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De 'blackface' a popularidade em queda, por que Trudeau terá batalha dura pela reeleição no Canadá

Imagens de Justin Trudeau usando maquiagem blackface em 2001 (centro) e anteriormente (esquerda e direita) - Reprodução
Imagens de Justin Trudeau usando maquiagem blackface em 2001 (centro) e anteriormente (esquerda e direita) Imagem: Reprodução

19/09/2019 19h17

Ao longo da semana, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, viu sua campanha pela reeleição, que já se mostrava extremamente disputada, se complicar ainda mais após a revelação de três episódios em que usou maquiagem "blackface", uma prática considerada racista, como admitiu o premiê em um pedido público de desculpas.

As imagens de Trudeau, reveladas nos últimos dois dias, datam de meados da década de 1990, quando ele era estudante de segundo grau, e do início dos anos 2000, quando lecionava em uma escola secundária em Vancouver.

A prática de escurecer a cor da pele surgiu séculos atrás para que atores brancos pudessem encenar papéis de negros no teatro — um ambiente proibido para essas pessoas até meados do século 20.

Segundo movimentos ligados à defesa da igualdade racial, trata-se de uma forma de perpetuar estereótipos racistas e ofensivos.

A revelação dos episódios em que Trudeau aparece usando blackface abriu uma crise na campanha.

A primeira imagem foi publicada pela revista Time, na quarta-feira (18). Trudeau aparece com a pele escurecida em uma festa à fantasia na escola em que dava aulas, em 2001. Ele tinha 29 anos.

Confirmação e desculpas

A campanha do premiê atestou a veracidade da foto e, no fim do dia, Trudeau pediu desculpas e se disse "profundamente arrependido" e que "deveria saber" do cunho preconceituoso dessa prática.

Logo depois, uma segunda imagem veio à tona, mostrando Trudeau novamente usando blackface, em um show de talentos da escola em que estudava. Ele cantava Day-O, música que se popularizou na voz de Harry Belafonte, artista e ativista que lutou nas campanhas por direitos civis da população negra nos Estados Unidos.

Por fim, nesta quinta-feira (19), um dia após o pedido de desculpas, o canal de TV canadense Global News divulgou um vídeo em que Trudeau, desta vez na casa dos 20 anos, aparece novamente com a pele escurecida por maquiagem, saltando e fazendo caretas em um palco. O Partido Liberal, de Trudeau, confirmou a veracidade do vídeo.

A série de imagens de cunho racista provocou uma enxurrada de críticas ao primeiro-ministro e muito constrangimento — especialmente porque Trudeau tem como bandeira de seu governo as políticas progressistas, como a busca por justiça social, diversidade e inclusão.

Falando a jornalistas após o artigo da Time, Trudeau disse que estava fantasiado de "Aladdin" em uma festa temática sobre as "Noites na Arábia". "Sou totalmente responsável pela minha decisão de fazer isso (usar a fantasia). Eu não deveria ter feito", disse. "Eu deveria saber. Não sabia naquele momento que era um ato racista, mas agora eu reconheço que é algo racista de se fazer e sinto profundamente".

Depois, em um novo pedido de desculpas na tarde desta quinta-feira, o primeiro-ministro disse que "não consegue se lembrar de quantas vezes" ele usou blackface na juventude.

"Estou sendo cuidadoso sobre dar uma resposta definitiva sobre isso porque, em relação às imagens recentes que apareceram, eu não lembrava", afirmou, em entrevista coletiva.

Os episódios de blackface se somam a outros problemas na campanha do primeiro-ministro pela reeleição. O pleito será em 21 de outubro, e o atual chefe de governo vem perdendo popularidade a cada ano.

Os problemas de Trudeau

Quatro anos atrás, Justin Trudeau, filho do ex-premiê Pierre Trudeau, assumiu o poder em uma eleição histórica, em que conseguiu uma virada nos últimos momentos, prometendo uma "mudança real" em seu país.

Mas, em meio à revelação dos episódios de cunho racista e de um escândalo ligado a questões éticas em um julgamento meses atrás, o líder dos liberais poderá convencer os canadenses a segui-lo mais uma vez?

No dia em que Trudeau assumiu, ele estampou manchetes em vários países por causa de seu gabinete com igualdade de cargos entre homens e mulheres e por anunciar que a paridade era uma das prioridades do seu governo.

"Porque estamos em 2015", justificou o recém-empossado primeiro-ministro, com um leve sorriso e um encolher de ombros que sugeria saber que sua sucinta frase provocaria furor mundo afora.

Era o começo da lua-de-mel de Trudeau. Logo em seguida, o primeiro-ministro tirou selfies com o então presidente americano Barack Obama e foi retratado pela revista Vogue como a "nova cara da política canadense".

Mais adiante, depois da eleição de Donald Trump ao sul de sua fronteira, a capa da revista Rolling Stone lançava a pergunta de se o jovem Trudeau seria a "maior esperança para o mundo livre" — um contraponto internacionalista em relação ao novo presidente americano, uma voz forte no combate às mudanças climáticas e por questões sociais progressistas, além de ser pró-imigração.

Mas é 2019 — e os eleitores não enxergam mais os liberais liderados por Trudeau da mesma forma como os encaravam quatro anos atrás.

Mudanças e distanciamento

Naquela época, o país tinha sido governado por quase uma década pelo conservador Stephen Harper, e o eleitorado parecia inquieto, em busca de mudanças.

"Havia um sentimento forte por mudanças, para se ver livre de Harper e dos conservadores, e seguir adiante", disse a cientista política Laura Stephenson, da Western University.

A primeira campanha de Trudeau, a que o levou ao cargo de primeiro-ministro, foi marcada por promessas ousadas — legalizar a maconha para fins recreativos, abrir as portas do país para 25 mil refugiados sírios semanas após assumir o governo e reformar o sistema eleitoral canadense.

