Por que a decisão de Trump de abandonar curdos na Síria é criticada até por republicanos
Abandono de curdos à própria sorte contra o poder militar da Turquia pode levar à reemergência do Estado Islâmico e fortalecer inimigos americanos, dizem críticos da medida - alguns deles pessoas muito próximas a Trump.
A Turquia iniciou nesta quarta-feira (09/10) uma ofensiva militar com bombardeios no nordeste da Síria, em um desdobramento da retirada das tropas americanas da região por ordem de Donald Trump.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, afirmou que seu bombardeio pretende criar uma "zona segura" e livre de milícias curdas no nordeste sírio.
A seguir, a BBC explica por que essa nova frente de conflito importa no xadrez geopolítico do Oriente Médio, e por que a decisão de Trump foi criticada até mesmo por alguns de seus principais defensores dentro do Partido Republicano.
A retirada
No domingo, o presidente americano anunciou que retiraria as tropas americanas da fronteira entre a Turquia e a Síria, afirmando que já "é hora de nós (EUA) saírmos dessas guerras sem fim ridículas" e cumprindo uma promessa de campanha de 2016.
"Vamos combater onde tivermos benefício, e apenas combater para vencer. Turquia, Europa, Síria, Irã, Iraque, Rússia e os curdos agora vão ter que solucionar essa situação e (decidir) o que fazer com os combatentes do Estado Islâmico capturados em sua 'região'. Todos odeiam o Estado Islâmico, são inimigos há anos. Estamos a 7 mil milhas de distância e vamos destruir o EI novamente se eles chegarem perto de nós novamente!", escreveu Trump no Twitter.
Só que essas tropas americanas na fronteira atuavam como uma espécie de "amortecedor" entre duas forças arqui-rivais: a Turquia, uma importante potência militar da região, e os curdos, povo que foi um aliado crucial dos Estados Unidos durante os anos de combate ao grupo autodenominado Estado Islâmico — e que, ao mesmo tempo, é inimigo da Turquia e reivindica parte do território do país para criar um Estado próprio.
Com a saída das tropas americanas, abriu-se espaço para a atual ofensiva turca no nordeste da Síria, alvejando principalmente milícias curdas na região.
Os curdos são responsáveis por guardar prisões e campos que abrigam estimados 12 mil homens suspeitos de serem membros do Estado Islâmico, e não está claro se continuarão a fazê-lo.
As críticas dos republicanos
As implicações da retirada americana para os curdos e, inclusive, sobre um possível refortalecimento do Estado Islâmico levaram até mesmo aliados de Trump a criticarem sua decisão nos últimos dias.
"Eu costumo apoiar o presidente em política externa e não quero nossas tropas combatendo as guerras de outros países, mas foi um ENORME erro abandonar os curdos", afirmou pelo Twitter, na segunda-feira, o ex-governador republicano do Arkansas Mike Huckabee.
"Eles (curdos) nunca nos pediram para combater a guerra deles — apenas que déssemos ferramentas para que defendessem a si mesmos. Eles têm sido aliados fiéis. Não podemos abandoná-los."
Até mesmo o senador republicano Lindsey Graham, que tem sido um dos principais defensores de Trump no processo de impeachment, chamou a retirada de "impulsiva" e "um desastre em construção".
Em uma série de tuítes na segunda-feira, Graham afirmou que a decisão americana vai "garantir a volta do EI, forçar os curdos a se aliar a Assad (em referência a Bashar al-Assad, presidente da Síria) e ao Irã, destruir as relações da Turquia com o Congresso americano (e) será uma mancha na honra americana o abandono aos curdos. (...) O resultado mais provável dessa decisão impulsiva é garantir a dominação iraniana da Síria. Os EUA deixam de ter influência, e a Síria eventualmente vai se tornar um pesadelo para Israel. Me sinto muito mal pelos americanos e aliados que se sacrificaram para destruir o califado do EI, porque essa decisão virtualmente garante a reemergência do EI. Tão triste. Tão perigoso. O presidente Trump talvez esteja cansado de combater o islã radical. Mas este não está cansado de nos combater".
