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'Escravidão não foi tão ruim assim': os controversos comentários de turistas no sul dos EUA

Ritu Prasad - De Charleston (EUA) para a BBC News

04/10/2019 16h12

Faz 400 anos que chegou o primeiro navio de escravos nos EUA. Como esse passado sombrio se encaixa no turismo atual, dentro das fazendas que antes abrigaram esses escravos?

No início de 1619, um navio com "nada além de 20 e poucos negros" atracou no porto de Point Comfort, no Estado americano da Virgínia. Esses africanos foram as primeiras vítimas do comércio de escravos nos Estados Unidos, há 400 anos.

Há 154 anos, o Congresso do país aboliu a escravidão. Desde então, apenas cinco gerações de afroamericanos nasceram livres.

De todos os escravos que foram levados para os Estados Unidos, 40% chegaram via Charleston, na Carolina do Sul. As casas em que foram forçados a trabalhar até a morte agora são atrações turísticas.

Charleston mostra que o legado da escravidão ainda está presente no país, mesmo depois de tanto tempo. Mas ainda há um debate sobre como uma cidade - e uma nação - devem falar sobre um passado tão difícil.

"'A escravidão não era tão ruim' é provavelmente o que mais ouvimos. As pessoas dizem que os escravos tinham um lugar para dormir, faziam refeições", diz a guia de turismo Olivia Williams, de 26 anos. Ela trabalha na Fazenda McLeod, recentemente no epicentro de uma polêmica nas redes sociais, depois que alguns visitantes se queixaram que os guias da fazenda - um antigo polo de escravidão - eram muito "realistas" em suas explicações sobre o tratamento a que os escravos eram submetidos por seus donos brancos.

"Não recomendo esse passeio, porque é muito politizado e voltado para direitos civis e o sufrágio de escravos. Nossa guia Olivia era muito enviesada e só falou de fatos escolhidos a dedo que que se encaixavam em sua narrativa e, em grande parte, não eram adequados para uma visita a uma fazenda", diz um visitante, que deu uma estrela das cinco possíveis para a atração.

Em outro comentário, com duas estrelas, uma visistante escreveu: "Eu e meu marido ficamos desapontados com o tour. Não fomos lá para ouvir uma palestra sobre como os brancos tratavam escravos, fomos para conhecer a história de uma fazenda sulista e suas instalações. O guia foi tão radical sobre o tratamento dados aos escravos que nos sentimos atacados e criticados sobre a escravidão".

Embora a Fazenda McLeod tenha muito mais avaliações positivas do que negativas, essas críticas atingiram em cheio um debate que se desenrola em locais históricos de cidades como Charleston.

Por décadas, turistas foram conhecer Charleston e suas fazendas pelo charme idílico do Sul do país. Mas essa indústria está mudando aos poucos, porque alguns defendem que os visitantes devem conhecer as verdades da escravidão em vez da narrativa cor-de-rosa vendida por tanto tempo, mesmo que isso os deixe desconfortáveis.

Ao entrar na Fazenda McLeod pelo pequeno centro de visitantes, já existem sinais de que esse será um tipo diferente de passeio. Uma placa na frente pergunta: "Você acha que os donos de fazendas como os McLeod passaram por momentos tempos atribulados de maneira diferente dos Dawson, dos Forrest e de outras famílias afroamericanas que moravam aqui?".

A visita começa na estrada que leva à fazenda. É o tipo de cena que você esperaria em uma situação assim. O cascalho cinza circunda um gramado amplo e intocado, cercado por árvores antigas com musgo. No coração da propriedade, há uma elegante casa branca, um símbolo do esplendor do Sul.

Essa imagem pode ser o que atrai muitos visitantes à Fazenda McLeod, mas não é nisso que os organizadores do passeio querem querem que você se concentre.