Os eleitores, então, se engajaram em sua campanha e apoiaram as visões positivas em relação ao Canadá, que contrastavam fortemente com a do ex-premiê Harper.

No início de setembro, quando Trudeau se dirigiu aos canadenses depois de lançar sua campanha à reeleição, ele tentou criar uma atmosfera semelhante à das eleições anteriores — alertou para o possível retorno "dos anos Harper" e do que chamou de "uma década falha de política conservadora".

"Os canadenses escolheram um novo grupo, pronto para investir nas pessoas e em suas comunidades, um grupo que entendeu que, mesmo que nós vivamos no melhor país do mundo, é sempre possível aprimorar", afirmou.

"E, apesar de ainda termos muito trabalho a fazer, passamos os últimos quatro anos melhorando as coisas, e podemos provar com dados objetivos."

"Ele, de fato, tem um currículo para mostrar, mas, apesar da propaganda que faz de suas realizações, a impressão do eleitorado a respeito dele é mista", afirmou a cientista política Stephenson.

O caso SNC-Lavalin — um escândalo ligado a questões éticas que eclodiu no país meses atrás —teve um impacto negativo no apoio a ele.

No mês passado, fiscais descobriram que ele havia violado as regras federais de conflito de interesses ao tentar influenciar indevidamente um ex-ministro em relação a um julgamento criminal, enfrentado pela empresa de engenharia canadense SNC-Lavalin.

Em agosto, o instituto de pesquisas Angus Reid indicou que cerca de 30% dos canadenses aprovam o governo dele — e cerca de 60% desaprovam.

Depois da queda, o partido conseguiu recuperar apoio de eleitores alguns meses atrás, e atualmente a disputa é apertada com os conservadores nas pesquisas de intenção de voto.

Trudeau também terá de defender decisões que irritaram sua base progressista, e o fizeram perder pontos na corrida.

Os ambientalistas desaprovaram, por exemplo, o apoio ao projeto de expansão do gasoduto Trans Mountain, que vai triplicar a capacidade de transporte da via saindo da província de Alberta à periferia de Vancouver, uma rota de 1.150 km, por um custo de US$ 3,3 bilhões.

O Canadá também não está conseguindo cumprir sua meta de redução de gases de efeito estufa acertada no Acordo de Paris — reduzir 30% dos gases que emitia em 2005, até o ano de 2030.

Já a promessa de reforma eleitoral foi rapidamente abandonada, o que irritou eleitores de esquerda, animados pela perspectiva de ver um sistema de votação alternativo, como a representação proporcional, em substituição ao sistema atual, em que os candidatos mais bem votados ganham assento na Câmara dos Comuns.

Trudeau ainda enfrentou críticas por não cancelar um controverso acordo de armas com a Arábia Saudita.

O opositor Jagmeet Singh, líder do partido de esquerda NDP, acusa Trudeau de emitir "palavras bonitas, mas promessas vazias".

Já o ex-líder liberal Bob Rae diz que Trudeau tem sido "consistentemente progressivo" na maneira como imprime sua marca no Canadá.

"Ele criou uma ideia de quem ele é e do que importa para o Canadá, em contraste com o que fizeram outros partidos. E, honestamente, em contraste a outros líderes pelo mundo."

O risco de perder o voto progressista

O governo de Trudeau cumpriu vários compromissos de campanha — a maconha hoje é legalizada, a lei de direitos humanos do Canadá passou a proteger a identidade de gênero contra a discriminação, e ele concentrou esforços em políticas de igualdade de gênero.

No plano econômico, o Canadá renegociou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês), com o México e os Estados Unidos — apesar do protecionismo e do que Trudeau costuma chamar de "imprevisibilidade" ao sul da fronteira. E o desemprego no Canadá chegou quase ao nível histórico mínimo.

A questão, atualmente, é se Trudeau, que precisa do apoio de eleitores de centro-esquerda e de esquerda, conseguirá recuperar o sentimento que levou os progressistas a se unirem a ele e aos outros candidatos do seu partido liberal, na eleição de quatro anos atrás.

A revelação dos episódios de blackface certamente não ajudará em nada para reconquistar esse público.

Antes das revelações do blackface, a equipe liberal vinha fazendo uma campanha agressiva de divulgação de informações embaraçosas sobre os candidatos conservadores, e conseguiu colocar o líder conservador Andrew Scheer na defensiva no início da campanha.

"O desafio agora de qualquer líder liberal é convencer as pessoas de que, se a votação ficar polarizada demais, o resultado será uma vitória para os conservadores", disse o ex-líder liberal Rae.

A um mês das eleições de 21 de outubro, já se sabe que essa será uma campanha muito disputada.

Apesar dos problemas desta semana, Trudeau mantém algumas vantagens. De maneira geral, o bloco do primeiro-ministro está praticamente empatado com os conservadores, mas as últimas pesquisas indicam vantagem em regiões como Quebec e Ontário, duas províncias que, juntas, possuem 199 dos 338 assentos na Câmara dos Comuns.

Outro fato é que, historicamente, os canadenses raramente removem um governo majoritário após um único mandato.

Outro trunfo é o bom desempenho de Trudeau em campanhas, afirmam os cientistas políticos. O que ainda não se pode estimar é qual dimensão terão eventos inesperados — como os episódios de blackface — no resultado final das eleições.

Dias antes de virem à tona os episódios de blackface, a cientista política Stephenson falava com a BBC sobre o impacto de acontecimentos inesperados em uma campanha apertada como esta.

"Questões imprevistas que surgem podem se tornar pontos centrais para a campanha toda. Muitas vezes, a resposta que as partes dão a esses 'testes' são o que há de mais importante", afirmou.