Graham opinou ainda que a retirada das tropas "vai dificultar que os EUA voltem a recrutar aliados contra o islã radical" e "ao abandonar os curdos, manda o pior sinal possível: de que a América não é confiável e é só uma questão de tempo antes que China, Rússia, Irã e Coreia do Norte ajam de forma perigosa".
Nesta quarta-feira, o senador afirmou que "vai liderar esforços no Congresso para fazer que (o presidente turco) Erdogan pague um preço caro" pelo ataque aos curdos na Síria. Mas acrescentou que roga a Trump que "mude de ideia enquanto ainda há tempo de voltar ao conceito de zona segura que estava funcionando" na fronteira entre Síria e Turquia.
"Erdogan não é nosso amigo, e o Congresso vai revidar", declarou Graham à emissora Fox News, prometendo impor sanções econômicas à Turquia no Legislativo americano. "Não estamos dando luz verde à Turquia no Congresso e não vamos abandonar os curdos. Se o presidente (Trump) o fizer, nós não o faremos."
Em resposta às críticas, ainda na segunda-feira, Trump afirmou pelo Twitter que "se a Turquia fizer algo que eu, em minha grande e inigualável sabedoria, considere além dos limites, vou destruir e obliterar totalmente a economia da Turquia (já fiz isso antes!)". Não ficou claro, porém, o que seria "além dos limites".
A ofensiva turca
Nesta quarta-feira, o Exército turco e aliados sírios rebeldes lançaram uma operação de bombardeios aéreos, que será seguida de ataques de artilharia, segundo a Reuters.
Erdogan, o presidente da Turquia, afirmou que seu objetivo é eliminar o "corredor de terror" formado na fronteira turca (lembrando que a Turquia considera grupos independentistas curdos terroristas) e pavimentar o caminho para que refugiados sírios em território turco possam voltar para uma "zona segura" em seu próprio país.
A Turquia abriga atualmente 3,6 milhões de refugiados sírios, e o governo turco quer que 2 milhões deles voltem para essa "zona segura".
O país prometeu também expulsar de seu território a milícia curda-síria Unidades de Proteção do Povo, que enxerga como uma extensão do Partido Popular do Curdistão (PKK, na sigla turca), que lutou por autonomia durante 30 décadas.
Essas Unidades de Proteção dominam uma aliança de milícias curdas e árabes chamada Forças Democráticas Sírias (SDF), que foi responsável por expulsar o EI de um quarto do território sírio nos últimos quatro anos, com a ajuda de bombardeiros aéreos da coalizão liderada pelos EUA.
Os desdobramentos
A SDF afirmou que o anúncio de Trump foi uma "punhalada pelas costas". O porta-voz da aliança, Mustafa Bali, afirmou que "aviões de guerra turcos começaram a fazer ataques aéreos em áreas civis e há grande pânico entre as pessoas da região".
Um dia antes, ele disse também que "as tropas americanas não cumpriram sua responsabilidade e começaram a se retirar da área, deixando que esta vire uma zona de guerra. Mas a SDF está determinada a defender o nordeste da Síria a todo custo".
A correspondente da BBC Orla Guerin, que está na cidade de Akcakale, na fronteira turco-síria, afirma que "não há dúvidas de que, para os civis sírios que estão logo à frente da fronteira, será mais uma rodada de combates em uma guerra que já é angustiantemente longa".
Guerin explica que a SDF perdeu estimados 11 mil combatentes na guerra contra o EI, vencida com a ajuda americana.
Agora, diz a correspondente, "o grupo afirma, por exemplo, que talvez precise retirar suas tropas das prisões onde estão presos jihadistas do EI, ou de cidades que foram libertadas do controle do EI".
"Os curdos estão basicamente dizendo ao Ocidente: a guerra que lutamos em seu nome agora está em risco por culpa do que a Turquia quer fazer", explica Guerin.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.