No tour, Williams não aborda diretamente as críticas controversas sobre o local. Mas faz um aviso ao dar as boas-vindas. "Fazemos as coisas de forma um pouco diferente do que em outras fazendas em Charleston, porque concentramos nossa perspectiva nas pessoas escravizadas", diz ela ao meu grupo.

"O que vamos falar aqui hoje é difícil. Você pode se sentir desconfortável. Você pode se sentir chateado, triste ou com raiva, e isso é perfeitamente ok. Se você quiser ir embora, não vou me ofender." Ninguém vai embora, mas há um certo choque e desconforto entre os visitantes.

Muitos dizem que nunca souberam que os proprietários de fazendas promoveram casamentos forçados entre escravos considerados "fortes" para adicionar seus filhos ao seu "estoque", que grávidas escravizadas eram chicoteadas deitadas, para proteger esse investimento, ou que trabalho começava aos quatro anos de idade.

"É doloroso", diz Michaela, uma jovem de Nova York. "Parece uma fábrica de filhotes, mas um milhão de vezes pior. Só a ideia de ignorar essa parte horrível da história me deixa mal. Eu chorei. Mas estou feliz por estar triste agora, porque precisamos saber o que aconteceu."

Fica claro que alguns, ouvindo essa história pela primeira vez, estão lutando para conciliar a beleza à sua volta com a brutalidade da escravidão. "Não sei por que [a Fazenda McLeod] queria tratar mais da escravidão", me diz uma mulher da Carolina do Norte, olhando o caminho arborizado onde ainda existem três casas de escravos.

"Sei que eles trabalhavam aqui, mas os donos também trabalhavam, tinham de administrar este lugar. Quero dizer, era preciso muito trabalho para administrar uma destas fazendas, mesmo que com trabalho escravo."

Ela pensa ter sido horrível escravizar as pessoas, mas "nunca poderiam ter conseguido tudo isso sem trabalho escravo".

Virando-se para olhar a casa principal, que permanece sem mobília e aberta apenas para visitas autoguiadas, ela acrescenta: "Adoraria ter visto como ela era no passado... Você não ama essas árvores antigas?"

No final do passeio, Williams responde a uma pergunta de uma mulher branca sobre se havia uma conexão entre a maneira como os proprietários das fazendas forçavam as mulheres escravizadas a "procriar" e "como as mulheres negras [de hoje] acabam tendo filhos com múltiplos homens".

Williams diz que esse tipo de pergunta e comentário é comum. Já gritaram com ela e a chamaram de racista, mentirosa e incompetente para fazer esse tipo de trabalho. Um turista escreveu uma vez a seu chefe, pedindo que fosse demitida. Há alguns dias, ela terminou o expediente às lágrimas, pensando se deveria voltar ou não.

Mas a maior parte da reação à Fazenda McLeod tem sido positiva desde que o local foi aberto para visitação, em 2015, pela Comissão de Turismo, Parques e Recreação do Condado de Charleston.

As críticas ruins que atraíram atenção da mídia são uma pequena parte das centenas de outras mensagens que agradecem os funcionários por abrirem seus olhos para verdades que podem ser difíceis de digerir para americanos brancos.

Essa dissonância é em parte atribuída a uma falha no sistema educacional do país, porque uma versão ligeiramente diferente da história americana é ensinada nas escolas.

Mesmo no Sul, os estudantes podem nunca ouvir as histórias de escravos, mesmo que sua própria cidade tenha sido construída com base no trabalho daquelas pessoas, diz Shannon Eaves, historiadora da Faculdade de Charleston.

Isso, diz ela, é "um problema fundamental" que lança uma luz sobre o racismo nos Estados Unidos. "A escravidão continou a produzir efeitos mesmo após ser abolida, até os dias de hoje", afirma Eaves.

Ela explica que os ecos da escravidão estavam presentes nas leis que legalizavam a segregação, identificavam negros como inferiores aos brancos e suprimiam seu direito ao voto e vigoraram desde o final da guerra civil americana (1861-1865) até o movimento pelos direitos civis da década de 1950.

