O Reino Unido tem uma relação especial e duradoura com os EUA, baseada na nossa longa história de comprometimento com valores comuns, e isso vai continuar", disse.
Em entrevista ao programa Today, da Radio 4, da BBC, o ex-secretário de Relações Exteriores William Hague reforçou a visão de que diplomatas não devem ser retirados dos postos em casos de vazamentos de correspondências oficiais.
"Você nunca conseguiria ter um relatório honesto de qualquer embaixador do mundo se dissesse: 'Bem, se alguma de suas comunicações for divulgada, teremos que remover você do posto'", exemplificou.
Na terça-feira (9), Trump voltou a atacar o embaixador britânico chamando-o de "cara estúpido". "O embaixador desvairado que o Reino Unido impôs aos Estados Unidos não é alguém que nos agrade, é um cara muito estúpido", disse.
"Ele deveria falar com o seu país e com a primeira-ministra May sobre as negociações fracassadas do Brexit em vez de ficar chateado com minhas críticas sobre como elas (as negociações) foram mal conduzidas."
Possíveis consequências
A divulgação das conversas do embaixador britânico ocorre num momento delicado para o Reino Unido, que tenta assegurar um acordo de comércio com os Estados Unidos para entrar em vigor após o Brexit, marcado para ocorrer no final de outubro.
Há algumas semanas, em junho, Trump foi recebido com pompa em Londres pela rainha Elizabeth 2ª, que ofereceu ao presidente americano um banquete no palácio de Buckingham.
Na ocasião, Darroch teria enviado um memorando ao governo britânico alertando que, embora Trump tenha ficado "deslumbrado" com a visita de Estado ao Reino Unido, a Casa Branca continua movida pelos próprios interesses.
"Esta ainda é a terra do 'America First (Estados Unidos em primeiro lugar)'", escreveu, segundo o Mail on Sunday.
A editora de política da BBC, Laura Kuenssberg, destaca que, em breve, um novo primeiro-ministro será eleito e, com isso, um novo embaixador em Washington deverá ser escolhido.
"Esse caso torna a escolha do novo embaixador britânico nos EUA uma controvérsia à espera de acontecer", diz.
Os dois candidatos a substituir May são o ex-secretário de Estado Boris Johnson e o atual ocupante deste posto, Jeremy Hunt.
Para Laura Kuenssberg, eles terão que fazer uma escolha difícil ao estabelecer as bases da relação que desejam ter com os Estados Unidos: "desafiar Trump, tentar 'amansar' o presidente americano ou simplesmente tolerá-lo".
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