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Os sete órfãos do Estado Islâmico resgatados pelo seu avô chileno

Divulgação/Foto cedida pela família
Imagem: Divulgação/Foto cedida pela família

31/01/2020 07h45

O músico chileno Patricio González Gálvez realizou, em maio passado, uma façanha e tanto: resgatou, de uma zona de guerra, seus sete netos, abandonados em um campo de refugiados para órfãos do Estado Islâmico (EI).

Os pais das crianças tinham se mudado com os filhos da Suécia para a Síria em 2014, para se juntar ao notório grupo extremista muçulmano. Ambos foram mortos no início de 2019, o que levou Gálvez a abraçar a missão de achar seus netos e trazê-los de volta para casa.

Os sete irmãos, que em outubro passado estavam com idades entre 1 e 8 anos e que sobreviveram a bombardeios, à fome e doenças, à perda dos pais e à difícil vida de refugiado em uma zona de guerra, estão agora prestes a começar um novo desafio: a de recomeçar a vida na Suécia, separados, em novas famílias.

Segundo a imprensa sueca, o governo do país apontou um guardião para supervisionar o longo processo de inserção das crianças em suas novas famílias e zelar pela situação legal e financeira delas até alcançarem a maioridade.

As crianças ganharão novas identidades - mesmo porque muitos, na Suécia, eram críticos da repatriação de "filhos de um terrorista do EI".

Outra função do guardião será garantir que elas mantenham contato próximo entre si e com seu avô Patrício, cuja história de amor e determinação está sendo contada por um podcast da série Que História!, da BBC News Brasil.

Como ouvir o podcast

A primeira temporada de 'Que História!', produzida e apresentada por Thomas Pappon, terá dez episódios, que serão disponibilizados semanalmente nas principais plataformas de podcast, como Apple, Spotify, Overcast e Castbox.

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Do Chile à Suécia

Gálvez partiu para Gotemburgo, na Suécia em 1988, aos 19 anos, porque queria "mudar de ambiente".

No país escandinavo, conheceu Ulrika, com quem se casou e teve uma filha, Amanda. Em entrevista ao programa Outlook, da BBC, ele conta que sua filha "era introvertida, inteligente, do tipo intelectual", e que a chamava de "criança da luz" porque "durante o dia, era alegre e fazia a gente dar muita risada, mas à noite, se fechava, era triste e não conseguia dormir direito".

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Gálvez e sua mulher se separaram quando Amanda tinha dois anos. Mas ele continuou por perto, sendo um pai presente na vida da menina. Ela herdara dele o amor pelas artes e pelo palco, estudava teatro na escola e queria ser atriz. E passou a se interessar por religião, em particular, pelo islamismo.

"Ela devia ter uns 17 anos quando começou a ler sobre o Islã, com amigos, mais por curiosidade."

Mas o que tinha começado como curiosidade, logo se tornou uma fascinação. Em pouco tempo, Amanda se convertia ao islamismo. E se casava com um norueguês convertido ao Islã, chamado Michael Skråmo.

"Quando me contaram que tinha se casado, disse a ela 'mas você mal conhece esse cara'", diz Gálvez . "Eu não demonstrava simpatia com ele, nem ele comigo. Foi uma situação bem ruim, desde o começo."

Aos poucos, vieram os netos: dois filhos e duas meninas gêmeas.

Gálvez, que se define como "não religioso", aceitou que "se ela está feliz sendo muçulmana, então eu estou satisfeito". A única coisa que realmente o incomodava era que Amanda tinha largado os estudos e a carreira de atriz para ser dona de casa, dedicada aos filhos e ao que ele chamou de "uma versão um pouco mais extrema do islamismo".

Gálvez continuou mantendo contato com a filha e os netos, que levava ao playground, sem saber que, ao mesmo tempo, Amanda e o marido, Michael estavam frequentando círculos islâmicos mais radicais da Suécia.

Tanto que, em agosto de 2014, Amanda e o marido levaram os filhos para férias de verão na Turquia, jamais imaginou que a ideia era se juntar ao então mais temido grupo extremista do mundo, o Estado Islâmico, na Síria.

"Você não imagina minha raiva e sensação de impotência quando soube que eles tinham se juntado ao Estado Islâmico e estavam em Raqqa. Se soubesse, eu teria impedido ela de ir, teria ido à polícia."

Raqqa, Síria, em agosto de 2017, palco de combates entre EI e forças lideradas por curdos: pouco depois, família de Amanda estava em fuga - REUTERS/Zohra Bensemra - REUTERS/Zohra Bensemra
Raqqa, Síria, em agosto de 2017, palco de combates entre EI e forças lideradas por curdos: pouco depois, família de Amanda estava em fuga
Imagem: REUTERS/Zohra Bensemra

No coração do califado

Fundado em 2013 por combatentes fundamentalistas sunitas, o Estado Islâmico controlava vastas áreas do norte do Iraque e oeste e norte da Síria, e tinha acabado de proclamar um novo califado na região sob seu controle. Raqqa, no norte da Síria, era a capital desse califado, e novo lar da família de Amanda.

Apesar da frustração, Gálvez manteve o contato com a filha - muitas vezes esporádico por causa do pouco acesso que ela tinha à internet. As mensagens de Amanda pintavam um quadro positivo da vida no califado. Ela teve mais três filhos.

"Tentei convencê-la a voltar", diz Gálvez, "mas ela dizia, 'não se preocupe, eu quero ficar aqui'. 'Estamos longe das frentes de combate'. 'Aqui não há perigo', ela dizia."