"Isso talvez ajude a explicar por que estamos em 2019 e ainda ouço que alunos nunca escutaram essa história antes. E a minha resposta é: 'Isso não é por acaso'", diz Eaves.

Séculos de escravidão seguidos por décadas de repressão institucional, segundo a historiadora, reforçaram velhas narrativas que retratam os negros "como cidadãos de segunda classe". A ignorância completa sobre essa parte da história está por trás da persistência em torno do Sul antes da guerra - e da rejeição de alguns a qualquer coisa que questione essa visão idílica.

"Eles não visitam [os campos de concetração de] Auschwitz ou Dachau e esperavam ouvir uma narrativa feliz e ir embora alegres, porque entendem que era um local de morte, exploração e trabalho forçado. Uma fazenda de escravos era exatamente isso, mesmo que fosse, sim, o lar de alguém."

Middleton Place se orgulha de abrigar alguns dos "mais belos e antigos jardins" dos Estados Unidos. É também uma das fazendas mais antigas da cidade.

Elementos da história dos escravos estão por toda a propriedade, e Middleton Place oferece um passeio focado nisso. Mas, se os visitantes não estiverem em busca desse aspecto, é algo que pode passar despercebido.

Uma placa na entrada informa aos visitantes que os jardins e construções são "fruto do trabalho de gerações de africanos e afroamericanos". A palavra "escravizadas" aparece uma vez, e não há menção do que essas pessoas sofreram.

"Se você fala apenas sobre a parte brutal - que deve ser abordada - mas se é só isso de que você fala, deixa de fora a perseverança, a força dessas pessoas, e acho que a escravidão se torna uma discussão inócua", diz Jeff Neale, diretor de preservação da fazenda.

Neale acrescenta que muita coisa mudou nos últimos 25 anos em Middleton Place e que eles estão trabalhando para evidenciar as experiências dos escravos em toda a propriedade. "Mais pessoas estão dando atenção para isso e percebendo que há mais do que apenas a história dos donos ou do local."

Ele conta que uma visitante lhe disse uma vez depois de um passeio que ela "aprendeu que os escravos tinham filhos". "Quando falou isso, estava envergonhada. Ela disse: 'Eu sabia disso, mas nunca pensei neles como mães e pais'."

Mas ainda que os guias turísticos ofereçam hoje mais detalhes sobre a brutalidade e o sofrimento que ocorreram ali, a visita a Middleton Place permanece amplamente focada na fazenda como um lar, embora não apenas de seus proprietários.

Perto do final da visita, a escravidão ganha destaque na visita a uma cabana de um casal liberto, construída em 1870. Um quadro ocupa toda a parede central, com os nomes, idades e preços dos 2,8 mil escravos de Middleton.

Também há informações detalhadas sobre o comércio de escravos nos Estados Unidos e alguns fatos sobre as pessoas que moravam na cabana, mas a exposição não é atualizada há 17 anos.

Fazenas como Middleton Place são um local histórico único, onde é fácil se ater a uma visão romântica do passado de uma maneira que não seria possível em outros locais do tipo.

Casamentos são, por exemplo, frequentes ali. Na maior fazenda histórica de Charleston, a Magnólia, há vários por dia. Até a Fazenda McLeod realiza casamentos e sessões de fotos.

"Este é um local de sofrimento, mas também era o lar de famílias", diz Neale, sobre Middleton Place.

"Não apenas dos Middleton, mas também dos escravos. Acho que, desde que respeitemos essa história, pode ser um local onde as pessoas podem criar suas próprias memórias."

Nem todo mundo compartilha dessa opinião. Na semana passada, um post no fórum Reddit perguntando se era razoável não ir ao casamento de um melhor amigo porque seria realizado em uma fazenda assim recebeu mais de mil comentários, de ambos os lados do debate.

"Nunca realizaríamos no Memorial do 11 de setembro uma grande festa ou um casamento", opina Kameelah Martin, diretora de estudos afroamericanos da Faculdade de Charleston.

Fazer isso é como dar "um tapa na cara das pessoas de cor deste país". "Não há uma parte da história americana ou da história econômica americana que não tenha sido impactada pelo trabalho escravo", diz Martin.

"Certamente, há um tempo e lugar certos para a nostalgia. [Mas] os proprietários de escravos não ficavam tomando refrescos e relaxando na varanda porque eram pessoas trabalhadoras. Essa vida de luxo só foi possível por causa da escravização de outros seres humanos. Por isso, temos de conversar sobre isso juntos."

O Congresso proibiu a importação de escravos em 1808, mas a população inicial de quase 400 mil africanos levados para o país cresceu para quase 4 milhões em 1860. Foi o trabalho deles que forneceu algodão à Grã-Bretanha durante a Revolução Industrial.

A população total da Carolina do Sul em 1860 era de pouco mais de 700 mil pessoas, das quais 57% eram escravos de 26 mil americanos brancos, a maior porcentagem do país na época, segundo dados do censo.

De 1787 a 1808, os brancos da Carolina do Sul compraram 100 mil africanos, segundo o Instituto Gilder Lehrman de História Americana.

Mas foi apenas no ano passado que o prefeito de Charleston pediu desculpas publicamente pela escravidão e o conselho da cidade aprovou um pedido semelhante por uma pequena margem de 7 votos a 5. Portanto, não é surpresa que ainda seja possível desconhecer a história completa e se privilegie uma imagem mais bonita do Sul pré-guerra em Charleston.

Há em Charleston estátuas de líderes confederados, mas não há um memorial oficial para os escravos. Existem inúmeras ruas de casas bonitas e coloridas com varandas típicas do Sul por excelência em condomínios batizados com o nome de fazendas de escravos.

"O lucro com a história da escravidão passou da agricultura para a indústria turística", diz Martin.

Atualmente, duas das principais fundações históricas de Charleston são administradas por brancos. O diretor de museus de uma mansão preservada no centro da cidade me disse que, mesmo nos anos 1980, docentes eram impedidos de usar a "palavra e" (de escravos) com turistas, mas houve uma mudança recente para estudar e promover as histórias dos escravos que viviam naqueles locais.

Para Martin, Charleston tem uma "responsabilidade" única, porque há ali uma vasta quantidade de registros preservados sobre toda a sua população, branca e negra, algo excepcional mesmo entre outros Estados do Sul.

Charleston deve "[liderar] o processo de cura e reconciliação raciais, porque preservou tudo isso, a história de ambos os lados", diz Martin.

Em 2015, a cidade como um todo foi forçada a enfrentar seu passado racista após um ataque extremista do supremacista branco Dylann Roof, que abriu fogo contra os fiéis negros de uma igreja e matou nove pessoas. Dois meses antes, Roof passeara pela Fazenda McLeod, uma das muitas paradas que fez em locais históricos no Sul.

No auge da escravidão, o Centro Nacional de Humanidades estima que existiam mais de 46 mil fazendas de escravos nos Estados do Sul. Agora, para as centenas cujos portões permanecem abertos aos turistas, resta uma escolha.

Cada um tem sua própria história para contar e uma maneira própria de fazer isso. Nem todos acham necessário dar o maior destaque à escravidão. Mas está claro que a imagem idílica do Sul pré-guerra está mudando lentamente à medida que historiadores e grupos de conservação começam a ajustar décadas de narrativas.

Quando perguntado por que ainda devemos falar sobre a escravidão, Martin diz: "Talvez seus ancestrais não tenham participado, talvez você não tenha nenhuma conexão direta com isso. [Mas] em 2019, ainda estamos lidando com as implicações e ps impacto e as disparidades raciais resultantes desse modo de pensar, desse modo de vida. Então, você deve se importar porque você é humano."

Todas as imagens têm direitos reservados.


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