Mas em 2017, o tom das mensagens começou a mudar. Após meses de violentos combates, o Estado Islâmico perdeu o controle sobre Raqqa. A cidade foi tomada pelas Forças Democráticas da Síria, uma coalizão liderada por uma milícia de curdos. Muitas lideranças e combatentes estrangeiros do Estado Islâmico tiveram de fugir.

"Por volta de outubro de 2017, a família estava em fuga. Diziam que estavam exaustos, passando fome, enfrentando doenças. Entrei em contato com a polícia sueca, mas não havia nada que eles pudessem fazer. E Amanda continuava dizendo que não queria voltar."

Morte e culpa

No final de 2018, Gálvez estava no Chile, em turnê e visitando parentes, quando, de repente, parou de receber mensagens de Amanda. No dia 3 de janeiro de 2019, recebeu uma mensagem de Ulrika, mãe de Amanda, dizendo que a filha havia morrido em um ataque aéreo.

"Fiquei arrasado, frustrado, com raiva, e aí bateu o sentimento de culpa. 'Por que não fui para a Síria tentar resgatá-los, em vez de ir pro Chile?'."

Foi quando Gálvez resolveu abraçar uma missão: a de tentar trazer os netos de volta à Suécia. Para isso, teria de estabelecer contato com o pai das crianças, que estava com os combatentes do Estado Islâmico encurralados na cidade de Baghouz, no sudeste da Síria, na fronteira com o Iraque.

Em março, veio a notícia de que Michael Skramo, o pai das crianças, levara um tiro e morrera, dias depois. Os netos de Gálvez estavam órfãos, abandonados em uma zona de guerra.

Mas, algumas semanas depois, a busca do avô começou a dar frutos. "Tinha entrado em contato com jornalistas que estavam cobrindo a queda de Baghouz. E um deles, uma repórter do Wall Street Journal, me passou o contato de um advogado. Através dele, soube que um de meus netos, o mais novo, estava em um hospital em Hasaka (região no nordeste da Síria, também perto da fronteira com o Iraque), perto de um grande campo de refugiados."

Os outros seis netos estavam neste campo, o de Al Hol, erguido para abrigar viúvas e filhos de combatentes do Estado Islâmico - grande parte deles feridos e fragilizados.

Ele pediu ajuda ao Ministério das Relações Exteriores da Suécia, que respondeu que a situação era complicada, que era necessário esclarecer a cidadania das crianças. Mas o músico cansou de esperar. Pegou um avião até Irbil, no norte do Iraque. De lá, por terra, cruzou o rio Tigre, e entrou na Síria, até chegar ao hospital em Hasaka.

"Achei o bebê mais novo, ele estava com outros 30 ou 40 bebês num quarto, todos resgatados do Estado Islâmico... e malnutridos. O bebê estava apático, sem energia. Chorei muito. Abracei ele, ele começou a chorar, mas aí comecei a falar em sueco, e ele parou. Ficou me olhando. Aí citei os nomes de seus irmãos, ele sorriu. Foi emocionante."

'Os sete estavam juntos'

Patricio encontrou os sete netos juntos pela primeira vez no campo de Al Hol: 'Estavam desnutridos, mas bem. De novo, chorei muito' - REUTERS/Ali Hashisho - REUTERS/Ali Hashisho
Patricio encontrou os sete netos juntos pela primeira vez no campo de Al Hol: 'Estavam desnutridos, mas bem. De novo, chorei muito'
Imagem: REUTERS/Ali Hashisho

Após vários apelos a autoridades, Gálvez finalmente recebeu permissão para entrar no campo. Nesse meio tempo, o bebê tinha recebido alta do hospital e estava com seus irmãos.

"Os sete estavam juntos, desnutridos, mas bem. Foi novamente um momento emocionante. De novo, chorei muito. Meu sonho de encontrar as crianças havia sido realizado."

Mas as autoridades locais se recusaram a liberar as crianças sem um pedido oficial da Suécia. Além disso, Gálvez não tinha autorização para continuar na Síria. De volta à Irbil, no Iraque, depois de finalmente encontrar as crianças, de tê-las em seus braços, mas sem poder tirá-las do campo de refugiados na Síria, ele resolveu apostar suas fichas em uma nova tática: divulgou seu caso na imprensa.

A luta do músico chileno ganhou manchetes na Suécia e no Chile. Em poucos dias, diplomatas dos dois países anunciavam que se engajariam nas tentativas de trazer as crianças para casa. A Suécia enviou uma delegação, e, em poucos dias, Gálvez era informado de que os sete netos tinham cruzado a fronteira com o Iraque e estavam a caminho de Irbil.

"Quando vi as crianças, elas pareciam ter renascido. Estavam cheias de energia. Não foi fácil. Eu estava feliz, porém, exausto." Em um tuíte, uma jornalista da rádio sueca Ekot registrou uma foto de Patricio no lobby do hotel segurando o bebê.

De repente, o músico de cinquenta e poucos anos estava trocando fraldas, alimentando e tomando conta de sete crianças traumatizadas, com problemas para dormir, em um hotel no norte do Iraque. E em meados de maio passado, após uma semana caótica, eles finalmente embarcavam em um avião para Gotemburgo.

Nos primeiros meses, elas foram mantidas separadas de Gálvez em um lugar seguro, onde ele as visitava. Isso foi em parte é para receberem cuidados adequados de especialistas, para ajudá-los a lidar com os traumas.

Mas também foi para garantir a proteção dos órfãos. Muitos na Suécia não gostam da ideia de receber filhos de combatentes do Estado Islâmico.